SEF. A fiscalização que falhou em toda a linha. Reforço da IGAI na gaveta há dois anos
Nem a inspeção interna do SEF nem a externa, da Inspeção-Geral da Administração Interna - organismo que fiscaliza as polícias - detetaram as inúmeras ilegalidades e práticas desumanas daquele serviço de segurança no aeroporto de Lisboa. A IGAI só veio a identificá-las na investigação da morte de Ihor.
A Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) continua sem explicar porque não fez nenhuma fiscalização sem aviso prévio ao centro de detenção do SEF onde, depois da morte de Ihor Homeniuk, foi encontrar inúmeras ilegalidades, descoordenações, incúrias e práticas desumanas no funcionamento desta polícia.
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Conforme o DN noticiou, as designadas Inspeções Sem Aviso Prévio (ISAP's) aos locais onde ficam detidos os estrangeiros aos quais é recusada a entrada em território nacional - Centros de Instalação Temporária (CIT) do SEF e Espaços Equiparados (EECIT), como o do aeroporto de Lisboa -, é uma competência da IGAI desde 2015 mas, apesar de nos seus relatórios de atividades classificar estes locais como "problemáticos" não há nos mesmos referências a conclusões ou recomendações em resultado de ISAP's no EECIT de Lisboa.
Durante esta semana o DN insistiu com a IGAI para esclarecer se, além das ISAP's, tinha realizado algum outro tipo de ação de fiscalização - também pode realizar inspeções ou auditorias, mas estas não são sem aviso - naquela unidade do SEF, nos últimos anos, mas não recebeu qualquer resposta.
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Na verdade, a ter realizado alguma inspeção, ou não detetou a impressionante e extensa lista de ilegalidades identificadas no seu inquérito às circunstâncias da morte de Ihor Homeniuk, concluído no passado mês de setembro, e que se terão tornado uma normalidade na prática dos inspetores do SEF ali destacados, ou tendo-as detetado as recomendações ao SEF para as corrigir terão caído em saco roto.
A IGAI tem apenas oito inspetores num quadro que devia ter 14, para fiscalizar quase 50 mil polícias da GNR, PSP e SEF.
De assinalar que a IGAI se encontra atualmente em mínimos sem precedentes de recursos humanos: tem apenas oito inspetores num quadro que devia ter 14, para fiscalizar quase 50 mil polícias da GNR, PSP e SEF.
Reforço da IGAI na "gaveta" há dois anos
Desde 2018 que os responsáveis deste organismo estão à espera de que o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, dê luz verde a uma proposta de alteração à lei orgânica do serviço que, além de proporcionar mais autonomia às suas ações (por exemplo, poder instaurar processos disciplinares sem a a aprovação prévia da tutela), também lhe permita reforçar o quadro de inspetores com magistrados.
Questionado pelo DN sobre o motivo desta demora em criar mais e melhores condições para a IGAI poder exercer a sua missão, o Gabinete de Eduardo Cabrita não respondeu.
"Temos de apurar se foi um caso isolado (...); se o problema for do sistema, é o sistema que tem de ser substituído (...). Importa verificar se há ou não há um pecado mortal do sistema" - estas declarações o Presidente da República, as primeiras feitas publicamente sobre o caso Ihor Homeniuk, nove meses depois de morrer sob custódia do SEF, têm resposta nas vários testemunhos ouvidos pelo DN, que relatam agressões, ameaças, humilhações e outros desmandos sofridos por estrangeiros a quem foi recusada a entrada em Portugal ou, vivendo no país, tiveram ordem de expulsão por terem cometido crimes ou por se encontrarem em situação ilegal.
As inspeções "sem aviso prévio" da IGAI visam averiguar, precisamente, qual a prática do SEF no que respeita a direitos humanos. É isso que diz o despacho 1728/2015, que aprova o "Regulamento dos Procedimentos de Inspeção e Fiscalização de Centros de Instalação Temporária (...)" : "Acautelar situações de violação de direitos fundamentais dos cidadãos" e "fiscalizar a condição dos cidadãos estrangeiros que, no momento da visita, se encontrem no CIT/EE , bem como exercer controlo relativamente às condições de habitabilidade e segurança das instalações e ao mérito do funcionamento dos serviços".
De acordo com a única informação disponível na página da internet da IGAI, este organismo - sob tutela política do Ministério da Administração Interna (MAI) - presta contas do acompanhamento que faz dos chamados "retornos forçados", que são os casos de estrangeiros em situação ilegal no país e de reclusos estrangeiros que cumpriram pena de cadeia e têm também como sanção acessória a expulsão.
a IGAI, apenas acompanha, em média, cerca de 3 a 4% dos retornos forçados e nunca detetou qualquer sinal de atuações violadoras dos direitos humanos.
