Portugal estreia sistema de segurança de fronteiras que desafia recomendações europeias
Desde a meia-noite deste domingo que está em vigor um novo sistema de controlo de fronteiras, com novos intervenientes e sem aquela que era a polícia de excelência nesta matéria, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
O inédito modelo atomiza as competências do SEF por três forças policiais -Polícia Judiciária (PJ), PSP e GNR - numa nova Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) e no Instituto de Registos e Notariado (IRN). Os seus funcionários são espalhados por sete organismos.
Esta singular arquitetura do sistema de controlo de fronteiras, única na União Europeia (UE), representa um desafio sem precedentes ao modelo que tem sido preconizado pelas políticas comunitárias - baseado na centralização e especialização - e terá a sua prova de fogo na próxima "avaliação Schengen", no âmbito da qual uma equipa de peritos europeus verificará se estão cumpridas as recomendações feitas no último relatório sobre a aplicação das regras de Schengen na gestão da fronteira externa.
Depois de uma primeira visita, entre o final do ano passado e março deste ano, os avaliadores decidiram suspender sine die, as verificações relacionadas com a segurança das fronteiras para depois de a reorganização estar concluída, podendo, a partir deste dia 29 de outubro, voltar a qualquer momento.
O que esta equipa vai encontrar será um cenário radicalmente diferente daquele que verificou na avaliação de 2017 e as recomendações daí produzidas nem contemplavam a ausência do SEF, cuja extinção não estava sequer prevista no programa do Governo.
Entre as recomendações "para suprir as deficiências detetadas na avaliação de 2017 relativa à aplicação por Portugal do acervo de Schengen no domínio da gestão da fronteira externa", aprovadas pelo Conselho europeu a 14 de maio de 2018, constantes num relatório a que o DN teve acesso, está, por exemplo, assegurar que "o SEF dispõe de pessoal suficiente para efetuar os controlos de fronteira em conformidade com o acervo de Schengen" e que os seus inspetores "recebem formação com maior frequência (...) que inclua informações atualizadas sobre as últimas tendências da fraude documental, do modus operandi dos migrantes irregulares e da análise de risco, incluindo análises de risco na fronteira marítima, a fim de manter o nível de competências exigido".
Prescreve ainda "aprofundar a estratégia nacional de gestão integrada das fronteiras, definindo claramente os objetivos estratégicos por ordem de prioridade com base numa análise exaustiva dos riscos e tendo em conta a mais recente evolução do quadro estratégico da União Europeia; incluir nessa estratégia planos de longo prazo respeitantes aos recursos humanos; complementar a estratégia com um procedimento claro de monitorização e atualização, bem como um calendário concreto de execução".
O ministro da Administração Interna (MAI) garantiu, numa recente intervenção pública, que há um "trabalho pensado para desenvolver no imediato".
No que diz respeito à "gestão integrada e fronteiras", assegurou José Luís Carneiro, "nos próximos meses, em coordenação com o Sistema de Segurança Interna, Forças e Serviços de Segurança e a AIMA, assim como com a PJ, terá de ser revista a estratégia nacional de gestão integrada de fronteiras (...). Isto tem a ver com a atualização do modelo, para efeitos de futura verificação "in loco" dos termos em que ela está a funcionar e a ser operacionalizada".
Acrescentou ainda, no mesmo discurso, que iria ser "ativada" a nova Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros (UCFE), sob a alçada do secretário-geral do SSI, uma espécie de "mini-SEF", conforme o DN já noticiou, que vai gerir as bases de dados policiais e sistemas de informação em matéria de fronteiras e estrangeiros e de cooperação policial internacional.
Adiantou também que "a GNR e PSP estão neste momento a trabalhar com as suas congéneres europeias, em especial Espanha e França, no sentido de desenvolver ações de cooperação, em especial na formação de quadros especializados e na troca de informações".
No que diz respeito às fronteiras aéreas afiançou que existe "um ambicioso plano de formação que, em dois anos, garantirá que todos os polícias nos aeroportos portugueses estarão duplamente capacitados como guardas de fronteira e especializados em segurança aeroportuária", além de que, "o plano em curso prevê ainda formação especializada em fraude documental (...) para reforçar essa capacidade no aeroporto, que bem sabemos que era uma capacidade que estava relativamente debilitada na nossa infraestrutura. Além de análise de risco, e da avaliação da qualidade dessa análise de risco, mantendo desta forma uma formação regular e permanente".
O Ministro reconhece que esta reestruturação lança "desafios à gestão integrada das fronteiras, mas são desafios que nos planos estrutural e organizacional pretendem, designadamente, garantir que existem claros ganhos de eficiência".
Quem não está de todo convencido é André Coelho Lima, deputado do PSD que é membro do Conselho Superior de Segurança Interna e que acompanhou este dossier desde o primeiro momento.
