Tancos. Tudo o que Carlos Alexandre já sabe, com ajuda do cabecilha do assalto
Quantos dos 23 arguidos do caso Tancos - nove pelo assalto e 14 por terem encenado ilegalmente a recuperação do material de guerra furtado - vão chegar a julgamento? Suspeitos traficantes de droga e armas, um ex-ministro, coronéis, sargentos e guardas da GNR e da Polícia Judiciária Militar (PJM), estão acusados de crimes que vão desde apoio ao terrorismo, associação criminosa, denegação de justiça e prevaricação até falsificação de documentos, tráfico de influência e abuso de poder
A resposta está nas mãos do juiz de instrução Carlos Alexandre, que vai ouvir esta segunda-feira os últimos argumentos dos advogados de defesa, no designado debate instrutório - equivalente às alegações finais de um julgamento. O magistrado não escondeu a sua perplexidade com tantas contradições nas versões dos arguidos.
O inquérito de Tancos investigou o furto, em 28 de junho de 2017, e as circunstâncias em que aconteceu a recuperação de grande parte do material militar, em 18 de outubro do mesmo ano.
A instrução do processo, que começou em janeiro, foi pedida por 15 dos arguidos, entre os quais o ex-ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, e o ex-diretor da PJM, coronel Luís Vieira - estes no grupo da farsa do achamento. Tanto Azeredo Lopes, como coronel negaram ao longo de todo o processo ter tido conhecimento da encenação e, no caso de Luís Vieira, o tribunal de Relação de Lisboa chegou a ordenar a sua libertação por entender que os indícios nesse sentido não era suficientemente fortes.
João Paulino, um ex-fuzileiro já conhecido das autoridades por ligações ao mundo da criminalidade, é apontado pelo Ministério Público (MP) como o cabecilha do assalto. Foi detido a 25 de setembro de 2018, na Operação Húbris, juntamente com Vieira e outros militares da PJM e da GNR. Foi libertado em janeiro último, por ter atingido o prazo máximo da prisão preventiva (pelo mesmo motivo e também por causa do covid-19 foram libertados os outros suspeitos do assalto em março).
Paulino era o único do grupo dos suspeitos do furto que podia confirmar o acordo feito com os militares da GNR e da PJM, em que o MP baseia toda a parte da acusação relativa à encenação ilegal da recuperação das armas. Paulino teve aqui um papel fulcral na corroboração da tese do MP.
E fê-lo com todo o detalhe, assegurando que essas negociações eram acompanhadas ao mais alto nível, designadamente por Luís Vieira, acusado de associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação de documento, denegação de justiça, favorecimento pessoal e Azeredo Lopes, acusado de denegação de justiça, prevaricação, favorecimento pessoal e abuso de poder.
Carlos Alexandre terá até interrompido relato de João Paulino para frisar a importância daquelas palavras e alertar João Paulino para a consequência das mesmas. "Isso pode levar pessoas a julgamento", terá advertido.
O ex-fuzileiro, que sempre se recusara antes a prestar quaisquer declarações, afirmou logo no início da inquirição, que durou cerca de cinco horas, que só iria mesmo falar sobre o achamento. Sobre o assalto, zero.
Mesmo com Carlos Alexandre a insistir que o seu testemunho poderia ajudar algum dos suspeitos cúmplices a não ir a julgamento, João Paulino manteve todos os outros oito acusados do furto sob suspeita, não contribuindo para os livrar de ser pronunciados.
Dois dos advogados ainda conseguiram, sub-repticiamente, levar João Paulino a quase defender a inocência dos seus constituintes, mas alertado pela sua defesa, logo recuou e frisou que não queria prejudicar ou privilegiar nenhum deles. "Estão todos no mesmo patamar", terá dito, segundo contou ao DN fonte que esteve presente na inquirição.
