Um parto na rua e um julgamento na esfera pública. Toda a história do bebé encontrado no lixo
No final da tarde de 5 de novembro, as autoridades portuguesas receberam o alerta: um recém-nascido tinha sido encontrado num contentor do lixo, na zona de Santa Apolónia, junto à discoteca Lux-Frágil. Local que o Presidente da República fez questão de visitar, para agradecer ao sem-abrigo que teria encontrado a criança, juntamente com outros dois sem-abrigo. A partir daqui seguiu-se uma batalha, na esfera pública e em tribunal, que culminou com a detenção da mãe e com entrega do bebé a uma família de acolhimento esta sexta-feira. Mas a história passada antes de sequer chegar à comunicação social parece ser ainda mais longa.
Despido, desagasalhado, ainda com alguns vestígios hemáticos, a chorar e a gemer. Foi assim que o pequeno abandonado no lixo foi encontrado, antes de ser transportado para o Hospital D. Estefânia, para ser visto pela equipa de neonatologia, e daí ser transferido para a Maternidade Alfredo da Costa, de onde recebeu alta esta quinta-feira (21 de novembro). O caso sensibilizou o país e levou o Ministério Público a abrir imediatamente uma investigação para compreender os contornos.
A procura levaria a um nome: Sara Furtado, uma jovem cabo-verdiana de 22 anos, mãe desta criança, que seria detida três dias depois do bebé ser encontrado. A jovem chegou a Portugal há dois anos, para estudar, mas acabaria por abandonar os estudos. Viveu com a irmã até julho deste ano, quando se mudou para uma tenda junto à estação de Santa Apolónia com o atual companheiro (que não é o pai da criança), por ter tido divergências com a irmã. Sara tornou-se sem-abrigo quando já estava grávida.
O dia-a-dia de decadência culminaram no nascimento do filho que terá escondido de todos. Nesse dia, pouco depois da meia-noite, a jovem terá começado a sentir as primeiras contrações. Questionada pelo companheiro que a via em sofrimento, respondeu sempre tratar-se de uma indisposição, tal como antes se justificava com mal-estar intestinal para a barriga saliente.
Ao aperceber-se que estava a entrar em trabalho de parto, Sara decidiu avisar que iria dar uma volta. Depois de ter ido a uma outra tenda sua buscar um saco de plástico, fez o parto na rua, sem qualquer apoio. "Colocou o bebé e o material biológico proveniente do parto no referido saco de plástico e depositou-o mesmo no ecoponto amarelo", lê-se nas 36 páginas da acusação apresentada pelo Ministério Público Sem fechar o saco, depositou-o no ecoponto, regressou à tenda e mudou de roupa, mantendo o silêncio sobre o que teria acabado de acontecer.
Numa caminhada que o casal fez pela zona onde Sara teve o bebé, no dia seguinte, foram abordados por um homem que lhe disse que outro sem-abrigo teria encontrado um bebé no ecoponto. Curioso com a situação, o companheiro de Sara, Milton Sidney, insistiu em vasculhar o lixo. A jovem ajudou na procura, tendo olhado para o contentor amarelo, onde viu o filho, ainda vivo. Mas "nada disse e com o medo que o companheiro se apercebesse e insistiu para que se fossem embora", pode ler-se no documento.
No final desse dia, através de alguns agentes da PSP, que investigavam a zona, souberam que o bebé tinha sido reencaminhado para o hospital com vida, depois de três homens sem-abrigo o terem encontrado e chamado o INEM. Foi o técnico Luís Pedro Nunes o primeiro a socorrer a criança. "Tinha uma hemorragia ativa no cordão umbilical, hipotermia grave e dificuldades respiratórias", contou.
De acordo com a acusação, desde os sete meses de gravidez que Sara soube que estaria grávida, depois de ter feito um teste de gravidez num centro de apoio aos sem-abrigo. Sobre a possibilidade de abortar ou levar a gravidez até ao fim, a jovem chegou a responder que queria ficar com o filho. Mas não pediu ajuda nem se preparou para o nascimento do mesmo.
A história não deixou nem o Presidente da República indiferente. A 7 de novembro, Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de reservar um espaço na sua agenda para visitar um dos sem-abrigo que descobriu o recém-nascido, Manuel. "Venho agradecer-lhe", justificou o encontro.
O momento foi registado pela CMTV, e o chefe de Estado aparece a fazer várias questões sobre como é que Manuel, há cerca de dez meses a viver na rua, se terá apercebido da presença do bebé. O sem-abrigo confessou ter ficado abalado com o momento, revelando que gostaria que o bebé tivesse o nome do seu filho.
