Costa nega ter sabido da encenação na descoberta das armas
O primeiro-ministro (PM) já respondeu - por escrito, ontem à tarde - ao questionário que o juiz Carlos Alexandre lhe fez no âmbito da fase de instrução do caso de Tancos.
A notícia foi avançada pelo Correio da Manhã e confirmada ao DN por fonte governamental. O gabinete do primeiro-ministro divulgou, na íntegra, as respostas ao juiz Carlos Alexandre. O chefe do governo nega ter tido conhecimento da encenação em torno da descoberta das armas. Perguntas (cem) e respostas ocupam 20 páginas (e a estas o PM juntou as respostas que já tinha dado ao Parlamento). Por 29 vezes António Costa responde simplesmente "não" - na maior das vezes quando é questionado sobre as manobras preparatórias da descoberta das armas e o conhecimento que o ministro da Defesa teria ou não delas. As respostas poderão suscitar pedidos de esclarecimento dos advogados e do Ministério Público.
"Não." - sem mais - foi precisamente a resposta do PM à pergunta central do questionário que lhe foi enviado pelo juiz de instrução (pergunta 95): "E o senhor primeiro-ministro? Teve em algum momento conhecimento de que se tratava de uma recuperação encenada efetuada mediante um acordo com os detentores do material de guerra e mediante uma investigação paralela? Quando? De que forma?".
Em 29 de junho de 2017, o Exército tornou público o desaparecimento de material de guerra dos Paióis Nacionais de Tancos (PNT), ocorrido na véspera. Em 18 de outubro do mesmo ano, a PJM (Polícia Judiciária Militar) anunciou que esse material havia sido descoberto num terreno na Chamusca, dizendo o comunicado que a operação envolvera a GNR de Loulé.
O primeiro-ministro afirma nas suas respostas a Carlos Alexandre que só um ano depois - na manhã do dia 12 de Outubro de 2018 - é que teve acesso a um documento, "não assinado, não datado e não timbrado", supostamente do major Vasco Brazão (inspetor da Polícia Judiciária Militar, PJM), onde este detalhava como teria sido combinado com um "informador da PJM" a devolução do material roubado.
António Costa relata que nessa altura mostrou o documento ao seu então ainda ministro da Defesa, Azeredo Lopes - hoje o principal arguido deste caso -, tendo ficado "com a convicção que ele nunca o tinha visto anteriormente": "O então MDN nunca me deu conhecimento de ter lido o referido documento". Foi precisamente a 12 de outubro de 2018 que Azeredo Lopes se demitiu de ministro da Defesa. O chefe do Governo diz que obteve o documento depois de instruções dadas nesse sentido à sua assessoria militar - e quando o caso já estava a ser amplamente noticiado e até o PSD já o tinha explorado politicamente.
Segundo garante, nunca falou com nenhum elemento da Casa Militar do Presidente da República sobre este assunto. Questionado sobre "em que moldes" falou com o próprio PR sobre o assunto, a resposta é genérica: "Nos termos da Constituição da República Portuguesa, mantenho permanentemente informado Sua Excelência o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do País."
O PM também explica porque é que em 26 de outubro de 2018 disse, questionado por jornalistas, disse que não conhecia o tal documento de Vasco Brazão, quando na verdade o conhecia desde 12 de outubro. "O contexto temporal da pergunta reportava-se ao momento da recuperação do material, isto é, outubro de 2017. E nessa altura, outubro de 2017, não tinha qualquer conhecimento do 'documento'."
No seu entender, da leitura que fez do tal documento "não assinado, não datado e não timbrado", além de confusão, só podia tirar três conclusões: a PJM queria recuperar o material roubado; havia um informador cuja identidade se procurava proteger; e a PJM estava a procurar ocultar a operação à PJ. Ou, dito de outra forma: do documento o PM não retirou a conclusão que a descoberta das armas tivesse resultado de uma encenação.
