As tramas de Tancos. Ex-diretor da PJ, procuradoras e mais militares estão a ser investigados
Além dos 23 acusados pelo assalto e pela recuperação do material furtado em Tancos, o Ministério Público quer continuar a investigar suspeitas de crimes de obstrução à justiça e violação de segredo de justiça.
A procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) Cândida Vilar, as procuradoras do Algarve Helena Miguel e Isabel Nascimento, o ex-diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ) Almeida Rodrigues e mais militares (além dos 13 já acusados) estão a ser investigados pelo Ministério Público (MP) no caso de Tancos.
Desde início do ano foram extraídas certidões do processo de Tancos para que continuassem as investigações às magistradas. E, mais recentemente, no despacho prévio à acusação, novas certidões deram início a processos-crime contra Almeida Rodrigues por violação de segredo de justiça e para investigar os chamados "crimes estritamente militares", cujo esclarecimento teve de ser protelado para não prejudicar o inquérito.
Vasco Brazão, ex-porta-voz e investigador da PJM - um dos acusados -, será alvo de um novo inquérito-crime, desta vez por desobediência. Fonte que está a acompanhar o processo adiantou ao DN que foram extraídas outras três certidões para investigação "cujo objeto se deve manter em segredo uma vez que a sua divulgação as inviabiliza".
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Foi também aberta uma investigação ao ex-chefe da Casa Militar do Presidente da República, o tenente-general João Cordeiro, por suspeita de crime de falsas declarações. Ouvido como testemunha durante o processo, este oficial general negou que tivesse recebido e-mails do ex-diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM) - um dos acusados no caso -, mas o MP apanhou e apreendeu esse tipo de comunicações.
Em relação a Cândida Vilar, há um inquérito-crime aberto pelo menos desde abril deste ano, dirigido pelo MP do Tribunal de Relação de Lisboa, organismo competente para investigar magistrados judiciais, confirmou na altura ao DN a Procuradoria-Geral da República (PGR). Em causa estão suspeitas de a magistrada ter intercedido no caso de Tancos, no qual não tinha nenhuma responsabilidade.
Algumas escutas deixam implícito que teria tido conhecimento da encenação da PJM e que terá aconselhado o major Vasco Brazão a não fornecer informação ao Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP) nem à Judiciária, prejudicando a investigação ao assalto, que estava em curso. Podem estar em causa, além da violação de deveres funcionais - que constam no Estatuto dos Magistrados do Ministério Público -, crimes como denegação de justiça, prevaricação e favorecimento pessoal. Cândida Vilar foi titular de casos mediáticos como o das mortes nos Comandos, do ataque à Academia Sporting e dos skinheads.

A procuradora Cândida Vilar está a ser investigada pelo MP do Tribunal da Relação
© Sara Matos / Global Imagens
"Borradinho de medo"
Por seu lado, Almeida Rodrigues ficou implicado numa escuta entre Brazão e Pinto da Costa (outro dos acusados da PJM) em que comentam que o então diretor da Judiciária civil terá avisado o homólogo da PJM, o coronel Luís Vieira (também acusado), de que a Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo (UNCT) da PJ estava a investigá-los.
A conversa foi gravada a 14 de dezembro de 2017, ou seja, dois meses depois da "descoberta" falseada, e está transcrita no processo. É notória a preocupação destes militares de que a PJ venha a descobrir a trama que tinham arquitetado. Brazão comenta que "o lá de cima está borradinho de medo", referindo-se a Luís Vieira. Isto porque, de acordo ainda com as palavras do militar, Almeida Rodrigues terá dito a Vieira que "não tinha mão" no então diretor da UNCT (Luís Neves, atual diretor nacional) e que podia mesmo ser "perigoso" e "obcecado".

Almeida Rodrigues, ex-diretor da PJ, é suspeito de violação de segredo de justiça
© Paulo Jorge Magalhães / Global Imagens
No despacho de acusação, conhecido nesta semana, está transcrita outra conversa, no mesmo dia 14 de dezembro, entre Pinto da Costa e Lage de Carvalho (um sargento da GNR, em serviço na PJM como investigador, que também foi acusado), em que partilham a preocupação com uma eventual imputação de responsabilidade criminal. "Já estive a pensar naquela situação, depois temos de falar", diz Pinto da Costa.
"Descontraídos, mas atentos (...) há que os atacar", responde Lage de Carvalho. "A melhor defesa é o ataque", sublinha Pinto da Costa, completando: "Tem de haver um pacto aqui, de coisa, dos cinco, principalmente dos cinco, e basta um ser afetado ou é os cinco." Referia-se ao quinteto que tinha participado diretamente na operação, estes dois oficiais e os três da GNR de Loulé.
Estes telefonemas foram feitos dois dias depois de o diretor da PJM, Luís Vieira, se ter encontrado com Almeida Rodrigues na cerimónia oficial de comemoração dos 700 anos da Marinha. O MP suspeita que terá sido aqui que o ex-diretor da PJ deixou cair a informação a Vieira. Almeida Rodrigues, que liderou a PJ durante dez anos, até 2018, confirmou o encontro, mas negou que tivesse revelado qualquer dado em segredo de justiça.
O MP, porém, acredita que não são coincidência os comentários dos telefonemas entre os militares nem muito menos alguns sinais revelados pelos militares da PJM e da GNR de que estavam já a ser investigados: foi a partir dessa altura que passaram a ter cuidado nos contactos e até a comentar nos telefonemas que sabiam que a PJ andava a vigiá-los.