"É um exemplo de humildade. É muito mais do que dizer que cumpriu a sua obrigação à sociedade: foi humanidade", disse Marcelo Rebelo de Sousa ao homem. O que fez "não tem preço", acrescentou, desafiando-o a ir visitar o recém-nascido ao hospital.
A jovem Sara acabaria por ser encontrada pela Polícia Judiciária e presente a um juiz que decidiu que iria ficar em prisão preventiva, na cadeia de Tires (Cascais), sob a acusação de tentativa de homicídio qualificado na forma tentada.
A juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que ouviu a jovem no julgamento, considerou que esta agiu sempre, desde que soube estar grávida, com o propósito de ocultar a gestação e após o nascimento tirar a vida à criança.
Sara Furtado admitiu, em tribunal, ter agido de tal forma "porque estava desesperada, não sabia o que fazer ao bebé, não tinha condições porque estava na rua e não pensou deixar a criança em local onde pudesse ser encontrada".
Segundo refere a investigação do Ministério Público, a arguida "agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que estas condutas são proibidas e punidas por lei penal", imputando-lhe, assim, a prática e autoria material na forma tentada de um crime de homicídio qualificado.
Não tardou até que um grupo de advogados tentasse reverter a situação da arguida, através da entrega oficial de um pedido de libertação da jovem. O grupo, protagonizado por Varela de Matos, candidato a bastonário da Ordem dos Advogados, Dino Barbosa, advogado titular, e Filipe Duarte, advogado estagiário, consideraram a detenção "ilegal". Alegaram, por isso, que a mulher devia ser acusada pelo crime de "exposição ao abandono", que não contempla a prisão preventiva.
Contudo, o pedido de habeas corpus acabou por ser indeferido pelo Supremo Tribunal de Justiça por falta de fundamento. "Não se encontra a arguida em situação de prisão ilegal, inexistindo, por isso, abuso de poder seja suscetível de integrar o disposto no artigo 31º Nº 1 da Constituição da República, ou algumas das alíneas do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal, que consagram o regime que delimita o âmbito da admissibilidade e procedência da providência contra a prisão ilegal e arbitrária".
A jovem continua detida e a medida de coação é revista dentro de três meses. Na semana passada, a ministra da Justiça visitou Sara e garantiu que a mesma está a receber apoio psicológico. "Saio daqui confortada com a ideia de que está tudo a funcionar como devia", disse Francisca Van Dunem. A ministra lembrou que a responsabilidade da administração prisional é certificar-se de que estão a ser prestados todos os apoios médicos, psicológico, psiquiátrico, às reclusas e que o caso desta jovem não é exceção.
Uma tese reforçada por psicólogos forenses, que consideram "ser imprescindível" sujeitar a jovem a uma avaliação psiquiátrica e psicológica de forma a detetar sinais de patologias e os traços da sua personalidade. Porque os relatos que a jovem faz "demonstram ausência de sentido do valor da vida", explicaram ao DN.
A advogada de Sara Furtado pede que a jovem seja transferida da cadeia de Tires para uma instituição de solidariedade social, passando a cumprir prisão domiciliária com pulseira eletrónica, avançou o Expresso. Ana Maria Lopes garante que há até uma ONG que já se mostrou disponível para acolher a jovem. "Ainda estou a preparar o recurso da medida de coação. Com o compromisso de uma instituição que pode acolher a Sara, desde que seja esse o interesse da mesma, estamos em crer que o recurso pode ser procedente. Não se verificando tal procedência resta pedir a alteração da medida de coação no final de três meses quando da revisão obrigatória de tal medida", disse.
Muito se especulou sobre qual seria o destino do bebé, que teve alta hospitalar na quinta-feira da Maternidade Alfredo da Costa. Esta sexta-feira, a Santa Casa da Misericórdia e Lisboa, que já tinha revelado estar a receber vários pedidos de famílias interessadas em acolher a criança, anunciou que esta foi entregue a uma família de acolhimento.
Apesar de o juiz do Tribunal de Família e Menores de Lisboa ter decidido aplicar ao bebé a medida cautelar de acolhimento residencial, ou seja, numa instituição, mudou a decisão a pedido do Ministério Público. Segundo uma nota da Procuradoria-Geral da República de quarta-feira, o juiz decidiu a favor da proposta do MP, "tendo determinado a substituição da medida de acolhimento residencial pela de acolhimento familiar, a título cautelar, a concretizar aquando da alta clínica da criança".
Segundo o mais recente relatório das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, mais de 39 mil crianças foram sinalizadas em situação de perigo em 2018. As situações mais graves dizem respeito a negligência, 31,2%, e a violência doméstica, 22,7%. O ano de 2018 foi aquele em que se registou um aumento de situações de abandono.