Contas feitas, dificilmente Carlos Alexandre deixará de pronunciar, não só o ex-fuzileiro - que acabou por confessar o seu envolvimento e deixar implícito em todo o seu testemunho que tinha sido ele o mentor do furto do material de guerra, bem como da negociação ilegal com a GNR e a PJM para as devolver - mas todo o grupo envolvido neste rocambolesco assalto aos paióis nacionais do Exército em Tancos: António Laranginha, Pedro Marques, Hugo Santos, Gabriel Moreira, João Pais "Caveirinha" e Fernando Santos, Valter Sousa e Filipe Santos.
João Paulino não quis dizer onde estava o material que faltava na entrega (munições, explosivos e granadas), possivelmente por estar relacionado com o processo do roubo das 53 Glock da PSP, que tem como arguido um dos seus alegados cúmplices de Tancos, Laranginha.
Não explicou também nada sobre o destino que pretendia dar às armas. Refutou de forma veemente que tivesse qualquer ligação a organizações terroristas, mas há, pelo menos, duas testemunhas, um deles um dos arguidos do grupo de assaltantes, que o contrariam, garantindo ao MP que o ouviram falar que o material se poderia destinar a grupos dissidentes da ETA - facto que surpreendeu até as autoridades espanholas.
Possivelmente esta é uma das interrogações que nunca será esclarecida, pois só Paulino o poderia confirmar. Uma coisa é certa, o grupo sabia bem o material que estava naqueles paióis, explosivos, granadas, munições para pistolas de 9mm, e este é usado no crime violento.
Ainda assim, dado a que a imputação pelo "crime de apoio a organização terrorista" decidia pelo MP apenas tem por base duas testemunhas (e uma delas terá sido Paulo Lemos, de alcunha "Fechaduras", referenciado com um dos informadores da PJ neste processo), Carlos Alexandre poderá não pronunciar os arguidos.
Mas foi na parte a que se dispôs a falar, no "achamento", que o ex-fuzileiro deixou satisfeito o MP, que ouviu da boca do próprio a confirmação das suas suspeitas mais alarmantes: o acordo feito para a entrega das armas implicava que não fosse preso, ou seja a sua imunidade por um crime grave cometido. Por várias vezes nesta sessão, contaram ao DN fontes que estiveram presentes.
Carlos Alexandre manifestou a sua incredulidade com o facto de João Paulino ter mesmo acreditado que iria sair ileso e que aquele acordo era executável e legal.
Em resposta, o ex-fuzileiro chegou a recordar que era jogador de pocker e que sabia bem o que era fazer bluff. "Se estavam a fazer bluff, era mesmo muito bem feito", terá afirmado. Paulino não tinha dúvidas que os seus interlocutores estavam a falar a sério. "Não estávamos ali a falar de rebuçados", sublinhou a Carlos Alexandre.
Relembrou ao tribunal que acabou por ficar quase um ano - entre a data em que o material foi recuperado a 18 de outubro de 2017 e a sua detenção a 25 de setembro de 2018 - sem que ninguém lhe tivesse ido fazer perguntas.
Isso significava, explicou ao juiz, que o acordo estava a ser cumprido - e no fundo, o caso teria ficado encerrado, não fosse a PJ e o MP terem desconfiado do achamento e começado a investiga-lo até conseguir esclarecer toda a operação e deter João Paulino, juntamente com vários militares da GNR, bem como o próprio diretor da PJM e o major Vasco Brazão, que assumiu desde início a "investigação" paralela.
O facto de ter acabado por ser preso não significou, no seu entender, que o acordo tivesse sido quebrado. "Não foram eles (PJM e GNR) que me prenderam", terá dito.
Para reforçar a sua convicção de que aquele acordo era, no seu entender, válido, o ex-fuzileiro invocou várias vezes a confiança que tinha em Bruno Ataíde, o militar da GNR de Albufeira de quem era amigo de infância e a quem pediu ajuda quando decidiu devolver o material.
Não disse exatamente em que data isso aconteceu (terá dito que foram um, dois meses depois do furto, portanto em julho ou agosto) mas confessou que estava "arrependido" e que queria entregar o material. Não abriu muito o jogo ao amigo, dizendo apenas que tinha estado envolvido no furto e que sabia quem tinha o material. A condição era não ser preso.