"É uma decisão arriscada, não experimentada, preconceituosa e - como se viu da dificuldade da sua implementação - pouco responsável. Portugal tinha um serviço de segurança especialmente dedicado às fronteiras desde 1986 (entrada no espaço Schengen) e agora tem a tarefa distribuída por três forças de segurança de natureza policial (PSP, GNR e PJ), duas de natureza administrativa (IRN, AIMA) e ainda a UCFE. Apenas do ponto de vista da lógica operativa e funcional das decisões, ninguém consegue compreender a repartição do saber e das competências científicas e empíricas de uma unidade especializada para seis entidades; é contra todas as boas práticas de gestão de recursos".
O deputado, que integra a Comissão de Assuntos Constitucionais do parlamento, considera que, com este modelo, o país fica em "contraciclo".
"Numa altura em que as migrações são o topo da agenda mundial, numa altura em que este é o tema que mais divide a Europa, Portugal entra em contraciclo desprotegendo-se - não dos imigrantes que nos procurem porque é sabido a minha posição de ser totalmente favorável a que Portugal seja um país de acolhimento de quem procure melhores condições de vida como outros países fizeram com os nossos emigrantes no passado - mas desprotegendo-se em termos daquilo que é o saber acumulado nesta área, as especificidades das rotas de imigração, a preocupação com o ser humano que tem que presidir ao funcionamento de qualquer força de segurança, como sucedia com o SEF", assevera.
Conclui, sublinhando que "é também objetivo que este experimentalismo contraria as recomendações Schengen e os responsáveis sabem-no bem, até por não ser permitido forças militarizadas com responsabilidades fronteiriças".
A extinção do SEF começou a ser falada em finais de 2020, na sequência na morte do ucraniano Ihor Homeniuk nas instalações deste serviço de segurança no aeroporto de Lisboa, em março desse ano, pela qual foram condenados três inspetores e vão outros três ainda a julgamento, juntamente com três seguranças.
Apesar de a separação das funções policiais das administrativas estar no programa de Governo, a extinção do SEF não estava prevista, mas depois de o ex-ministro Eduardo Cabrita a ter anunciado e apesar de todos os 13 pareceres pedidos a várias entidades pela Comissão de Assuntos Constitucionais, terem sido todos negativos, o governo já não recuou.
Cabrita adiou uma vez a data de entrada em vigor, Carneiro adiou a segunda, quando constatou que teria de começar quase do zero, quando tomou posse.
"Sem prejuízo de uma atuação determinada no combate às redes de tráfico humano ou na prevenção do terrorismo, há que reconfigurar a forma como os serviços públicos lidam com o fenómeno da imigração, adotando uma abordagem mais humanista e menos burocrática, em consonância com o objetivo de atração regular e ordenada de mão-de-obra para o desempenho de funções em diferentes setores de atividade", era defendido na resolução de Conselho de Ministros em abril de 2021.
O Espaços Equiparados a Centros de Instalação Temporária (EECIT), como aquele do aeroporto onde morreu Ihor Homeniuk, vão ficar sob a competência da PSP. De acordo com a direção nacional desta força de segurança, "em articulação com a equipa de formadores do SEF foi delineada uma ação de formação complementar e inovadora para os polícias da PSP que vão exercer funções nos CIT/EECIT (Unidade Habitacional Santo António, EECIT no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, EECIT no Aeroporto Humberto Delgado e EECIT no Aeroporto Gago Coutinho)".
Explica a PSP, liderada por José Barros Coreia, que "a ação de formação vai incidir sobre as seguintes áreas temáticas: quadro regulamentar (nacional e internacional), diversidade cultural/comunicação e gestão de conflitos (a cargo da OIM), uso de meios coercivos em ambiente condicionado e técnicas básicas de emergências (a cargo do INEM)".
Assumido por José Luís Carneiro que este plano, anunciado em final de 2020 e aprovado no parlamento em novembro de 2021, apenas com os votos a favor do PS e do BE, só começou, de facto, a ser concretizado em maio de 2022, ainda assim não foi concluído.
Apesar de o SEF ter sido extinto, mais de metade dos seus inspetores têm de ficar ainda nas fronteiras (404 segundo o MAI) e 51, segundo o diretor nacional da PJ, vão ficar, em comissão de serviço na já referida UCTE.
A PJ que integra todos os 789 inspetores no seu quadro de funcionários, terá neste dia ao seu serviço 225, segundo disse a ministra da Justiça na passada sexta-feira, à margem da cerimónia do 78º aniversário desta polícia.
À hora do fecho deste texto não foi possível ainda confirmar se, a estes 225, ainda serão descontados os 68 que passam à disponibilidade, os cerca de 30 inspetores no topo da carreira (coordenadores e coordenadores superiores) que serão colocados na Autoridade Tributária, os 70 que ainda estão em missões internacionais, e os 10 que, inesperadamente, a AIMA precisa de recrutar (porque só inspetores é que têm qualificações para a instrução dos processos de asilo, uma das competências da nova agência, e terá ainda de ser feita ainda a formação aos funcionários administrativos).