Um ano antes, em 20 de outubro de 2017 - três dias depois do achamento do material roubado - este documento havia sido entregue pelo então diretor da PJM, coronel Luís Vieira (um dos arguidos deste caso) ao chefe de gabinete de Azeredo Lopes, tenente-general Martins Pereira - algo que permite ao MP supor que Azeredo Lopes soube da encenação montada pela PJM para a descoberta do material logo após esta ter acontecido, mas nunca a revelando ao MP (que a certa altura tanto investigava o desaparecimento das armas como aquilo que qualificava como o seu "achamento").
Aliás, Costa reitera o que já tinha dito na comissão parlamentar de inquérito ao caso de Tancos: "Considero que o professor doutor Azeredo Lopes sempre desempenhou com lealdade as funções de ministro da Defesa Nacional." Na mesma resposta diz "não creio que isso pudesse ter acontecido" quando é perguntado sobre se o ministro da Defesa poderia ter dado a concordância ao diretor da PJM, coronel Luís Vieira - também arguido neste processo - para que as diligências necessárias à descoberta do material roubado em junho de 2017 fossem feitas com desconhecimento do MP e da PJ.
"Não posso propor qualquer explicação para um facto que não era do meu conhecimento e sobre o qual não tive qualquer domínio", respondeu, quando perguntado sobre como explicava o facto de o "documento Brazão" não ter sido transmitido pelo ministério da Defesa à investigação criminal que estava a ser conduzida pelo MP ou à PGR.
Na resposta ao questionário que lhe foi enviado pelo juiz Carlos Alexandre, António Costa diz que soube do achamento das armas através de um contacto telefónico do ministro da Defesa, "na manhã do próprio dia da recuperação". O PM reconhece também ter "estranhado" que o comunicado da PJM falasse na colaboração da GNR de Loulé - "tendo em conta a distância entre Loulé e o local da operação". Admitiu porém que que "resultasse de uma operação que decorrera em diversas localidades". Foi também por Azeredo Lopes que soube do desaparecimento do material de guerra (28 de junho de 2017).
O chefe do Governo diz também que não lhe suscitou nenhuma "perplexidade" que a descoberta das armas tivesse sido anunciada pela PJM (e não pelo MP, que tutelava o inquérito). Costa pensou na altura que a PJM estava a atuar "no quadro da colaboração institucional" com o MP "a que estava vinculada" por determinação da PGR.
O pedido do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) para ouvir o primeiro-ministro, António Costa, como testemunha no processo de Tancos chegou ao Conselho de Estado no dia 16 de dezembro, depois de o nome do PM ter sido indicado pela defesa do ex-ministro Azeredo Lopes, que está acusado de denegação de justiça, prevaricação, abuso de poder e favorecimento pessoal praticado por funcionário.
Nas suas respostas, o PM nega, por exemplo, que Azeredo Lopes lhe tivesse dado conhecimento de que a PJM (Polícia Judiciária Militar) iria continuar a investigar o roubo das armas numa investigação "paralela" apesar de a PGR (Procuradoria-Geral da República) ter determinado que o inquérito estava totalmente por conta do Ministério Público (resposta à pergunta 28).
Segundo garante, nunca falou do assunto (ou de qualquer outro) com o então diretor da PJM, coronel Luís Vieira, também arguido neste caso. Apenas com o ministro da Defesa e outros membros do Governo, com o Presidente da República, com os chefes dos serviços secretos (SIS e SIED) e com a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna, bem como com o CEMGFA e outras "chefias militares" (os chefes dos ramos, por exemplo), numa reunião por si convocada em 11 de julho de 2017.
A divulgação das respostas foi justificada pelo gabinete do PM numa frase: "Tendo sido postas a circular versões parciais do depoimento do Primeiro-Ministro como testemunha arrolada pelo Professor Doutor José Alberto Azeredo Lopes, entendeu o Primeiro-Ministro dever proceder à divulgação pública integral das respostas a todas as questões que lhe foram colocadas e que constam do depoimento já entregue ao Tribunal Central de Instrução Criminal, às 16h22 horas, do dia 4 de fevereiro de 2020."