"A China é para os EUA um adversário de longe mais robusto e capaz do que foi a URSS"

Autor do livro <em>Do Fim da Guerra Fria a Trump e à Covid-19</em>, o major-general <strong>Carlos Branco</strong> analisa a crescente competição global entre Estados Unidos e China, também as fragilidades da Rússia apesar das ambições de potência e ainda as fragilidades da União Europeia.
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O esforço americano para contrariar a ascensão chinesa veio para ficar, seja ou não Donald Trump reeleito presidente dos Estados Unidos?
Seguramente que sim. Biden declarou que pretende reativar o projeto da hegemonia global americana. A concretização desse projeto é incompatível com a ascensão da China. Contudo, não se sabe exatamente em que moldes Joe Biden pretende fazê-lo, se ganhar as eleições. Pela informação disponível, a política de Biden relativamente à China não será muito diferente da de Trump. O projeto de uma "Cimeira Global da Democracia" para captar aliados e com eles construir uma frente anti-China não difere substancialmente da nova "Aliança de Democracias" proposta por Mike Pompeo. Não basta Biden dizer que "os EUA têm de ser duros com a China". Há que explicar como. Vai alterar os termos da presente guerra comercial? Manterá a política de tarifas alfandegárias sobre os produtos chineses? Vai promover o decoupling de empresas americanas e chinesas? Vai escalar o conflito alargando a confrontação a outros domínios, para além da guerra comercial? Muito provavelmente não vai. Não parece que Biden tenha muito espaço de manobra para reverter as políticas anti-China já implementadas por Trump. Se Biden ganhar as eleições, poderá reavivar o projeto da NATO global, e os europeus serão pressionados para participarem na competição militar com Pequim. Essa possibilidade pode também concretizar-se com Trump, que já deu alguns passos nesse sentido. Convém, contudo, sublinhar, que o esforço para contrariar a ascensão chinesa não se iniciou durante a presidência Trump. Começou nos tempos do presidente Bush e teve seguimento durante a presidência Obama, com o designado pivot to Asia na sua componente militar, procurando garantir a liberdade de navegação no mar do Sul da China, e na componente económica com a Parceria Transpacífica [TPP], para contrariar a crescente influência da China na região, subtraindo os signatários à sua influência económica. Nenhuma das medidas implementadas resultou, nenhuma delas travou a ascensão chinesa. Trump tentou travar essa ascensão recorrendo a outras fórmulas, a medidas mais drásticas. Está por determinar a sua eficácia.

A China, depois de parecer de início fragilizada pela covid-19, pode sair reforçada em termos relativos da pandemia, ou seja, com uma economia ainda mais próxima da dos Estados Unidos em valor do PIB?
Pode de facto sair reforçada, mas não é certo que isso aconteça. Ainda é cedo para fazer essa apreciação. Há vários fatores a ter em conta. Sem ser extensivo nas considerações, há que avaliar o impacto da pandemia nas exportações da China para os EUA, de que a China tem grande dependência, no projeto Uma Faixa, uma Rota, no chamado decoupling e na saída de empresas da China, sobretudo americanas. Importa perceber como vai a China contrabalançar estas contrariedades, nomeadamente privilegiando o desenvolvimento do seu interior. Mas há que ter em conta outro fator importante. Há quem defenda que a China já terá iniciado o "seu decoupling" do ecossistema tecnológico americano. A China já exporta mais para as nações emergentes do que para os EUA. E, por outro lado, há ainda que avaliar o impacto do yuan digital. A combinação destes e de outros fatores permitir-nos-á dar uma resposta mais precisa.

A pandemia veio alterar de vez a cena internacional ou desafios agora meio esquecidos como o Brexit, a tensão NATO-Rússia, os refugiados ou o jihadismo voltarão sempre a ressurgir?
A pandemia não veio alterar a importância de outros desafios. Nalguns casos até a aumentou. Podem não fazer as manchetes dos jornais, mas continuam bem presentes. Veio acelerar algumas tendências que já se verificavam, nomeadamente em matéria de refreamento da globalização e do reforço das políticas económicas nacionalistas. Não me parece que esses assuntos estejam esquecidos. Continuam na ordem do dia. As negociações entre o Reino Unido e a União Europeia, que por sinal se crisparam, são um bom exemplo. Não diminui a tensão entre a NATO e a Rússia, bem pelo contrário. No início da pandemia foram alterados os objetivos de alguns exercícios da NATO, mas isso faz parte do passado. A NATO retomou o seu programa de exercícios no Báltico e no mar Negro, recorrendo a bombardeiros estratégicos B-52 que estão a deixar os russos com os cabelos em pé. Estamos para ver em que se vão traduzir as declarações de Angela Merkel sobre a necessidade de a União Europeia e a NATO darem uma resposta concertada à alegada tentativa de assassinato de Navalny pelo Kremlin. Os recentes acontecimentos na ilha de Lesbos e o incêndio no campo de refugiados de Moria trouxeram à tona o problema não solucionado da migração ilegal e vieram mostrar o quão presente se encontra o tema. O facto de o jihadismo não ter ocupado tanto espaço mediático também não lhe retira acuidade, como por exemplo o que se passa em Moçambique e o perigo latente da internacionalização do conflito.

Dificuldade de acordar decisões, fecho de fronteiras, egoísmos financeiros nacionais, a União Europeia está a ficar fragilizada com a pandemia?
Penso que não. A UE já se encontrava fragilizada antes da pandemia. Os problemas que têm vindo a afetá-la são de fundo e não se prendem com a pandemia. É um facto que nos momentos iniciais da pandemia foram os Estados a resolver os problemas, o que é compreensível. A União Europeia não estava preparada para os enfrentar. Pelo contrário, a pandemia pode servir para reforçar a União, se os pacotes de auxílio financeiro funcionarem e os cidadãos perceberem que perante uma situação semelhante, sozinhos não conseguiriam obter os recursos financeiros a que vão ter agora acesso. Mas este exercício funcionará um pouco como a prova do algodão. Se não resultar, a União entrará em falência cardíaca.

