Homicídio por omissão, denegação de justiça e sequestro: as novas acusações pela morte de Ihor

O ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, dois inspetores e dois seguranças: três anos depois da morte do cidadão ucraniano sob custódia do SEF, há mais cinco acusados por vários crimes. Pela primeira vez num caso de violência policial, há responsabilidade criminal imputada por encobrimento e por inação.

É uma acusação histórica aquela que sai esta semana, três anos depois da morte, ocorrida a 12 de março de 2020 sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk.

Pela primeira vez em Portugal num caso de violência policial, além dos diretos acusados por essa violência - três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras já condenados, com confirmação pelo Supremo Tribunal da qual apresentaram recurso para o Constitucional, a nove anos de prisão, por terem agredido a vítima, deixando-a algemada mais de oito horas, causando-lhe a morte por asfixia - há um superior hierárquico acusado por encobrimento e outros membros da corporação a quem são imputados crimes por não terem agido como os seus deveres impunham.

Um desses superiores hierárquicos é o à época responsável máximo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto da capital, o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa António José Sérgio Henriques.

Sérgio Henriques já tinha sido o primeiro membro da direção de uma polícia portuguesa a ver-se, em agosto de 2021, expulso da função pública devido àquilo que a Inspeção Geral da Administração Interna qualificou como o encobrimento das reais circunstâncias da morte - que quis fazer passar por "natural".

Agora, a acusação assinada pelo procurador Óscar Ferreira, da 11ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, especializado em crimes violentos, imputa ao ex-diretor de Fronteiras o crime de denegação de justiça e prevaricação.

Este crime, previsto no artigo 369º do Código Penal, é cometido por um funcionário que, "no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce."

O Ministério Público considera que Sérgio Henriques sabia que Ihor, cujo cadáver, com vários hematomas e descomposto, viu, "fora algemado com as mãos atrás das costas e mantido deitado num colchão, em posição de decúbito lateral, por um período de oito horas e sem vigilância" - facto que, aliado à fratura das costelas causada por agressões, provocou a sua morte por asfixia -, tendo omitido essa informação à direção nacional do SEF e manobrado para que não fosse referida nos relatórios, quer do SEF quer dos vigilantes, relatórios cuja redação controlou.

Diz a acusação: "Nesse mesmo dia, cerca das 20H25, o arguido dirigiu-se ao EECIT e ali tomou às rédeas à elaboração do relatório dos vigilantes de serviço durante o período em que ocorreu a morte de IH. Em tal relatório, o arguido escreveu ou determinou que os vigilantes escrevessem que pelas "08H15 compareceram no CIT, os inspetores Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa, para falarem com o pax [abreviatura de "passageiro"], tendo sido algemado pelos mesmos. Saíram às 08H44", omitindo, porém, que para a aplicação daquela medida, houve necessidade de recorrer à força física, que a mesma foi efetuada com as mãos e que IH foi deixado deitado num colchão, sem vigilância, durante cerca de 8 horas."

O intuito desta conduta de Henriques, crê o procurador Óscar Ferreira, terá sido o de impedir consequências disciplinares para os responsáveis. A investigação não encontrou no entanto provas de que o ex-diretor de Fronteiras, que deu a ordem para que alguém fosse "acalmar Ihor" (a qual resultou no envio dos três inspetores condenados), tivesse, antes da respetiva morte, sabido que este fora agredido e algemado.

E não terá sabido, considera o MP, porque quem de entre os seus inferiores hierárquicos o devia ter informado, pelo menos no que se refere ao estado algemado do detido, não o fez.

Matar por "relaxe, incompetência e incúria"

Caso de João Agostinho, inspetor coordenador (o segundo grau mais alto na hierarquia) que estava, como "inspetor de turno" - o que pode ser descrito como "chefe de esquadra" -, de serviço das 7 às 15 horas no dia da morte de Ihor, reportando diretamente à direção de Fronteiras, e de Cecília Vieira, inspetora que esteve igualmente de serviço nessa manhã.

Ambos estavam no centro de detenção do SEF do aeroporto - denominado de Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) - quando Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa, os três inspetores condenados por terem agredido o cidadão ucraniano, ali foram "acalmá-lo".

Segundo a acusação, quer João Agostinho quer Cecília Vieira assistiram ao início da intervenção dos três inspetores junto de Ihor e deram-se conta pelo menos do facto de este ter sido deixado algemado de mãos atrás das costas, deitado no chão e sem vigilância, e, apesar de saberem que essa situação era propiciadora de perigo para a vida e proibida pelas normas em vigor no SEF, nada fizeram quanto a isso: nem reportaram o facto nem trataram de o mandar desalgemar.

"Os arguidos Maria Cecília Belo Vieira e João Carlos da Silva Assunção Agostinho sabiam que Ihor Homeniuk [IH] estava sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, pelo que estaria confiado àquele serviço a proteção dos respetivos bens jurídicos, nomeadamente vida e integridade física, e que a salvaguarda dos mesmos, dependia dos respetivos comportamentos", afirma o MP.

"Sabiam que IH estava algemado com as mãos atrás das costas, deitado no chão, desde das 08H40 até pelo menos ao fim do respetivo turno de serviço, sem vigilância, e não comunicarem superiormente, tampouco diligenciaram pela sua desalgemagem, assim o mesmo estivesse calmo. (...) Caso o tivessem feito atempadamente, provavelmente a morte de IH não se teria verificado."

Aquilo que o procurador Óscar Ferreira descreve como "silêncio e inação" dos dois arguidos é, a seu ver, tanto mais grave quando a todos os Inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, informa-se, é "ministrada a disciplina de "aspetos práticos de controlo de fronteiras", que inclui entre outros, o módulo de aplicação de algemas, e tinham conhecimento que a sua colocação com as mãos atrás das costas só é permitido em caso excecionais, mas que o algemado nunca poderá ser deixado sem vigilância para se evitar que o mesmo "sucumba"".