Sobre estes há também muitos relatos de ameaças e agressões, mas a IGAI apenas acompanha, em média, cerca de 3 a 4% destes casos, segundo se pode constatar nos relatórios de atividades publicados, e nunca detetou qualquer sinal de atuações violadoras dos direitos humanos.
Se não há dúvida, para o Ministério Público (MP), que as agressões dos três inspetores do SEF acusados de homicídio qualificado foram a causa imediata da morte do cidadão ucraniano, foi também identificada pela IGAI, no seu inquérito às circunstâncias do crime, do topo à base do SEF do aeroporto, uma cadeia de ilegalidades, diluição de competências, regulamentos não cumpridos, omissões e desorganização, para além de comportamentos desumanos.
"Espécie de organização interna"
"Uma espécie de organização interna que na prática depende do entendimento entre pessoas." Foi assim que o inspetor coordenador superior Sérgio Henriques, responsável máximo da Direção de Fronteiras de Lisboa (DFL) - na qual trabalham cerca de 290 agentes do SEF -, descreveu à IGAI o serviço que esteve sob as suas ordens até ser demitido a 30 de março, no mesmo dia em que foram detidos os três suspeitos da morte de Ihor. Henriques é um dos 13 inspetores alvo de processo disciplinar pela IGAI no âmbito do inquérito à morte do cidadão ucraniano.
Nesse mesmo inquérito a IGAI diz ser "evidente a desconformidade da atuação de vários agentes do SEF, expondo e evidenciando o exercício deficitário das competências atribuídas à DFL, enquanto entidade responsável pelo Posto de Fronteira do aeroporto de Lisboa", cuja "orgânica não se encontra formalmente regulamentada".
Identifica uma Unidade de Apoio e uma Unidade de Apoio Geral, as quais "na ausência de um órgão ou serviço específico, representa objetivamente uma diluição das responsabilidades dos diferentes inspetores escalonados para o exercício das funções de Inspetor de Turno".
E salienta "não só o comportamento desconforme e censurável destes agentes, mas também o desvalor pelas disposições legais e normativos internos que regulamentam as várias fases do processo de recusa de entrada em território nacional e permanência de passageiros não admissíveis, desde logo na falta de competência para decisão de recusa de entrada do cidadão ucraniano IHOR e na custódia do mesmo à guarda do SEF no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT)."
A IGAI assinala ainda que a colocação de Ihor na sala dos Médicos do Mundo, "isolando-o dos restantes passageiros, confinando-o a um espaço reduzido sem luz natural, enquanto medida especial de segurança, não foi autorizada pelo Diretor da DFL, única entidade com competência para tal aplicar medidas especiais de segurança, sendo claro que tais medidas de segurança, quando autorizadas, se mantêm apenas enquanto durar o perigo que determinou a sua aplicação".
E constata que "é prática comum entre os inspetores e vigilantes a colocação de passageiros inadmitidos nesta sala para se acalmarem, não existindo a necessidade de obter autorização prévia do diretor da DFL ou mesmo de lhe dar qualquer conhecimento desta situação", acentuando que "todo o comportamento que se baseia na mera presunção desta autorização é, pois, ilegítimo e contrário aos direitos, liberdades e garantias (bens jurídicos fundamentais) que se visa proteger".
"Postura generalizada de desinteresse pela condição humana e desconhecimento dos procedimentos"
A IGAI conclui também que a atuação de todos os intervenientes neste caso, sejam do SEF, da empresa de segurança ou da Cruz Vermelha Portuguesa, denota uma "postura generalizada de desinteresse pela condição humana e desconhecimento dos procedimentos a adotar em determinadas situações, seja por ausência de uma orientação clara sobre as ações a praticar em determinados momentos, seja por falta de interesse em saber como agir".
Bastões à margem da lei
De acordo com a prova recolhida, quer pelo MP, quer pela IGAI, um dos inspetores constituído arguido utilizou um bastão para agredir Ihor, uma arma que não faz parte do armamento destes profissionais e que necessita de uma autorização especial de porte - que o inspetor em causa não possuía..
Este bastão não terá sido visto, ou foi oportunamente ignorado , pelo ex-diretor da DFL, Sérgio Henriques, e pelo coordenador do Gabinete de Inspeção do SEF, João Ataíde, quando visionaram as imagens de videovigilância que mostram um dos inspetores acusados a entrar na sala onde estava Ihor empunhando esta arma.
João Ataíde demitiu-se esta semana, quando ouviu em direto na TV o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, na audição no parlamento sobre o caso, a anunciar que lhe tinha instaurado um processo disciplinar, nove meses depois da morte de Ihor, por este ter escrito numa informação a 17 de março que "após o visionamento das imagens de videovigilância não encontrou indícios de agressões e maus-tratos a esse cidadão".
A autorização de aquisição, detenção, uso e porte de bastões extensíveis aos elementos das forças e serviços de segurança carece de autorização do diretor nacional da PSP.
