"O ministro-sombra da Saúde, o bastonário da Ordem dos Médicos, está a politizar a intervenção"
Francisco Louçã não foge à pergunta sobre um dos assuntos que mais incomodam alguns milhões de portugueses, entre os quais muitos milhares de comunistas, a Festa do Avante!. Mas quando se lhe pergunta se os partidos devem poder fazer aquilo que o resto do país está proibido, opta por explicar a razão de tantos festivais terem sido cancelados sem protestos: "Os organizadores dos festivais de verão pediram ao Governo que os proibisse de fazer eventos porque era a única garantia legal que tinham para poder anular os contratos sem litigância, e não quiseram explorar a possibilidade que lhes sairia cara de festivais reduzidos com o cachê com que se comprometeram." É uma situação que diz compreender, tal como percebe a escolha do PCP em manter um evento que reunirá uma multidão: "Eles escolheram uma solução, o PCP escolheu outra, mas como além de ser um comício político é um festival, as regras que ali se aplicarem devem poder aplicar-se a qualquer outra manifestação cultural. Eu aprecio que haja sinais de abertura, que haja cinema e teatro, tudo com muita prudência."
As férias estão a acabar. O susto com a pandemia irá mudar os comportamentos sociais e políticos em Portugal?
Com certeza, e acho que os está a mudar no mundo inteiro, principalmente os hábitos sociais com os comportamentos de curto prazo, como o de se usar máscaras no espaço público, restrição no contacto e na proximidade. Porventura, a maior mudança será nos comportamentos que a pandemia reforçou - não criou -, a de uma emergência da sociedade do medo. Em alguma medida, o medo como forma de comunicação, os perfis falsos como expressão e a sua multiplicação e intoxicação, bem como a redução da racionalidade à caricatura, o fomentar das culturas do ódio que, mais do que tudo, têm formado uma espécie de necropolítica baseada no medo e na morte como forma de afirmação. Creio mesmo que a ameaça maior à tolerância e à racionalidade democrática está na ameaça do espaço público e político por esta vaga pandémica de uma necropolítica.
Está-se a evocar os 200 anos da Revolução Liberal. É uma data fundamental para se perceber o que pode acontecer a uma sociedade que não se preocupa em conhecer a sua história?
A Revolução Liberal deu origem ao princípio de transformações no regime e depois à guerra civil que marcou o século XIX, portanto são circunstâncias que não se repetem. Já me disseram, e com razão, que a dimensão mais importante da Revolução de 1820 é a de ter começado o processo de que vai resultar a instauração da República, como se fosse o início de uma longa revolução e contrarrevolução, que vai avançando e recuando até 1910. Esse foi um processo de modernização de Portugal realizada num contexto difícil, que ensina a virtude da paciência e da estratégia e, também, que Portugal se transforma sempre por grandes impulsos mas em processos mais lentos.
Vivemos num país repleto de pequenos e grandes escândalos e nem há tempo para se os acompanhar. A TAP, por exemplo, é um assunto quase do passado...
Vamos viver com o problema TAP durante muito tempo porque é uma empresa deficitária e mal gerida, até agora na sequência de um processo de privatização que está na borda da delinquência. Portanto, como o escândalo gera o escândalo, será muito difícil corrigir a situação da TAP. Mas a grande decisão que é preciso tomar, que começou a ser mas não está consolidada com este plano de longo prazo de sobrevivência da empresa, é saber se Portugal tem uma companhia aérea da região Portugal ou de um país Portugal.
E no que respeita aos outros escândalos que têm surgido constantemente?
É inteiramente verdade essa existência de muitos escândalos, pois o regime económico gerou um sistema de facilidades, de compadrio e de favorecimento, particularmente centrado na omnipotência e na obscuridade da finança, que multiplicam os poderes e as correlações.
Entre os escândalos, se tiver de "eleger" um, é o Novo Banco?
Sim, é o escândalo mais vertebrador de toda a criminalidade económica e de colarinho branco em Portugal, seja o processo que vai do banco ao universo Espírito Santo em Angola e que volta a Portugal, chegando ao Novo Banco com o que foi assinado para garantir o cheque em branco de 3,9 mil milhões de euros à Lone Star. Mas a procissão ainda vai no adro, já que temos vindo a saber o modo como se executa essa operação de lavagem de favores, através de vendas por tuta-e-meia dos ativos do banco a agências financeiras de vão de escada a que transmitem esses lucros ao mesmo tempo que o Orçamento do Estado é obrigado a pagar o custo desse contrato à escala de quase mil milhões de euros por ano. Ainda virá a acontecer muito mais até ao dia, e será breve, em que a Lone Star venda o Novo Banco a uma nova empresa pirata.