No SSI ficará instalado o "cérebro" de toda a troca de informações entre as várias polícias e entre estas e a AIMA.
A PJ ficará com todas as investigações dos "crimes de auxílio à imigração ilegal, associação de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas e de outros com estes conexos", o que antes também era da competência do SEF.
A PSP estará nos aeroportos, na "vigilância, fiscalização e controlo das fronteiras", a executar as expulsões de estrangeiros e a fazer operações de fiscalização nas suas áreas.
A GNR fará exatamente o mesmo nas fronteiras marítimas e terrestres e as operações de fiscalização das suas áreas de jurisdição.
De acordo com os dados oficiais, o SEF já formou 400 elementos da PSP e 233 da GNR para assumir as suas funções - muitos mais do que tem o SEF atualmente nesse serviço - mas só dentro de dois anos está previsto essa passagem plena de testemunho.
Até lá, o governo não quer correr riscos. "Entendemos que mesmo reconhecendo que tanto a PSP e a GNR já são capazes de garantir a primeira linha de controlo de fronteira aérea, marítima e terrestre, entendemos que por uma questão de cautela era importante manter durante um ano, a 100%, os inspetores do SEF". Depois, se correr tudo bem, em outubro de 2024 haverá a saída de cerca de 50% do efetivo", sublinhou o MAI.
O IRN ficou com a emissão do passaportes e as renovações do títulos de residência.
A AIMA tem uma miríade de competências, desde a concessão das autorizações de residência, à instrução dos pedidos de asilo, a execução das políticas de integração e apoios às comunidades migrantes. Terá, para já, 495 funcionários do SEF e com a fusão do Alto Comissariado para as Migrações, mais 168 funcionários.
A AIMA pretende ser a imagem daquele que foi o mais usado argumento usado para a extinção do SEF, que é foi o "humanizar" a relação do Estado com os migrantes, afastando as polícias destes processos. O que, como é óbvio, só poderá acontecer no contacto direto, porque todos os processos vão passar pelo SSI, onde será feita a verificação de segurança, como acesso a todas as bases de dados policiais disponíveis.
Sobre esta Agência, que acaba por ser a "colona dorsal" de todo este novo modelo, ainda há uma grande indefinição, pouco ainda se sabe ao dia de hoje, especialmente no que diz respeito às medidas e meios para melhorar o atendimento aos imigrantes e a sua integração, tendo ficado por responder todas as questões (ver em baixo) colocadas pelo DN ao gabinete da Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes.
1- Onde os imigrantes poderão realizar a renovação das Autorizações de Residências (ARs) vencidas? O sistema online, implementado em 2020, será mantido?
2- Hoje, 24 de outubro, o procedimento de renovação online está atrasado há 24 dias, com milhares de estrangeiros com o documento vencido e limitados no que diz respeito, por exemplo, a viagens no Espaço Schengen e formalização de contratos de trabalho. Quando a situação será normalizada?
3- Já se tornou comum a reabertura das renovações acontecerem com atrasos. Qual o motivo? Isso continuará acontecendo na nova agência?
4- Quando será inaugurado um novo portal de substituição ao SEF?
5- Sempre que o SEF abre vagas, seja para renovação ou reagrupamento, o site fica inoperacional. Que precauções foram tomadas para que não ocorra o mesmo com a nova agência?
6- Quantos funcionários a AIMA terá? Destes, quantos são profissionais novos, contratados exclusivamente para reforçar a AIMA?
7- A AIMA terá postos de atendimento presenciais? Se sim, quantos e onde?
8- Que medidas foram tomadas para que a instrução dos processos seja mais rápida, já que a demora na apreciação dos pedidos é uma das principais falhas do sistema de imigração de Portugal?
9- A AIMA vai herdar do SEF quantas Manifestações de Interesse para análise? Estimam que o tempo de espera por todo o processo (que leva em média dois anos) poderá diminuir?
10- Em relação ao reagrupamento familiar, outra queixa recorrente, quantas vagas serão abertas no arranque da nova agência?
11- Ainda sobre o reagrupamento, é cada vez maior o intervalo entre abertura de vagas. Com a AIMA esses procedimentos serão mais recorrentes? Recordo que entre os 151 mil imigrantes com vistos CPLP, impedidos de fazer reagrupamento familiar no momento, há milhares que precisam fazer o reagrupamento de menores.
12- Como está a relação da AIMA com as associações de migrantes e como será o trabalho com tais órgãos quando a agência for criada?
13- Quando serão publicados os estatutos que deixarão as pessoas mais informadas sobre o que vai acontecer?
14 - Que medidas a AIMA prevê para melhorar a integração dos migrantes?
15- O SEF anunciou, ainda em fevereiro, uma iniciativa para atender vários imigrantes ao mesmo tempo, mas não aconteceu. Está prevista a concretização desta iniciativa através da AIMA?