De acordo com a resposta enviada à IGAI pelo SEF, no âmbito do inquérito, "não há, nem havia à data de 12 de março, nenhum bastão extensível distribuído pelo SEF ao PF001/EECIT PF001 ou a qualquer funcionário daquela unidade orgânica".
Dois dos inspetores arguidos possuíam estes bastões e tinham-nos na sua posse quando foram detidos, a 30 de março. Os bastões foram analisados e um deles tinha vestígios de sangue humano - mas a quantidade da amostra não permitiu perceber se era compatível com o ADN de Ihor.
No entanto, um inspetor ouvido pela IGAI confirmou "que existem inspetores do SEF, em serviço no aeroporto Humberto Delgado, que ostentam à cintura bastões extensíveis, julgando que seria suficiente possuir o Nível 2 de segurança, para poder usar esse dispositivo". Mais um exemplo da falta de controlo superior e da falha de fiscalização do próprio SEF.
Ainda segundo a IGAI, "no contexto da aplicação legítima de uso de força, ficou demonstrada a ilegalidade das medidas aplicadas ao cidadão ucraniano (uso de fita adesiva e outros materiais não admitidos) a desnecessidade das mesmas (imobilização física do cidadão quando este não constituía qualquer risco para si ou outros), a sua inadequação (imobilização total do cidadão para o "acalmar") e desproporcionalidade (contenção e imobilização total que se iniciou desde a colocação do cidadão Ihor na sala dos médicos, até à declaração do seu óbito)".
Direitos coartados
A IGAI encontrou ainda no funcionamento do SEF do aeroporto uma atitude de "desvalor atribuído pelos inspetores do SEF e, em especial, pelo então Diretor da DFL, sobre a necessidade de garantir uma comunicação efetiva com os cidadãos que não falem a língua portuguesa".
A IGAI notou que, em relação a nacionais que não falem os correntes inglês ou francês, o SEF apenas tem "soluções de recurso": tradutores, constantes numa determinada lista telefónica, que não se encontram nas instalações do SEF; outros inspetores do SEF que tenham alguns conhecimentos na língua em questão - no caso de Ihor foi chamada uma inspetora com conhecimentos de russo -; outros passageiros estrangeiros, que possam ajudar na tradução; aplicações disponíveis para telemóvel (tradutor do google).
Todos os elementares direitos que tem qualquer cidadão, a quem é recusada a entrada em território nacional, e é colocado no Centro de Instalação Temporária, ou num EECIT, como o do aeroporto, foram amputados a Ihor. São eles: a possibilidade de comunicar com a representação diplomática ou consular do seu país ou com qualquer pessoa da sua escolha; assistência de intérprete; assistência de cuidados de saúde, incluindo a presença de médico, quando necessário (neste caso foi assistido apenas no hospital quando chegou); todo o apoio material necessário à satisfação das suas necessidades básicas; o acesso à assistência jurídica por advogado, em tempo útil e a expensas do próprio ou, a pedido, à proteção jurídica.
Alertas ignorados
Segundo garantiu o governo - garantia essa caucionada pela IGAI e pela Provedora da Justiça - todas estas omissões foram corrigidas com o novo regulamento do EECIT de Lisboa, reaberto desde agosto, depois de ter estado encerrado para obras após 30 de março, quando foram detidos os inspetores.
Se todas estas falhas podiam ter eliminadas antes da morte de Ihor? Possivelmente sim. Os alertas para os riscos de tortura naquele centro tinham vários anos.
Recorde-se que a provedora de Justiça tem, no âmbito da sua atuação como Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura (MNPT), alertado para os riscos deste EECIT. Isso mesmo lembrou Maria Lúcia Amaral ao DN: "A Provedoria de Justiça vem há muito e reiteradamente alertando as autoridades competentes para as condições absolutamente inadequadas e para os riscos de tortura, em especial no EECIT [espaço equiparado a centro de instalação temporário] de Lisboa, bem como para a imperiosa necessidade de soluções alternativas condignas para acolher quem chega ao nosso país e não recebe permissão de entrada."
Já em 2018, em entrevista ao Público, a provedora tinha designado os CIT de "verdadeiro no man's land [terra de ninguém] contemporâneo", dizendo-os "um universo impenetrável". Porque, explicava, "nas prisões a família visita regularmente, há advogados. Estas pessoas não têm ninguém, é um domínio de grande obscuridade e é isso que faz que a preocupação seja grande".
Resta saber se a anunciada reforma do SEF, cuja discussão se tem, até agora, centrado na separação das competências policiais e administrativas desta polícia, terá atenção em garantir meios a todos os mecanismos de fiscalização para prevenirem e detetarem a tempo todas as falhas que possam pôr em causa os direitos humanos dos estrangeiros, imigrantes, requerentes de asilo e condenados que tenham que passar pelo escrutínio ou custódia dos inspetores do SEF.