Para evitar haver mais plástico do que peixe no mar, oceanos são debatidos em Lisboa

A Conferência Oceano Que Pertence a Todos vai juntar nos dias 22 e 23 três dezenas de participantes de 17 nacionalidades. António Guterres lançou agora sério alerta sobre o destino trágico dos mares, e o seu enviado especial para o Oceano, Peter Thomson, será um dos que tentarão debater soluções.
Publicado a
Atualizado a

Sete meses antes de Neil Armstrong pisar a Lua, outro astronauta americano, William Anders, sobrevoou o satélite natural da Terra e tirou uma foto a mostrar o nosso planeta em todo o seu esplendor. Aquele instantâneo de dezembro de 1968, resultado da missão Apollo 8, mostrava um brilhante planeta azul no meio da escuridão, confirmando que apesar do nome Terra é o mar que cobre a maior parte da sua superfície, uns 70%. E é exatamente o mar o tema da grande conferência Oceano Que Pertence a Todos, que se realiza nos dias 22 e 23 em Lisboa, com transmissão via Zoom e YouTube a partir das 09h00 em ambos os dias.

"É objetivo da conferência debater sobre alguns dos desafios relativos ao oceano, desde a invasão de plásticos nas cadeias alimentares e o degelo do Ártico às implicações da extensão das plataformas continentais, desde a extração de energias limpas e de inputs para as indústrias biotecnológicas e outras à insegurança provocada pela pirataria e o tráfico de pessoas e drogas, desde as prioridades da investigação ao papel dos ativistas ambientais", explica Fernando Jorge Cardoso, diretor executivo do Clube de Lisboa, entidade responsável pelo evento.

Organizada em modo online devido à pandemia, a conferência abre na segunda-feira com intervenções do embaixador Francisco Seixas da Costa, presidente do Clube de Lisboa, e de Maja Markovcic Kostelac, a croata que é diretora executiva da Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA), com sede em Lisboa. Ao todo, sublinha Fernando Jorge Cardoso, "o evento contará com 30 participantes de 17 nacionalidades, provenientes de três continentes e abarcando diversas geografias oceânicas. Entre os vários peritos e personalidades presentes nos painéis estarão o ministro do Mar, o da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e o da Defesa. O encerramento será feito pelo enviado do secretário-geral da ONU para a Década da Ciência do Oceano. As diversas sessões terão um formato de conversa, podendo a audiência colocar questões".

Para Portugal, um país cuja história é indissociável do mar mas cujo futuro se pretende também que o seja, é importante estar na vanguarda de tudo aquilo que se debate sobre os oceanos. Como sublinha o contra-almirante Carlos Ventura Soares, "a centralidade de um Portugal, quase arquipelágico, entre o oceano Atlântico e o continente Europa, torna-se menos relevante num contexto em que o centro de gravidade dos equilíbrios geoestratégicos se deslocou claramente do Atlântico para o Pacífico. No entanto, a perspetiva de abertura de rotas de navegação no Ártico poderá promover a importância do espaço marítimo nacional, dada a sua posição geográfica central no Atlântico Norte. Acresce a tudo isto a significativa dimensão do oceano Atlântico sob soberania ou jurisdição nacional, bem como a plataforma continental estendida reclamada nas Nações Unidas. Um total de cerca de quatro milhões de quilómetros quadrados, de grande relevância estratégica e com um potencial de recursos não despiciendo, que poderão alavancar uma economia azul baseada no desenvolvimento sustentável".

O diretor do Instituto Hidrográfico Português, que é um dos conferencistas, refere-se à possível extensão da zona económica exclusiva (ZEE) do país. Hoje já a terceira maior da Europa e a 11.ª a nível mundial (graças à soma dos 287 mil quilómetros quadrados relativos a Portugal continental, mais os 442 mil da Madeira e os 930 mil dos Açores), essa ZEE pode vir a ser 40 vezes maior do que o território português.

São pois muitas as razões para Portugal ser um elemento ativo no esforço de cooperação para proteger os oceanos. Diz igualmente o contra-almirante que "a Década das Nações Unidas das Ciências do Oceano para o Desenvolvimento Sustentável 2021-2030 implica construir uma plataforma de cooperação científica internacional para o conhecimento científico e para a proteção dos oceanos. Portugal deve integrá-la, focando-se no espaço atlântico, aproveitando a distribuição geográfica dos países atlânticos da CPLP para uma estratégia abrangente, que inclui a Europa, a África e a América do Sul. Pode fazê-lo beneficiando do seu posicionamento geográfico, articulando o espaço lusófono com o espaço europeu. Terá assim condições para enfrentar os desafios existentes, nomeadamente a resposta às consequências das alterações climáticas e aos seus impactos nos ambientes e comunidades marinhas e costeiras; a compreensão dos aspetos funcionais dos ecossistemas; a implementação de uma abordagem ecossistémica; a conservação da biodiversidade marinha; o desenvolvimento de um sistema de observação integrado do oceano; a aposta nas energias renováveis; a exploração do oceano profundo e margens continentais".