Não confirmou, ao contrário do que chegou a ser relatado por arguidos da PJM, que outra condição era afastar a PJ civil da investigação. João Paulino assumiu a Carlos Alexandre que estava "amedrontado" com todo o impacto mediático da sua operação - além de saber, através de vários artigos publicados na comunicação social, que era um dos alvos da investigação da PJ. "Não digo que estivesse em pânico, mas aquilo tudo tirava-me o sono", terá admitido ao magistrado.
Sublinhou que, apesar de tudo ter sido tratado apenas com Ataíde e com o sargento Lima Santos, por várias vezes estes insistiram que falasse com os seus superiores, da GNR e da PJM, que estavam a par de tudo. João Paulino recusou esses encontros, justificando que confiava plenamente em Bruno Ataíde e que não queria ser identificado por mais ninguém.
Segundo disse o seu advogado, Melo Alves, aos jornalistas, no final da sessão, João Paulino disse que foram os arguidos Bruno Ataíde e Lima Santos, ambos militares da GNR de Loulé e arguidos no processo, que lhe tinham falado na implicação do ministro da Defesa na "farsa" da recuperação das armas na Chamusca.
Nesta parte da investigação, o arguido implicou também superiores da GNR "de quem não conhece os nomes" e da PJM "sabendo apenas que o diretor da investigação era Vasco Brazão (também arguido)".
Segundo João Paulino, por diversas vezes, Bruno Ataíde e Lima Santos lhe sugeriram encontrarem-se com o diretor da Polícia Judiciária Militar (Luís Vieira) e com Vasco Brazão, mas tal não aconteceu.
No seu interrogatório, Bruno Ataíde, acusado de contribuir para encenação da recuperação das armas, já tinha dito em tribunal que a encenação da recuperação teve a conivência de superiores hierárquicos, nomeadamente da GNR.
João Paulino relatou a sua versão sobre a entrega das armas, a escolha do dia pelas condições meteorológicas e o local. No entanto, garantiu que o material não estava guardado na casa da avó em Portela de Carregueiros, ao contrário do que alega o MP.
Contou que tinha pedido a um amigo, que nunca foi envolvido no processo, que guardasse o material e o entregasse a Bruno Ataíde e Lima Santos. Não identificou esta personagem "mistério", mas também não teve explicação para as dúvidas suscitadas pela procuradora do MP que, na inquirição, lhe perguntou o que estavam então todos a fazer no terreno da referida avó outros arguidos da GNR e PJM, na véspera da devolução das armas.
Segundo a acusação do MP, a recuperação do armamento furtado dos paióis de Tancos, em junho de 2017, deve-se a um "verdadeiro pacto de silêncio entre Azeredo Lopes, que se demitiu do cargo de ministro a 12 de outubro de 2018, e os arguidos da GNR, PJM e que todos criaram sérios obstáculos à descoberta da verdade material".
Entre as 112 testemunhas do MP, estão a ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, o ex-chefe de gabinete do ministro da Defesa, general Martins Pereira (atual comandante do Comando das Forças Terrestres do Exército) e o antigo chefe da Casa Militar do Presidente da República, general João Cordeiro.
Segundo a acusação do processo, a ex-procuradora-geral da República Joana Marques Vidal foi responsável pela atribuição da investigação do furto e da encenação da recuperação das armas dos paióis de Tancos à Polícia Judiciária, contra a vontade do então diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM) Luís Vieira.
A antiga PGR disse, a 19 de março de 2019, na comissão de inquérito ao caso de Tancos, que a PJM atuou de forma ilegal no processo que levou ao "achamento" do material militar furtado, em 2017.
Por seu lado, o tenente-general João Cordeiro recebeu vários emails de Luís Vieira sobre o desagrado deste em que a investigação tivesse sido atribuída à PJ civil.
"Resulta dos dados de tráfego do telemóvel de Luís Vieira que o mesmo enviou uma mensagem escrita (SMS) e falou, telefonicamente, algumas vezes, com João Cordeiro nos dias após a visita aos paióis de Tancos e no próprio dia do achamento (das armas furtadas)", adianta a acusação.
