Abolição da pena de morte avança, de P de Portugal a C de Cazaquistão
Ainda há dias a ministra da Justiça recordou aqui no DN, na edição de aniversário, a magnífica carta a elogiar Portugal pela abolição da pena de morte que o escritor Victor Hugo fez publicar no jornal em 1867. E quando há quatro anos se celebrou século e meio dessa decisão pioneira de Portugal, que tanto entusiasmou o romancista francês e também meia Europa, coube à própria Francisca Van Dunem fazer um discurso solene de elogio ao país, pois hoje não há dúvida de que o caminho para a plena afirmação do Estado de direito passa pela renúncia do Estado a matar.
Desde a lei portuguesa de 1867 foram já mais de uma centena de países a abolir a chamada pena capital, o último dos quais o Cazaquistão, ontem. Esta é, pois, uma bela história que se pode contar de P de Portugal a C de Cazaquistão. Ou até começar em V de Venezuela, como veremos adiante.
Um imperador chinês terá em tempos abolido a pena de morte, mas sem efeitos depois do seu reinado. Também um imperador japonês de outra era terá feito o mesmo. Tudo efémero, até que em meados do século XIX a Venezuela a aboliu mesmo, inscrevendo a proibição na sua Constituição de 1864. Na Europa, o desaparecido Grão-Ducado da Toscana, governado por um futuro imperador austríaco, terá sido pioneiro ainda no século XVIII, e San Marino, minúscula república que sobreviveu à reunificação italiana, aboliu a pena de morte para todos os crimes em 1865. Portugal, que em 1846 procedera à última execução, aboliu por sua vez a pena de morte a 1 de julho de 1867, Carta de Lei que, sublinhe-se, hoje é "Marca do Património Europeu".
Ora, a Europa, sim, aqui claramente na vanguarda. Até hoje. Só a Bielorrússia mantém a pena capital e continua a aplicá-la, pois a Rússia, graças a uma moratória de Boris Ieltsin, confirmada durante a presidência de Vladimir Putin, deixou de executar em 1996. Também a América Latina é uma região livre da pena de morte, e, se olharmos numa perspetiva de espaços culturais, o mesmo acontece na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, pois até a Guiné Equatorial se inclina nesse sentido, muito por pressão, diga-se, dos seus pares na CPLP, em especial Portugal e Brasil. Tirando para crimes de guerra, não há pena de morte no Brasil desde a proclamação da república, em 1889, sendo certo que desde 1876 o imperador D. Pedro II comutara todas as condenações, natural num monarca iluminado que tudo fez também para acabar com a escravatura.
Pode-se dizer que é em África, no Médio Oriente e na Ásia do Sul e Oriental que se concentram os países que insistem na pena de morte. Segundo a Amnistia Internacional, desde 2013 foram 33 os Estados que levaram a cabo pelo menos uma execução. E no topo da lista dos que mais executam - de novo segundo a Amnistia Internacional e com dados relativos a 2019 - estão a China, o Irão, a Arábia Saudita, o Iraque, o Egito, os Estados Unidos, o Paquistão, a Somália, o Sudão do Sul e o Iémen. Como as autoridades de Pequim não divulgam números, para a China a projeção é de mais de mil. No caso do Irão, foram 251 as execuções, e na Arábia Saudita 184. O Iraque é o outro país com valores acima da centena de execuções anuais.
Os Estados Unidos, na lista dos que mais executam, servem para demonstrar que a abolição ou não da pena de morte não se traduz numa oposição simples entre democracias e ditaduras. Tal como alguns ditadores procuram respeitabilidade amenizando a sua Constituição, são várias as democracias sólidas que, pelo contrário, insistem na virtude da pena capital para combater o crime ou simplesmente garantir justiça às vítimas, basta pensar, além dos Estados Unidos, no Japão e na Índia. Aliás, apesar de quase dois terços dos países terem abolido ou pelo menos adotado moratórias, tal não impede que, graças a colossos demográficos como a China, a Índia, os Estados Unidos e a Indonésia, a maioria da população mundial ainda viva sob ameaça da pena de morte, concretizada por métodos tão diferentes como a injeção letal, o fuzilamento, a forca ou a decapitação (agora apenas na Arábia).
Portugal tem de se orgulhar do pioneirismo que levou Victor Hugo, autor de romances como Os Miseráveis, a dar os parabéns ao país (seria bom também não esquecermos como o marquês de Pombal inovou ao proibir a escravatura na metrópole). E sentir como uma vitória sua quando mais um país, agora o Cazaquistão (que não já executava ninguém desde 2003), se junta à causa abolicionista global.
Quem se seguirá? Depois de se temer durante algum tempo que a Turquia, no rescaldo do golpe falhado de 2016, poderia reinstaurar a pena de morte (o que seria péssima notícia para aqueles que acreditam na vocação europeísta do país), existe agora, em sentido oposto, uma leve esperança de que os Estados Unidos voltem a alinhar no grupo abolicionista. Entre 1972 e 1976, a América esteve no campo dos que tinham proibido a pena de morte, e hoje, depois de um Donald Trump campeão da causa das execuções, prepara-se para ter na presidência um Joe Biden que tem dado a entender que mudou de visão sobre o tema desde os tempos de senador e de vice de Barack Obama. Vem aí um presidente americano abolicionista?
Terminemos com um excerto do tal elogio a Portugal que o DN publicou a pedido de Victor Hugo, cidadão de uma França que só ilegalizou a pena de morte em 1981: "Desde hoje, Portugal está à frente da Europa. Vós, os portugueses, não haveis cessado de ser navegadores intrépidos. Ides sempre para a frente, outrora no Oceano, hoje na Verdade. Proclamar princípios é ainda mais belo do que descobrir mundos." Nem o Estado Novo arriscou ir noutro sentido, executando os opositores, sim, mas às escondidas, como a PIDE fez com Humberto Delgado, o general que nas presidenciais de 1958 dissera sem medo que, eleito, obviamente demitiria Salazar.