Esperava que o Ministério Público apresentasse uma acusação desta amplitude contra o antigo Grupo Espírito Santo?
Fiquei surpreendido, e bem, porque em tudo o muito que li da acusação vi que é muito pormenorizada e parece bastante sustentada; veremos o que diz o tribunal no fim. Ao contrário de outros casos em que a acusação parece mais volúvel e instrumentalizada, esta investigação parece muito consistente.
Referiu o Orçamento do Estado. O próximo vai ser o regresso à coligação de esquerda ou indiciará uma espécie de bloco central de PS e PSD?
Tem havido sinais contraditórios ao longo do último ano em muitas questões de natureza estruturante do regime, em que o PS se tem colado ao PSD com uma volúpia notória e que é mútua. A forma como Rui Rio e António Costa se encontraram para terminar com os debates regulares do primeiro-ministro no Parlamento é quase que a expressão anedótica desse novo amor. Noutras matérias, o PS tem mantido compromissos com a esquerda, como, por exemplo, na Lei da Eutanásia e na abertura possível de alguns debates sobre políticas sociais. Entre estes sinais contraditórios, é difícil dizer o que pode vir a ocorrer, até porque o Governo negou há menos de um ano um acordo à esquerda para a legislatura e declarou enterrada a geringonça. Agora, deseja um novo acordo para uma década, o que é mirífico, mas tudo se decide é na forma como o Governo responderá à emergência imediata destes 900 mil desempregados, de tantos precários e de pessoas aflitas com uma pandemia - que ainda nos vai bater forte a partir do outono -, bem como nas medidas económicas e políticas imediatíssimas para responder, sem perder tempo, aos défices no Serviço Nacional de Saúde, na política de investimento para criar emprego, na redução da precariedade e na segurança no trabalho.
O confinamento correu bem. O desconfinamento correu mal. O outono e o inverno poderão ser acautelados ou será governar à vista?
O confinamento foi uma medida de emergência com enormes consequências e custo económico, mas era necessário. Correu bem porque foi o que tinha de ser feito. Tendo de haver um desconfinamento, porque a sociedade não pode estar fechada, resta saber se usámos o melhor conhecimento sobre a pandemia, que ainda é limitado, para nos protegermos. Houve um repique de contaminações e, mesmo numa sociedade cuidadosa, continuámos a ter um número de casos importante. O que falhou foi como noutros países: a proteção dos idosos mais vulneráveis. Uma tragédia evitável se não houvesse lares clandestinos, se os legais tivessem melhores condições e o Serviço Nacional de Saúde tivesse logo conseguido proteger esses utentes. Mostrou-se que havia um Portugal esquecido, o dos idosos nos lares.
Há cada vez mais pessoas sem dinheiro para comprar os medicamentos de que precisam. Continua a existir uma insegurança social nessa área?
Claro, até porque a pobreza e a desigualdade aumentam nestas crises, e o mais espantoso é que ao mesmo tempo que o desemprego arrasta para o empobrecimento muitos milhares de trabalhadores e se agrava a situação dos idosos, há um surto de enriquecimento na base da euforia das bolsas. Pode parecer estranho o que se vê, mas nos dias em que a Alemanha regista os dados mais catastróficos - os oficiais do segundo trimestre -, com uma queda de 10% do produto interno bruto, as bolsas mundiais e as norte-americanas em particular atingiram o seu recorde histórico de todos os tempos. Há uma euforia nas bolsas como se a cocaína tivesse invadido os investidores, e esse é um processo de enriquecimento dos detentores de grandes patrimónios, ou seja, os multimilionários são beneficiários desta crise, e são eles que recebem uma grande parte dos fundo europeus, da liquidez de bancos centrais e de poupanças mundiais.
Pode dar um exemplo?