Como vê o papel da Rússia nas relações internacionais? Um país hoje com uma economia do tamanho da de Itália, mesmo com um poderoso arsenal nuclear, tem meios para tentar ser um ator global?
A Rússia pode ser um ator global, mas não é nem será uma potência global. Não tem recursos para isso. Apesar da sua dimensão geográfica, cobrindo 11 fusos horários, não dispõe dos recursos humanos, industriais, tecnológicos e económicos necessários para o ser. Possuir um arsenal nuclear poderoso não lhe dá o estatuto de potência global. A Rússia "limita-se" a ser uma potência regional e a sua política externa procura consolidar esse estatuto na Ásia Central, Cáucaso do Sul e Leste Europeu, no qual se inclui a Ucrânia, a Bielorrússia e a Moldávia, não permitindo que potências hostis aí instalem bases militares. As incursões russas em África são iniciativas inconsequentes que podem sair-lhe caras, porque a Rússia não tem dinheiro para esses desvaires.

A competição entre os Estados Unidos e a China será obrigatoriamente diferente da rivalidade americano-soviética no tempo da Guerra Fria, até pela interligação económica, ou pode assumir contornos semelhantes?
A competição americana com a China é muito diferente daquela travada durante a Guerra Fria com a URSS. A China é um adversário de longe mais robusto e capaz, não comparável com a URSS em múltiplos domínios. Enquanto a URSS tinha uma população inferior à dos EUA, a da China é quatro vezes maior. A economia soviética era separada da ocidental. Tinha o seu próprio sistema de integração através do COMECOM, que em nada se assemelha à interação económica entre a China e os EUA. Mas há uma diferença crucial que separa a URSS da China. Embora não tão evidente durante a sua agonia, o projeto global soviético tinha por objetivo exportar o seu regime e a sua ideologia. Ao contrário da URSS, a China não ambiciona exportar nem impor mundialmente o seu regime político. Não tem essa pretensão. E isto faz toda a diferença.

Imagina possível uma retirada americana da NATO num eventual segundo mandato de Trump?
É muito improvável que isso aconteça. Não se podem confundir arrufos, bluffs ou bravatas com geoestratégia. Os EUA não abandonarão a Europa. Continuarão as pressões, de décadas, para que os europeus assumam maiores responsabilidades financeiras com a sua defesa. Esse é grande cavalo de batalha de Trump. Apesar de todas as críticas que se lhe possam fazer, a verdade é que Trump conseguiu aquilo que os seus antecessores não conseguiram, isto é, colocar os alemães a pagar mais para o orçamento da NATO. A possibilidade de uma retirada americana da NATO, acenada por europeus e pelos seus críticos, choca sistematicamente com os factos. Desde o fim da Guerra Fria que a NATO nunca tinha estado tão ativa a leste como no mandato de Trump. Nunca houve tanto investimento e nunca a cooperação da NATO com a União Europeia foi tão intensa.

A Ásia-Pacífico é hoje o ponto mais frágil do equilíbrio estratégico internacional, o ponto mais provável de surgimentos de uma guerra entre a superpotência dominante e a superpotência aspirante?
Concordo. Apesar do que se está a passar no Leste Europeu, que podemos alargar ao Ártico e ao Cáucaso do Sul, a zona onde se perspetiva uma maior probabilidade de confrontação é na Ásia-Pacífico, mais concretamente no Sudeste Asiático. O facto de Trump não defender mudanças de regime ou condenar a hiperextensão estratégica americana não significa que não seja belicista. Pretende concentrar recursos para o confronto contra o principal inimigo, evitando dispersá-los em combates secundários. A guerra já começou, não sabemos é como vai evoluir nem como terminará. A possibilidade de um confronto nuclear limitado na região existe e tem apoiantes, sobretudo se tivermos em conta a revisão da postura nuclear americana efetuada em 2018, em que essa possibilidade foi levantada. No lado americano, há quem defenda a possibilidade de se conter uma guerra nuclear no patamar tático, sem ter necessariamente de se evoluir para o patamar estratégico. É um cálculo muito arriscado.

Neste seu livro, a sua experiência no terreno, como militar, surge por vezes. Ex-Jugoslávia, Iraque ou Afeganistão, onde se enganou mais a comunidade internacional?
Apesar das boas intenções, os erros são frequentes e algumas vezes grosseiros. É difícil individualizar um em particular. A dissolução das Forças Armadas iraquianas, por exemplo, em maio de 2003, foi certamente um erro grosseiro. Proporcionou "mão-de-obra" para as fileiras do Estado Islâmico. Talvez seja mais preciso falar nos erros cometidos pelas potências envolvidas, de um ou de outro modo, nesses conflitos, em vez de comunidade internacional, uma entidade de contornos relativamente indefinidos e com as costas muito largas. A atuação das grandes potências acaba sempre por ser determinante no desfecho dos conflitos, apoiando o lado que lhe é mais conveniente. O caso do Afeganistão é gritante. A intervenção internacional no Afeganistão sugere uma acumulação sucessiva de erros. Começa logo pela ideia de peregrina de pensar que é possível transformar uma sociedade pré-industrial, atrasada, em que a autoridade do Estado não se faz sentir em grande parte do território, numa democracia liberal. Era possível outro caminho. Os problemas iniciaram-se logo em 2002 com os acordos de Bona que definiram o road map para a construção do Estado, marginalizando os pastunes, o maior grupo étnico do país, minando assim o espírito de coexistência política necessário.

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