Inspetores do SEF condenados a penas de prisão entre os sete e nove anos

Ihor Homeniuk morreu a 12 de março de 2020, há catorze meses, nas instalações do SEF do aeroporto, depois de ter estado mais de oito horas atado com fita adesiva, algemado e de ter sofrido agressões. A autópsia concluiu que morreu por asfixia lenta
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Os três inspetores do SEF foram condenados a penas de prisão entre os sete e nove anos pelo crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado.

O tribunal deu como provado que os três inspetores do SEF mataram Ihor, pois a morte deste foi consequência direta da sua ação.

Duarte Laja e Luís Silva foram condenados a nove anos de prisão e Bruno Sousa a sete.

O juiz presidente do coletivo, Rui Coelho, anunciou ter mandado extrair certidões para que o Ministério Público investigue a atuação de seguranças e outros inspetores que interagiram com Ihor e nada fizeram.

"Os senhores ao agirem como agirem tiraram a vida a uma pessoa e arruinaram as vossas", disse o juiz presidente.

Durante a leitura da sentença esta segunda-feira (10 de maio) no campus de justiça, o magistrado considerou que os três inspetores tiveram "culpa elevada " na morte de Ihor Homeniuk.

Luís Silva e Bruno Sousa vinham também acusados de posse de arma ilegal, bastões extensíveis, mas foram absolvidos dessa imputação.

Rui Coelho destacou ainda pela negativa o comportamento de todos aqueles que tiveram conhecimento do estado de Ihor e nada fizeram; dos que o "amarraram como a uma embalagem sem se preocuparem com as consequências ".

O tribunal considerou provado que os três arguidos "agiram com o propósito de bater e causar dor, para que a vítima ficasse quieta sem perturbar o funcionamento do Centro de Instalação e sem se preocuparem com as consequências ".

Ficou provado que esta conduta resultou nas lesões descritas na autópsia que causaram a morte de Ihor Homeniuk por asfixia mecânica.

Não ficou provado que o tivessem feito com intenção de matar. "Se a intenção fosse matar tê-lo-iam feito de imediato ", sublinhou o juiz.

Por isso, acrescentou, " não podem ser condenados por homicídio ". No entanto, assinalou, "quiseram magoar, causar dor ". O magistrado sublinhou ainda que a utilização sem controlo das algemas, como o que sucedeu, "pode ter sido tão ou mais graves do que as lesões nas costelas". Ihor esteve cerca de oito horas, depois de ter sido agredido, deitado no chão e algemado atrás das costas.

"Foi um processo longo e agonizante ", concluiu o tribunal.

Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva chegaram a este julgamento acusados pelo crime de homicídio qualificado, com uma moldura penal que podia ir aos 25 anos de cadeia, tendo Bruno Sousa e Luís Silva sido ainda acusados por posse de arma ilegal (bastões cuja legalidade do porte deixou dúvidas).

Já nas alegações finais e perante os testemunhos e a prova produzida em julgamento, o Ministério Público (MP) recuou e pediu a condenação dos três inspetores apenas "por ofensas integridade física qualificadas agravadas pelo resultado", com penas entre 8 e 16 anos.

Tendo em conta o grau de culpa de cada um dos inspetores do SEF acusados, nas alegações finais do julgamento, a procuradora Leonor Machado pediu para os arguidos Duarte Laja e Luís Silva uma condenação entre 12 e 16 anos de prisão, mas de preferência não inferior a 13 anos.

Quanto ao arguido Bruno Sousa, a procuradora entendeu que o seu grau de culpa foi menor, por ter sido influenciado pelos restantes arguidos, pedindo uma condenação a uma pena de prisão não inferior a oito anos.

Esta mudança do MP foi precedida de um anúncio do juiz presidente do coletivo, Rui Coelho, que na última sessão do julgamento tinha anunciado que o tribunal ponderava alterar a acusação de homicídio qualificado para ofensa à integridade física qualificada, agravada pelo resultado (morte), cuja moldura penal é de entre quatro e 16 anos de cadeia, conforme, aliás, o DN tinha antes prognosticado.

Numa investigação da PJ, numa acusação do MP e num julgamento em que nem sequer foram ouvidos nenhum dos 112 cidadãos estrangeiros que estavam no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do SEF no aeroporto ao mesmo tempo que Ihor e terão testemunhado violência, conforme lembrou José Gaspar Schwalbach, advogado da família de Ihor, com destaque para Letícia Calil, que falou ao DN, sob anonimato em novembro, e depois assumindo a sua identidade a 26 de fevereiro, disponibilizando-se para testemunhar, requerimento que o tribunal indeferiu, ficou a clara suspeita de que a responsabilidade por esta morte não se terá resumido ao momento da intervenção destes três arguidos.

Conforme o DN descreveu em novembro passado, a "Ilegalidade, incúria, mentira e desumanidade" no SEF do aeroporto revelado pela morte de Ihor Homeniuk, desvendaram muitas falhas no tratamento dos imigrantes, com uma IGAI sem meios para fiscalizar, um SEF a desvalorizar queixas; uma PSP alheada das suas competências, e uma desresponsabilização ao mais alto nível, como a da ex-diretora do SEF que só foi demitida em dezembro, nove meses depois da morte, assumindo que se estava perante uma situação de "tortura evidente".

Neste momento, recorde-se, o MP, coadjuvado pela PJ, tem dois outros inquéritos em investigação relacionados com este caso. Um que sobre o eventual encobrimento de outros inspetores ao crime, inquérito aberto por extração de certidão logo a seguir à dedução da acusação em setembro do ano passado.