A Apple já ultrapassou o valor de capitalização de dois biliões de dólares; nunca nenhuma empresa tinha atingido esse patamar, que é 33 vezes o seu valor real. Vivemos um tempo de festejos operáticos, enquanto ao mesmo tempo uma grande parte da população empobrece.
Pode-se dizer que a pandemia representa para a finança um choque ainda melhor do que o criado com a crise de 2008?
O choque de 2008 atingiu o sistema financeiro e provocou uma desvalorização importante dos ativos. Desta vez, a diferença é que os bancos centrais demonstraram que estão dispostos a sustentar sem qualquer limite a euforia financeira, e essa situação cria uma grande segurança para os multimilionários e para as agências financeiras, mesmo que o custo seja uma enorme insegurança porque vai haver um aumento massivo do desemprego. Essa é a marca mais dura dos efeitos imediatos da pandemia. Como é que se irá estabilizar esta situação? Ainda não se sabe, na verdade dependerá muito do resultado que as eleições norte-americanas venham a dar. Se Donald Trump for reeleito, este processo de paz social, de generalização da necropolítica e da agressividade dos discursos do ódio será a coluna vertebral das direitas nos próximos tempos.
Falando de euforia financeira, Portugal tem capacidade para aproveitar os milhões que vão começar a chegar da Europa, ou voltaremos a perder a oportunidade do desenvolvimento?
Houve muito desperdício, até corrupção e um desbaratar de oportunidades dos fundos europeus, mas houve também casos de sucesso e de aproveitamento de infraestruturas. Pode-se dizer que há rotundas a mais e autoestradas excedentárias, mas há outras que não dispensaríamos por serem necessárias. O que podemos perguntar é se, num momento em que há uma taxa de execução baixa do último quadro plurianual, for preciso uma execução ao nível do dobro da que temos tido dificuldade em cumprir, haverá forma de selecionar bem os projetos? Há o risco de haver muitos erros e será necessário ter uma capacidade de gestão e de mobilização muito importante, o que vai em grande medida depender da qualidade da governação. É que as grandes empresas pensam sempre nestes fundos numa lógica de cash flow e de entradas imediatas para a substituição de despesa, uma forma de facilitar alguns investimentos reduzindo o risco ou aumentando o seu poder sobre o Estado, pressionando para a existência de parcerias público-privadas e situações de monopólio. Por isso é que o Goldman Sachs diz que as ações da EDP são tão boas: pelo facto de ser um monopólio - por acaso chinês - e poder cobrar preços altíssimos sobre a população. Se o Estado tiver um governação atenta e exigente, então há possibilidade de se usar estes novos fundos para renovar o sistema de educação, baixar os custos da internet para aumentar o emprego qualificado, alterar as normas de precarização do emprego e conseguir resultados importantes para os portugueses.
O plano de António Costa Silva para a recuperação da economia esteve em consulta pública até sexta-feira passada (dia 21). Os portugueses analisaram essa proposta ou passou-lhes despercebida?
A consulta pública estava feita para passar despercebida. Aliás, esse regime é frágil e fazê-lo em julho e agosto é uma forma de minimizar o plano. O plano merece discussão, trabalho e aprofundamento, mas isso só pode ser medido com a concretização de investimentos prioritários, porque não se pode fazer tudo ao mesmo tempo e existem algumas urgências. Temos até 2030 para uma alteração substancial do trânsito nas cidades e redução das emissões devido às alterações climáticas; de imediato, a criação de emprego e fazer a escolha sobre se se mantém este regime de trabalho temporário e tuktukização dos empregos dos jovens ou se, pelo contrário, se cria qualificação do trabalho e da capacidade produtiva. O debate inexistente sobre esse plano não podia contribuir para isso, portanto espero que haja a possibilidade de o fazer a curto prazo. Contudo, há algo que está à frente de tudo: a urgência dos próximos meses. Não é um plano que concebe alterações a dez anos que responde às pessoas que vão perder o emprego em setembro e outubro - e vão ser muitas. Essa é a prioridade das prioridades.
Ouvimos nesta semana uma palavra pouco habitual: "Cobardes." Esta afirmação do primeiro-ministro foi clarificadora ou foi mais um tsunami social em tempos de pandemia?
Nem uma coisa nem outra. Insere-se num contexto de nervosismo e de bate-boca episódico com a Ordem dos Médicos. O conflito tem um valor muito relativo, mas o certo é que há uma triangulação difícil, pois está num lado o Governo e, no outro, a Ordem, no entanto também se cruza com o conflito entre os serviços de saúde e as IPSS e as organizações privadas. Estes interesses locais das IPSS - a intenção exprimiu-se neste caso e noutros recentes - mostram que há uma politização pela intervenção do ministro-sombra da Saúde, que é o bastonário da Ordem dos Médicos, e isso provocou nervosismo num Governo que várias vezes reage de uma forma destemperada.
Essas cenas da vida política na praça pública, designadamente com as ministras Marta Temido e Ana Mendes Godinho, servem para alguma coisa ou é perseguição às governantes?
O escrutínio público é-lhes crítico, portanto não é perseguição. A ministra da Saúde cometeu com consistência erros durante estes meses todos, muito pressionada e muitas vezes condicionada com as dificuldades óbvias do sistema de saúde. A ministra Mendes Godinho é alguém que foi escolhida por uma questão de relações públicas e não tanto por conhecer os dossiês do Trabalho e da Segurança Social. Essa fragilidade nota-se todos os dias e é problemática, porque com o desemprego e a precariedade era preciso ter alguém no ministério que fosse muito capaz de dialogar e encontrar soluções. Não é o caso.
Pode-se dizer que tanto o PCP como o Bloco de Esquerda estão demasiado calmos na oposição e deixam que seja mais Rui Rio a fazê-la? O que se passa?
Creio que Rui Rio procura nas questões essenciais uma proximidade com o Governo que tem prejudicado Portugal. O desprezo pelas normas democráticas e o desinteresse pelo escrutínio público fazem parte de uma costela autoritária que o PS e o PSD partilham e que encontraram com grande prazer. O que o Bloco e o PCP fazem, creio, é procurar afirmar uma relação de forças com alternativas consistentes que respondam às pessoas, e cabe-lhes procurar soluções e não dar cartas.
Prognósticos para as próximas eleições norte-americanas...
Eu não faria apostas, porque Joe Biden tem alguns pontos de vantagem, mas há 30 anos Dukakis tinha quase o triplo e perdeu para Bush pai por sete pontos. Porque Bush fez pela primeira vez na história americana uma campanha suja e moderna, e Trump é o rei da campanha suja. Vamos ver coisas inconcebíveis, e resta saber que efeito terão nesta campanha. A grande novidade é que Trump pode perder... o que não acontecia há seis meses.
O candidato a Presidente da República André Ventura estragará a votação a Marcelo Rebelo de Sousa?
Não. O André Ventura está num campeonato de terceira divisão e joga com a polarização daqueles rufias da extrema-direita e umas "tonitruâncias" que pensa que podem polarizar a sociedade, como o ódio aos ciganos, mas tudo isso é uma pequena esfera de influência.
Enquanto académico, como vê o "ensaio" de Ricardo Marchi sobre o Chega? É uma investigação ou foi um apoio declarado?
Nem uma coisa nem outra. Não é uma investigação académica, pois é displicente e despreza as regras básicas da investigação científica, mesmo que se apresente como tal. É uma espécie de reportagem em que os dirigentes do Chega se explicam, e Marchi, com um enlevo indisfarçável, dá-lhes voz para explicarem porque é que o racismo não é racismo ou porque é que o ódio aos pobres é uma espécie de caridade. Portanto, é um trabalho académico incompetente e ideologicamente enviesado.
Um dos mistérios da vida política nacional foi o de ter abandonado inesperadamente a liderança do Bloco de Esquerda. Qual foi a razão?
Não há nenhum segredo. Tinha 13 anos de Parlamento e 15 de trabalho muito intenso na direção e de representação do Bloco e achava que devia haver um limite autoimposto para continuar nessas funções. Considero que é preciso renovação de gerações na liderança de forma a ganharem uma experiência política.
Não se arrependeu?
Nada, pelo contrário, as circunstâncias acabaram por provar que era útil ao coletivo do partido não se eternizarem as formas de representação e encontrar caras e expressões novas.
O que vai fazer quando acabar a pandemia?
Espero, logo que possível, retomar a atividade normal e poder dar aulas no próximo semestre. Mesmo que algumas sejam virtuais, haver tanto quanto possível presenciais, e em que se possa ter os alunos a olhar para os professores e a fazer perguntas.