E conclui: "Sabiam os arguidos que ao não desalgemarem IH logo que aquele baixou os índices de agressividade, ou ao não diligenciarem (...) pela cessação de tal medida de segurança, que sabiam manter-se desde das pelo menos 08H40 e o fim do seu turno, que tal poder-lhe-ia causar a morte, aceitando e conformando-se com esta."

São pois João Agostinho e Cecília Vieira acusados de "homicídio negligente por omissão".

Este crime, com pena máxima de três anos de prisão, tem lugar quando ocorra uma morte por ausência de auxílio, ou, na explicação do advogado Paulo Saragoça da Matta, "quando alguém mata outrem por relaxe, incompetência e incúria".

Também esta imputação de responsabilidade criminal a quem, numa organização policial, não age para remediar, corrigir ou denunciar a violência perpetrada por outros polícias é uma estreia no que respeita ao sistema judicial português.

Vigilantes acusados de sequestro e exercício ilegal de segurança privada

Há ainda lugar na acusação exarada esta semana para dois dos oito funcionários da empresa de segurança privada Prestibel que tiveram contacto com Ihor Homeniuk durante o tempo, da tarde de 11 de março à de 12, que permaneceu no EECIT.

O Ministério Público quis constituir arguidos todos os oito - quatro mulheres e quatro homens - que estiveram de turno nos dias 11 e 12 de março, mas uma das vigilantes, de nacionalidade romena, saiu do país pouco depois da tragédia e não foi possível localizá-la. Em causa estava, numa primeira fase, a imputação do crime de omissão de auxílio a todos os vigilantes, assim como o de ofensa à integridade física e/ou tortura para dois deles - Manuel Correia e Paulo Marcelo - cujo turno de 24 horas terminou às oito horas da manhã do dia 12, e que durante a noite terão manietado Ihor, de pés e mãos, com fita adesiva.

Na acusação, porém, só estes últimos dois nomes se mantiveram, sendo sequestro o crime imputado.

Previsto no artigo 158º do Código Penal, este crime, que na sua forma simples tem pena de prisão até três anos, é praticado por quem "detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade", sendo agravado, com pena de dois a 10 anos de prisão, quando "for praticada simulando o agente autoridade pública, ou com abuso grosseiro dos poderes inerentes às suas funções públicas".

O procurador Óscar Ferreira considera que, por vários motivos, entre os quais não terem formação que lhes permitisse conhecer o perigo de manter uma pessoa algemada com as mãos atrás das costas por um longo período de tempo, e pela "subalternidade existente entre os vigilantes e os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras", a qual "não permitiria que aqueles por iniciativa própria retirassem as algemas" a Ihor, não é aplicável aos vigilantes o tipo criminal de omissão de auxílio.

Marcelo e Correia já tinham confessado, em tribunal, terem manietado Ihor com fita adesiva - facto do qual a procuradora Leonor Machado, que representou o MP no julgamento dos três inspetores acusados do homicídio qualificado de Ihor Homeniuk, pediu extração de certidão no final do julgamento - e as vigilantes Ana Lobo e Cátia Castelo-Branco, que com eles faziam o turno, assumiram, ao serem confrontadas com as imagens das câmaras de videovigilância do centro de detenção (as quais, recorde-se, não permitiam ver o interior da divisão em que Ihor foi colocado e onde veio a morrer), tê-los assistido, indo buscar a referida fita adesiva.

No presente inquérito, porém, as duas garantiram que de facto passaram com fita-cola na mão pelo corredor que dá acesso à divisão onde Ihor era mantido, mas "apenas porque estavam a selar envelopes". Ambas disseram "não se recordarem" de se terem deslocado à divisão onde estava Ihor "para selar envelopes" nem de terem entregado a fita adesiva a alguém, declarações que lhes terão valido não serem também acusadas.

Paulo Marcelo e Manuel Correia são também acusados do exercício ilícito de segurança privada. Esta acusação resulta da queixa apresentada pelo presidente do Sindicato da Carreira de Investigação do SEF, Acácio Pereira.

Na queixa, este inspetor do SEF considera que "as competências legais e exclusivas e expressamente atribuídas ao pessoal de carreira de vigilância e segurança deste serviço (SEF) com vista a garantir a segurança e a vigilância dos centros de instalação temporária (Ex: EECIT), assegurando o seu funcionamento, estão a ser exercidas por profissionais de segurança privada, que desenvolvem esta atividade para o SEF".

Argumentando que este crime se refere à utilização ilegítima de "medidas que só autoridades judiciárias e policiais podem determinar e/ou praticar, nomeadamente, aquelas que restrigem/limitem direitos liberdades e garantias do cidadão mas que configuram causas de exclusão da ilicitude como: detenções, revistas, buscas, identificação de suspeitos, apreensões, colocação de algemas, etc", o procurador Óscar Ferreira conclui que, à exceção da atuação dos vigilante Marcelo e Correia, o tipo criminal não se aplica no caso.

Isto porque, lê-se na acusação, "nada impede à Direção dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras a celebração de contratos com empresas privadas para a prestação de serviço de vigilância e controlo de entradas e saídas de pessoas instaladas nos centros de instalação temporária, desde que aquelas e seu quadro pessoal, reúnam as condições previstas" na lei.

Quanto à responsabilidade criminal da pessoal coletiva Prestibel (a empresa de segurança contratada pelo SEF) esta apenas teria relevância, diz o procurador, "se resultasse dos autos que a Prestibel instruiu os seus trabalhadores à pratica de condutas que configurem crime, o que manifestamente não acontece".

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