Outro sobre a alegada atividade ilegal de segurança privada naquele EECIT, um processo que foi instaurado na PSP (tem competências de fiscalização deste setor) com base numa queixa do Sindicato da Carreira de Inspeção e Fiscalização do SEF, que representa os inspetores.

Paralelamente à investigação criminal, a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) tem a decorrer processos disciplinares sobre 13 inspetores e uma funcionária administrativa do SEF que, no entender deste organismo que fiscaliza a atividade policial, "por ação ou omissão" contribuíram também para a morte de Ihor.

Entre eles está o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa e o seu número dois, responsáveis pelo SEF do aeroporto Humberto Delgado, demitidos no dia 30 de março quando foram detidos Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva.

Nas alegações finais, a procuradora do MP salientou a "falta de misericórdia" e a "omissão de solidariedade" manifestada pelos acusados, num contexto em que o objetivo era manter Ihor Homeniuk algemado e imobilizado para "custe o que custasse" embarcasse de avião em 12 de marco, de regresso à Turquia, ponto de paragem da sua viagem desde a Ucrânia.

Por sua vez, José Gaspar Schwalbach lembrou os pormenores mais chocantes relatados pelas testemunhas, nomeadamente que o trio de inspetores fechou a porta da sala onde estava o passageiro ucraniano e durante mais de 15 minutos o agrediram, deixando-o com as algemas atrás das costas e de barriga para baixo, "sem liberdade para respirar", o que levou à morte da vítima "por sufocação" lenta.

Realçou ainda o mesmo advogado a "forma humilhante" como Ihor Homeniuk foi "agredido e deixado sozinho" algemado, tendo um dos inspetores declarado à saída da sala onde o ucraniano foi agredido que naquele dia "já não precisava de ir ao ginásio".

A utilização de bastão nas agressões a Ihor Homeniuk, o relato de testemunhas sobre os gritos "agonizantes" proferidos pelo passageiro ucraniano e audíveis fora da sala e a especial "censurabilidade" pela forma como os inspetores atuaram diante de um passageiro algemado e imobilizado, levaram o advogado da família a defender, perante o coletivo de juízes, que os arguidos deviam ser condenados pelo crime de que estão acusados: homicídio qualificado.

Mas tendo em conta todos os testemunhos que foram sendo ouvidos, principalmente os que demonstraram que houve outros inspetores e seguranças que, por ação ou omissão, podem ter contribuído igualmente para essa morte - tal como a Inspeção-Geral da Administração Interna concluiu no seu inquérito em que processou um total de 13 inspetores - dificilmente se provaria que foi exatamente e apenas a ação, que teria de ser dolosa, dos três inspetores a provocar por si só o desfecho trágico.

Maria Manuel Candal , advogada de Luís Silva (o inspetor que as câmaras de videovigilância filmaram a entrar com um bastão na sala onde estava Ihor) elencou, nas suas alegações finais, um total de 19 pessoas que, no seu entender, deviam ter sido constituídas arguidas - todos os outros inspetores que estiveram com Ihor, incluindo superiores hierárquicos, seguranças, enfermeiros, socorristas.

A responsabilidade criminal que atribui a todos aqueles que, entre a chegada de Ihor Homeniuk ao nosso país, pelas 10h25 do dia 10 de março de 2020 e o seu óbito, pelas 18h40 do dia 12 de março de 2020, com o mesmo interagiram, é vasto: homicídio por omissão, sequestro, omissão de auxílio, ofensas à integridade física simples, qualificadas e por negligência, omissão de denúncia, demissão do exercício de funções "contribuindo decisivamente para o resultado da morte".

Destaque para dois dos seguranças da Prestibel - empresa contratada pelo SEF para fazer a gestão quotidiana dos centros de detenção de estrangeiros desta polícia, que a acusação descreveu terem, "sem autorização e competência para tal", algemado Ihor "com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços".

Estes dois seguranças, Manuel Correia e Paulo Marcelo, admitiram perante o tribunal ter manietado o cidadão ucraniano com fita adesiva, e duas outras, colegas destes (Cátia Branco e Ana Sofia Lobo), tê-los assistido nessa ação.

No relatório da IGAI, um formador do SEF afirmou que manietar alguém com fita adesiva é uma prática proibida às polícias e que pode ser considerada tortura.

Estes quatro e outros quatro funcionários da empresa, num total de oito, disseram também ao tribunal que ouviram gritos de Ihor quando os três inspetores acusados pelo seu homicídio estavam com ele, e que atribuíram esses gritos à dor provocada por agressões que os três polícias estariam a perpetrar sobre o detido.

Do mesmo modo, vários inspetores do SEF foram à divisão onde Ihor estava isolado e algemado, de mãos atrás das costas, e nada fizeram; superiores hierárquicos dos três inspetores em julgamento, e que tinham conhecimento de que estes tinham algemado o detido, nunca se interessaram em saber se Ihor tinha sido desalgemado - e durante o período referido a nenhum dos responsáveis do SEF ocorreu ir verificar se este, deixado algemado e sozinho, estava bem.

O crime de omissão de auxílio, previsto no artigo 200º do Código Penal e com pena até um ano, consiste na não ação de "quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa" deixar de lhe prestar o auxílio "necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro." A pena aumenta para o dobro se quem não auxilia tiver causado a situação referida.

De acordo com o relatório da autópsia, o facto de ter sido deixado, durante mais de oito horas, algemado, deitado e de mãos atrás das costas, o que dificulta muito a respiração, contribuiu, em conjugação com lesões causadas por agressões - costelas fraturadas - para a morte por "asfixia mecânica" do cidadão ucraniano.

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