A organização do Clube de Lisboa contou para esta conferência com a parceria da Fundação Oceano Azul, do Instituto Hidrográfico Português e da Sustainable Oceans Aliance (SOA), o apoio da Câmara de Lisboa e do Instituto Marquês Valle Flor, a colaboração da EMSA e a cooperação da Embaixada do Japão em Portugal, com o país asiático a contribuir com grande número de especialistas. Entre os moderadores está Rosália Amorim, diretora do DN, responsável pela condução do painel Uma Economia Azul para além da Pesca e da Extração Mineral.

Tiago Pitta e Cunha, um dos conferencistas desse painel marcado para as 09h00 de dia 23, afirma que "é cada vez mais evidente que o oceano terá um papel fulcral na próxima grande revolução económica. Nesse sentido, há uma série de questões estratégicas que os Estados costeiros, como Portugal, devem considerar. Ao reunir especialistas nacionais e internacionais, a conferência Oceano Que Pertence a Todos é um encontro que a Fundação Oceano Azul considera indispensável para discutir a mudança de paradigma com o oceano a protagonizar o papel central". Acrescenta o CEO da Fundação Oceano Azul que "o ano de 2021 é crítico para a agenda internacional do oceano, existindo a oportunidade de se avançar com a tomada de decisões que podem levar a verdadeiros progressos nos assuntos do oceano. Tais decisões não podem continuar a ser adiadas: a crise do oceano não pode esperar pelas nossas deliberações. Neste contexto, a Conferência sobre o Oceano do Clube de Lisboa é muito bem-vinda, permitindo à Fundação Oceano Azul promover RISE UP - A Blue Call to Action, uma agenda concreta para o oceano com 29 ações prioritárias para os próximos dez anos. Apoiado por mais de 450 organizações nacionais e internacionais, o RISE UP é um apelo conjunto da sociedade civil internacional aos governos e empresas para que se comprometam com ações ousadas e urgentes para a recuperação do oceano. Além disso, a fundação irá chamar a atenção para a Missão Estrela do Mar 2030, uma iniciativa da Comissão Europeia, que propõe um plano visionário para os próximos dez anos e que é em si mesma uma concretização da agenda RISE UP for the Ocean".

Se as Descobertas confirmaram o destino marítimo de Portugal, fazendo dos portugueses os agentes da primeira globalização, o Japão tem um lugar especial nessa saga dos séculos XV e XVI pois foi o ponto mais distante a que chegámos. Ora o Japão, pela sua condição de arquipélago, tem um envolvimento muito concreto com tudo o que são assuntos dos oceanos, desde a proteção dos habitats marinhos, essencial aos maiores consumidores mundiais de peixe, até à preservação da liberdade de navegação, crítica para a terceira potência económica mundial.

"Nos últimos anos, a situação dos oceanos vem se tornando cada vez mais complexa: aumentou o número de incidentes e conflitos entre as nações, devido à divergência das interpretações sobre o espaço marítimo, tais como sobre os recursos naturais ou a segurança nacional. A poluição marítima causada por detritos plásticos afeta os ecossistemas marinhos, o turismo e a saúde humana. O impacto das alterações climáticas sobre os oceanos também é um assunto premente", diz Ushio Shigeru. O embaixador em Portugal sublinha que "o Japão, nação insular rodeada nos quatro cantos pelo mar, é uma nação marítima, que alcançou o desenvolvimento económico através das trocas comerciais marítimas e do aproveitamento de recursos marítimos, numa ordem marítima estável baseada no direito de livre navegação e livre comércio. Como tal, sempre conferiu a devida importância ao oceano".

O diplomata acrescenta ainda que "a questão dos oceanos é hoje um desafio global. Sob a presidência portuguesa, o Conselho da União Europeia está a deliberar sobre uma ordem marítima estável na região Indo-Pacífico. Infelizmente a Conferência dos Oceanos da ONU sediada em Lisboa teve de ser adiada devido à pandemia. Tendo em conta esta conjuntura, espero que este seminário nos dê uma oportunidade para desenvolver e aprofundar a discussão entre países, organizações, e para lá das gerações, contribuindo assim para a consciencialização do estado presente e futuro dos oceanos, que pertencem a todos".

A boa notícia para a cooperação internacional sobre o oceano vem dos Estados Unidos, que após a eleição de Joe Biden regressaram ao Acordo de Paris para as alterações climáticas. Mas não faltam as tensões relacionadas com os recursos marítimos, desde o Mediterrâneo Oriental até ao mar da China do Sul, onde as pretensões de soberania chinesa sobre várias ilhotas e recifes chocam com as reivindicações de outros países e leva, inclusive os Estados Unidos a enviar duas esquadras de porta-aviões em defesa da liberdade de navegação, uma delas, a do porta-aviões USS Theodore Roosevelt, comandada por um lusodescendente, almirante Doug Verissimo.

A conferência Oceano Que Pertence a Todos encerra com o diplomata da Fiji Peter Thomson, enviado especial do secretário-geral das Nações Unidas para o Oceano. António Guterres, o antigo primeiro-ministro português que lidera a ONU, tem mostrado grande preocupação com os oceanos. Há dias, no Twitter, avisou que "em 2050 poderá haver mais plástico do que peixe no mar". Um alerta impossível de ignorar.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt