Tudo começou com os testes de diagnóstico para a Covid-19 há quase dois meses. Com a escalada dos casos em perspetiva, os investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) decidiram juntar-se à rede nacional de diagnóstico para a infeção pelo Sars-cov-2, como aconteceu por todo o país com outros centros de investigação biomédica e para as ciências da vida ligados às universidades e à Fundação Champalimaud..Esse tem sido, de resto, um importante contributo no controlo da covid-19 em Portugal. A iniciativa nasceu de uma reação espontânea da comunidade científica, e os investigadores não têm dúvidas de que esse esforço vai continuar enquanto for necessário. Mas, numa casa de ciência como o IGC, o desafio de um novo agente patogénico não tardou a traduzir-se em novas ideias de trabalho, na busca de respostas para o que ainda não se sabe sobre o vírus e a doença que ele provoca.."Os testes de diagnóstico continuam, fazemos algumas centenas diariamente, mas as coisas acabaram por evoluir também para um estudo mais científico", conta Carlos Penha Gonçalves, que lidera o grupo de investigação sobre genética das doenças no IGC.."Queremos perceber quais são os fatores genéticos que conduzem a uma doença mais severa ou, pelo contrário, assintomática, tanto na suscetibilidade individual à doença, como na resposta imunológica. E esta é uma oportunidade para estudar essas questões", sublinha..Além do novo conhecimento que se espera com esta investigação, a esperança é que ele abra também portas ao desenvolvimento de terapias inovadoras para os diferentes grupos de doentes..O projeto, que é coordenado por Carlos Penha Gonçalves e pela especialista em imunologia Jocelyne Demengeot, líder no IGC do grupo de fisiologia dos linfócitos (células do sistema imunológico), já está a rolar. Dentro de alguns meses, lá mais para fim do ano, a equipa espera ter dados preliminares para responder a algumas destas questões..Avaliar os profissionais na linha da frente.Quando os testes para a covid-19 se iniciaram no IGC, percebeu-se logo que uma das questões decisivas ia ser a da monitorização dos profissionais de saúde que estão na linha da frente, nos hospitais, a lidar com estes doentes. E então, naturalmente, surgiu a hipótese de os testar de forma sistemática, englobando médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos.."Estabelecemos uma parceria com os hospitais Fernando Fonseca Amadora-Sintra e o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, que inclui os hospitais Egas Moniz, Santa Cruz e São Francisco Xavier, e numa primeira fase vamos testar mil profissionais de saúde, mas estamos a contar alargar a participação a três mil, incluindo mais hospitais públicos e privados no estudo", adianta Jocelyne Demengeot..A importância desta monitorização é evidente para os próprios hospitais e para o sistema de saúde: esse conhecimento permite uma gestão mais informada e racional das equipas, garantindo ao mesmo tempo maior segurança ao pessoal hospitalar e aos próprios utentes..Mas a possibilidade de avançar no conhecimento sobre a doença e a forma como ela afeta diversamente as pessoas é a outra vertente do trabalho, que pode vir a ser decisiva também no combate à pandemia..Os investigadores vão recolher amostras dos profissionais de saúde a cada três semanas, durante um período de pelo menos três meses, mas os coordenadores do projeto estimam que a monitorização se prolongará para lá disso. "Enquanto estivermos em situação de pandemia, e não sabemos ainda quanto tempo ela vai durar, continuaremos a recolha de amostras, embora a regularidade possa ser mais espaçada", admite Jocelyne Demengeot..O projeto já se iniciou - "vamos em mais de uma centena de amostras nesta altura", conta Penha Gonçalves - e, dentro de duas semanas, a equipa espera já ter uma primeira visão obre a taxa de infeção nos profissionais de saúde. "Queremos perceber se o facto de estas pessoas estarem na linha da frente se traduz numa taxa de infeção mais elevada em relação ao resto da população", explica o co-coordenador do projeto..Será feita também uma avaliação da imunidade dos participantes, para se perceber se, não havendo infeção ativa, já estiveram infetados e, em caso afirmativo, se isso deu lugar à produção de anticorpos.."Usaremos o teste serológico desenvolvido pelo consórcio que também integrámos [o Serology4Covid] e vamos estudar os anticorpos para perceber se são neutralizantes e conferem proteção contra o vírus", adianta Jocelyne Demengeot. Além do IGC, o Serology4Covid integra o Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, da Universidade de Lisboa, o IBET- Instituto de Biologia Celular e Tecnológica, o Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Nova Medical School (CEDOC-NMS) e o ITQB Nova, ambos da Universidade Nova de Lisboa..A essa informação juntar-se-á depois a análise detalhada de um conjunto de 15 genes potencialmente envolvidos no processo infeccioso pelo Sars-cov-2, bem como na resposta imunitária à sua presença no organismo, para avaliar as suscetibilidades à infeção pelo vírus, e compreender os mecanismos moleculares que as determinam..Quando a vulnerabilidade está no ADN.Uma larga maioria das pessoas infetadas, cerca de 95%, tem apenas sintomas ligeiros, ou é mesmo assintomática, mas ninguém sabe explicar porquê..Por outro lado, cinco a 10% dos infetados desenvolvem formas mais graves da doença, que requerem hospitalização, muitas vezes nos cuidados intensivos, com necessidade respiração assistida. E uma parte destes morre..Estas são em geral pessoas mais velhas, com mais de 70 ou 80 anos, frequentemente com patologias associadas. Mas abaixo dessas faixas etárias, as doenças crónicas, como a diabetes, problemas cardiovasculares e respiratórios, hipertensão e obesidade, são também fatores de risco para infeções severas, como a curta história desta pandemia já mostrou..E depois há pessoas mais jovens e sem doenças crónicas conhecidas que ficam gravemente doentes com este coronavírus, a maioria não tanto devido à infeção, mas por causa da resposta exacerbada do seu próprio sistema imunitário, que danifica o organismo e pode conduzir à morte. Também aqui não há ainda uma explicação satisfatória..O palpite dos cientistas é que as diferentes reações do organismo, e nomeadamente esta, que induz a resposta intempestiva do sistema imunitário, são determinadas pelo ADN.."Estas vulnerabilidades, que estão inscritas nos genes de cada um de nós, só se manifestam nestas alturas, quando o organismo fica perante um agente infeccioso novo, e por isso só nestes momentos é isto pode ser estudado", sublinha Carlos Penha Gonçalves..Na mesma linha, Jocelyne Demengeot resume a ideia: "Temos variações genéticas que estão na base destas diferenças e é isso que queremos estudar"..Campanha de angariação de fundos.Um processo infeccioso é um jogo complexo entre um agente patogénico e o organismo humano. O coronavírus Sars-cov-2, à semelhança de outros, usa uma proteína específica, a proteína S, como chave para entrar nas células humanas e aí iniciar o processo de infeção. Essa proteína liga-se a recetores que existem nas células, chamados ACE2, e é assim que o vírus abre a porta celular..Por seu lado, o sistema imunitário reconhece a presença dos agentes estranhos e ensaia um contra-ataque, usando células especializadas para o fazer..Todos estes processos são regulados por genes, que ainda não estão todos identificados.."Vamos estudar os genes que regulam os recetores ACE2 nas células e os que codificam a resposta imunológica. A ideia é identificar as respetivas variantes genéticas que possam estar associadas a uma maior, ou menor, severidade da doença", explica Penha Gonçalves. E sublinha: "A nossa hipótese é que algumas das moléculas que o sistema imunológico usa para reconhecer o vírus, as citoquinas, podem exacerbar a resposta inflamatória. Vamos procurá-las e verificar se é assim"..O objetivo é incluir também doentes no projeto, o que permitirá fazer um estudo molecular mais aprofundado, relacionando a informação genética com os dados clínicos dos participantes.."Estamos em conversações com hospitais públicos e privados para incluir duas a três centenas de doentes no estudo. Os dados clínicos podem sugerir até outros genes para investigarmos", adianta Penha Gonçalves..Um dos mecanismos para os quais a equipa do IGC quer olhar em detalhe é o da resposta imunológica inata às infeções virais, que também é regulada geneticamente, e que envolve uma pequena molécula chamada interferão. Este interferão é produzido pelas células quando elas são infetadas por um vírus e o seu papel é atrasar o processo de infeção..A potência desta resposta, determinando uma resposta mais severa ou mais moderada do organismo, pode estar igualmente relacionada com a evolução da doença.."Estes mecanismos são conhecidos, mas não sabemos como estão a funcionar em relação a este vírus, uma vez que eles se comportam de forma diversa face a diferentes vírus. Nós queremos verificar o que acontece neste caso", adianta Carlos Penha Gonçalves..Na SARS e na MERS, infeções respiratórias graves causadas por dois coronavírus surgidos em 2003 e 2013, respetivamente, observou-se em muitos doentes este fenómeno das respostas severas do sistema imunitário, e os estudos na altura pareciam indicar que este mecanismo do interferão não era decisivo nesse processo, mas acabou por não ser possível chegar a uma conclusão definitiva. Quando aquelas epidemias ficaram controladas, o financiamento para a investigação sobre elas desapareceu, e os estudos tiveram de parar - muitos deles a meio.."Não houve investigação suficiente e é uma pena, porque não se conseguiu gerar conhecimento que nesta altura seria muito importante para nós", lamenta Carlos Penha Gonçalves..Agora, com o Sars-cov-2, não há outra alternativa senão mergulhar na investigação sobre o vírus e a doença. É o que os investigadores do IGC, e de muitos outros centros de investigação no país, e no mundo, estão precisamente a fazer.."Já existe também um consórcio internacional, o Covid Human Genetic Effort, que está a fazer estes estudos genéticos relacionados com a covid-19, mas para todo o genoma, e nós também queremos participar nisso", adianta o investigador..O grupo coordenado por Jocelyne Demengeot e Carlos Penha Gonçalves conta para já com verbas da Fundação Gulbenkian, mas a ideia é concorrer também a financiamentos nacionais e internacionais..A par disso, o IGC lançou uma campanha de angariação fundos para reforçar o projeto de avaliação dos profissionais de saúde para a covid-19. Chama-se "TESTAR + SALVAR + Profissionais de com Saúde", e pode contribuir para fazer a diferença no contexto desta pandemia, que virou as nossas vidas do avesso..Este artigo faz parte de uma série dedicada aos investigadores portugueses e apoiada por abbvie