Procuradoras "amigas"
As outras magistradas alvo de inquéritos-crime são Helena Miguel, do DIAP de Loulé, e Isabel Nascimento do DCIAP. A primeira é suspeita de ter passado informações sobre a investigação da PJ ao sargento da GNR de Loulé, Lima Santos, também envolvido na encenação. A segunda, que já tinha trabalhado em Loulé e também conhecia Lima Santos, estava nessa altura no DCIAP e as vigilâncias da PJ apanharam-na a almoçar com o sargento.
Os procuradores responsáveis pelo caso de Tancos querem esclarecer o papel da colega. Pois, apesar de saber da investigação em curso (era pública), nada lhes disse sobre o encontro.
Quanto aos crimes "estritamente militares", trata-se daqueles que, desde início deste processo, têm sido reivindicados pela PJM e pela defesa dos militares, quando argumentavam contra a designação da PJ civil para liderar a investigação.
O ex-diretor da PJM Gil Prata explica que neste furto foram cometidos vários crimes no âmbito da justiça militar: "Furto de material de guerra, entrada ou permanência ilegítima de instalação militar - crimes estes que atentam contra a capacidade militar e a defesa nacional e contra a segurança das forças armadas - e as falhas de segurança que poderão responsabilizar disciplinar mas também penalmente os militares responsáveis pela segurança das instalações."
Perplexidades de um caso complexo
Da degradação da segurança dos paióis nacionais ao papel de Azeredo Lopes e de António Costa, da "guerra" entre a PJM e a PJ, passando pela alegada politização da acusação, as perplexidades do caso de Tancos.
Negligência no paiol
Como se conclui da acusação do Ministério Público (MP) foi o estado de degradação da segurança dos paióis de Tancos (PNT) incentivou os assaltantes. O Exército já tinha sido alvo de duras críticas no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito. Logo abrir as conclusões são salientadas as responsabilidades da hierarquia militar nas falhas na proteção daquela base, onde estava armazenado material muito perigoso e sensível. A CPI apurou que em mais de uma década foi-se degradando a infraestrutura e os equipamentos, sem que, até 2016, tivessem sido tomadas medidas. Vedações com buracos, videovigilância, alarmes e sensores inoperacionais, falta de iluminação, eram exemplos.
A situação, é assinalado, foi sendo reportada por vários responsáveis, das estruturas de comando de Logística e do Comando das Forças Terrestres, sem que tivesse havido determinação de máxima prioridade à recuperação do "campo". Todos os chefes de Estado-Maior do Exército (CEME) conheciam a situação, mas só em 2016 Rovisco Duarte a reportou ao ministro de Defesa Nacional. Como se sabe, as medidas preparadas não foram a tempo de evitar o assalto. Resta saber se na investigação dos "crimes estritamente militares", que vão agora iniciar-se, há lugar à responsabilização dos generais.
Acusação politizada?
O ministro Azeredo Lopes, acusado de denegação de justiça, prevaricação e abuso de poder, por suspeita de ter encoberto a farsa da recuperação do material, diz que "a acusação é eminentemente política". No despacho, o MP explica que, sim, a recuperação do material assumia um papel muito importante na imagem do governo numa altura em que estava prejudicada a sua imagem, depois dos fogos de Pedrógão, e que a conduta de Azeredo foi "extremamente grave".
A olhos leigos, este tipo de observações podem parecer politizadas, mas do ponto de vista jurídico está em causa o chamado "elemento subjetivo dos crimes e motivações pessoais dos agentes", que devem constar na acusação. É o artigo 283.º, alínea b, do Código de Processo Penal, segundo o qual a acusação deve conter "a narração (...) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que neles teve e circunstâncias relevantes para a determinação da sanção."
Azeredo e Costa
A acusação responde, por omissão, à pergunta, muito feita, se António Costa saberia da trama da PJM? Não há nada sobre o primeiro-ministro, nem foram recolhidas provas nesse sentido. Aliás a acusação acentua que Azeredo Lopes não partilhou nada com o primeiro-ministro, e que o terá induzido em erro ao propor os louvores aos militares que tinham participado na operação.
O assalto aconteceu a 28 de junho, dez dias depois dos 64 mortos dos fogos de Pedrógão - foi declarado luto nacional a 18, 19 e 20. O "achamento", no dia 18 de outubro, foi em pleno luto nacional, pelas 35 vítimas dos incêndios de outubro e fora decretada calamidade pública para todos os distritos a norte do rio Tejo. No dia 18 também, a ministra da Administração Interna demitiu-se. O furto deste material era gravíssimo, mas Costa estava nessa altura a lidar com uma verdadeira tragédia. Porque elogiaria ele a operação da PJM e da GNR, se soubesse que tinha sido uma encenação? Que interesse teria em pactuar com uma trama contra a PJ, cujo diretor, por sinal escolheu?
Já Azeredo, que para o MP foi cúmplice e encobriu a farsa da PJM, é difícil que não tivesse percebido os crimes em causa - é professor de Direito na Universidade Católica. Pode ter sido induzido em erro pelos militares. Os memorandos que lhe foram entregues eram dúbios - mas só para quem não os quisesse aprofundar.
"Guerras" de polícias
Tudo no processo contraria a tese da guerra entre as polícias. Quando o inquérito ainda estava com a PJM, a PJ estava a dar todo o apoio. A única guerra foi a da PJM contra a PJ, tentando atropelar a investigação. "Desta vez a PJ não nos passou a perna", disse o ex-porta-voz da PJM Vasco Brazão. "O pior que podia ter acontecido era aparecerem [as armas] com a bandeira da PJ", terá dito o vice-CEME, Fernando Serafino, a Luís Vieira, ex-diretor da PJM.