Os procuradores consideraram não terem indícios suficientes para acusar João Cordeiro de abuso de poder, mas que resulta do seu depoimento e de emails apreendidos indícios da prática de falsidade de testemunho, razão pela qual extraíram certidão para investigação.
Além dos 23 acusados pelo assalto e pela recuperação do material furtado em Tancos, o MP acrescentou ainda outros suspeitos por crimes de obstrução à justiça e violação de segredo de justiça: a procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) Cândida Vilar, as procuradoras do Algarve Helena Miguel e Isabel Nascimento, o ex-diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ) Almeida Rodrigues estão entre eles.
Neste fase de instrução, marcada logo no início pelo polémico pedido de inquirição ao primeiro-ministro António Costa, um dos grandes desaires para a defesa dos arguidos, foram as "operações encobertas", alegadamente ilegais no entender dos advogados, da PJ, para incriminar o grupo de João Paulino.
Carlos Alexandre não autorizou que fosse dado acesso à defesa aos relatórios com os detalhes destas ações encobertas, daí que nada fosse acrescentado ou descontado à descoberta da verdade fundamental do que é a essência deste caso: o assalto e um alegado acordo à margem da lei entre polícias, militares e suspeitos criminosos.
A PJ e o MP foram ainda acusados, pelo advogado de um dos arguidos da GNR, de terem tido conhecimento do assalto, dois meses antes da sua concretização e de não terem alterado o Exército, o ministério da Defesa, nem a PJM.
A defesa do ex-chefe do Núcleo de Investigação Criminal de Loulé disse que PJ ocultou informações e deixou que o furto acontecesse. Em vez da PJM, PJ civil e o MP é que deviam estar no banco dos réus, sustentou este advogado num requerimento dirigo a Carlos Alexandre.
Esta tese baseia-se num dos factos deste processo que ainda não foi suficientemente entendido publicamente: uma denúncia ao MP (a uma procuradora de Vila Real), dois meses antes do furto, sobre o plano do assalto.
Ficou registada como anónima (a pedido do próprio denunciante) mas o MP e a PJ do Porto sabiam que o seu autor era Paulo Lemos "Fechaduras". Esta denúncia resultou na abertura de um inquérito, mas os pedidos de vigilância e escutas aos suspeitos, entre os quais o próprio João Paulino, foram barradas por sucessivos juízes de instrução, o último dos quais Ivo Rosa.
O ex-diretor da PJM e alguns setores militares acusaram o MP e a PJ de não terem informado a PJM, mas o inspetor da PJ que ficou responsável pela investigação nessa altura garantiu ao juiz que tinha partilhado esse dado com um inspetor-chefe da PJM do Porto - Roberto Pinto da Costa, um dos arguidos no processo de investigação ao furto de Tancos que o MP acusa de ter tido um envolvimento intenso na preparação da farsa da recuperação do material.
Nem na comissão de inquérito nem em tribunal Pinto da Costa terá confirmado que soube dessa denúncia, mas, segundo fontes que acompanharam os inquéritos dos arguidos, só no dia do assalto Pinto da Costa contou ao coronel Luís Vieira o que tinha sabido.
Durante a visita de Marcelo Rebelo de Sousa a Tancos, a 4 de julho de 2017 (uma semana depois do furto), o coronel revelou essa informação publicamente, criticando o MP e a PJ por não terem alertado o Exército, embora sem referir que a PJM também tinha sabido antes da denúncia.
Provavelmente porque Pinto da Costa também não lho disse, induzindo Luís Vieira num erro ainda maior que o levou a perder a confiança no MP e na PJ e, em nome do "interesse nacional", conforme invocou no seu interrogatório, arriscar deitar a perder toda a sua carreira numa farsa apenas para "vencer" a PJ civil e recuperar as armas roubadas, um crime que sempre defendeu ser "estritamente militar" e que devia ter sido investigado pela sua PJM.