Como um relatório ficou na gaveta e ministros, MP e SEF ignoraram alertas de corrupção
As suspeitas de corrupção sobre a inspetora do SEF, Sónia Francisco, detida há uma semana na operação da PJ que desmantelou uma poderosa rede de auxílio à imigração ilegal, eram antigas e não eram desconhecidas.
Foram denunciadas num inquérito disciplinar interno que foi concluído em julho de 2017 e que implicava outros sete funcionários daquela polícia - o diretor nacional adjunto, Luís Gouveia, a subdiretora da Direção Regional de Lisboa e Vale do Tejo, Paula Azevedo Cristina, outros dois inspetores e três administrativos.
As suspeitas, na altura, já eram de diversas ilegalidades na concessão de vistos - mais de nove mil, de acordo com o levantamento feito no inquérito interno. No caso de Sónia Francisco, as suspeitas já eram de corrupção, e eram, aliás, as mesmas que agora levaram à detenção desta funcionária do SEF - embora a investigação da PJ não envolva os outros funcionários.
No inquérito interno do SEF as suspeitas estão todas escritas, preto no branco. No entanto, Sónia Francisco não foi punida - nem mais ninguém. O inquérito interno foi arquivado em outubro de 2017. O diretor do SEF na altura, Carlos Moreira, mandou arquivar tudo, e nem chegaram a ser enviadas para o Ministério Público (MP) as certidões para que fosse aberta uma investigação criminal às suspeitas de corrupção, como era sugerido no inquérito interno.
Dois dos dirigentes referidos foram nomeados para representarem Portugal no estrangeiro. Luís Gouveia para a Representação Permanente Portuguesa junto à União Europeia (REPER) e Paula Cristina para a Frontex.
A Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) chegou a abrir uma auditoria, em 2016, mas ainda está "pendente", segundo o gabinete da inspetora-geral informou o DN. A IGAI acompanhou todo o processo interno do SEF e recebeu todos os relatórios intercalares - mas três anos depois não tirou nenhuma conclusão.
O Ministério Público (MP) terá tido conhecimento, mas não investigou o processo, uma vez que, quando questionado sobre se tinha sido aberto algum inquérito, em dezembro de 2017, a PGR informou que "os elementos recolhidos oportunamente foram objeto de análise, não tendo sido identificados factos suscetíveis de integrarem ilícitos criminais". Em relação às certidões, dizia que "não foi possível localizá-las". Nessa altura estava Joana Marques Vidal ao comando da Procuradoria-Geral da República.
Quanto ao ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que tinha acabado de chegar ao cargo quando o inquérito foi arquivado pela Direção Nacional do SEF, em outubro de 2017, não esclareceu se sabia ou não do inquérito e da sua conclusão e arquivamento, quando isto lhe foi perguntado pelo DN em dezembro desse ano, na altura das primeiras notícias sobre este assunto.
No entanto, quando as notícias sobre o inquérito saíram no DN, o ministro foi chamado ao Parlamento para dar explicações sobre o processo, a pedido do PSD. Portanto, nessa altura, pelo menos, teve conhecimento da gravidade dos factos ali relatados.
Nessa audição, a 31 de janeiro de 2018, o governante nunca contrariou a decisão de arquivamento, nem afirmou desconhecer o relatório. Nem esclareceu se, depois de o conhecer - pelo menos pela comunicação social -, tinha ou não tomado alguma atitude no sentido do esclarecimento da situação.
Eduardo Cabrita foi nomeado a 18 de outubro de 2017, tomando posse a 21, e Carlos Moreira assinou o despacho de arquivamento a 24 de outubro. Passadas duas semanas, a 5 de dezembro, Eduardo Cabrita nomeou Luís Gouveia, diretor nacional adjunto visado no inquérito disciplinar, para a REPER, em Bruxelas.
A notícia do DN a relatar toda a situação foi publicada a 15 de dezembro do mesmo ano, depois de ouvido o gabinete do ministro. Confrontado com o arquivamento, em resposta ao DN na altura, o governante manifestou a sua "plena confiança na Direção Nacional do SEF (liderada por Carlos Moreira, que ocupou o cargo entre outubro de 2017 e dezembro de 2018) no exercício das suas competências próprias, designadamente em matéria disciplinar".
Quanto à nomeação de Luís Gouveia, o ministro afirmou que, quando o currículo lhe foi apresentado, "não havia registo de nenhum processo disciplinar" - o que, formalmente, faz sentido, porque o arquivamento tinha sido a 24 e o nome só lhe terá chegado à secretária depois dessa data. Se houvesse algum processo disciplinar sobre Luís Gouveia, este não poderia ter sido nomeado.
Na sua audição na Assembleia da República, a 31 de janeiro de 2017, Eduardo Cabrita voltou a reforçar a justificação enviada ao DN, desvalorizando todo o processo de inquérito do SEF, ao ponto de ter revelado que "não foram extraídas certidões" para investigação criminal das suspeitas detetadas.
Questionado esta semana sobre se face a novos desenvolvimentos não teria ignorado os alertas de corrupção que constavam deste relatório, o gabinete de Eduardo Cabrita voltou a não responder.
A questão levantada em relação ao SEF torna-se ainda mais importante porque se tratava de uma instituição que tinha tido um diretor nacional, Manuel Palos, preso por suspeitas de corrupção (embora, neste caso, tivesse sido depois absolvido de todas as acusações em tribunal).
O processo disciplinar de inquérito foi aberto a 27 de abril de 2016, por ordem da então diretora nacional Luísa Maia Gonçalves (que ocupou o cargo entre janeiro de 2016 e outubro de 2017), depois de terem chegado aos serviços várias denúncias sobre irregularidades no atendimento, incluindo subornos a funcionários, no posto de Alverca, onde estava colocada a inspetora suspeita.
Além desta inspetora, os instrutores do processo encontraram provas de irregularidades e ilegalidades na concessão de autorizações de residência, responsabilizando por tal comportamento outros dois inspetores, três funcionários administrativos, a subdiretora regional de Lisboa Paula Azevedo Cristina, e o diretor nacional adjunto Luís Gouveia, à data dos factos (entre 2014 e 2015).
Na tutela estava Constança Urbano de Sousa, cuja relação com a diretora do SEF e os dois subdiretores adjuntos (António Patrício e Joaquim Pedro Oliveira) foi crescendo em conflitualidade.
Durante um ano, o Gabinete de Inspeção ouviu os funcionários e dirigentes suspeitos, testemunhas, imigrantes, denunciantes, realizando um trabalho exaustivo de cruzamento de dados dos procedimentos para os vistos, fazendo todos os contraditórios com os acusados - 15 volumes de informação, o maior inquérito disciplinar alguma vez feito no SEF pelo Gabinete de Inspeção.
O relatório final, assinado por Luísa Maia Gonçalves a 7 de julho, concluía que tinham sido concedidos milhares de vistos à margem da lei, incluindo a dois estrangeiros procurados pelas autoridades nacionais e internacionais.
Uma funcionária administrativa, a quem eram imputadas suspeitas de corrupção, confirmou mesmo nos autos que tinha pedido 1300 euros "emprestados" a uma advogada para comprar um carro (dos quais garantiu que teria pago 600).
O gatilho para a inspeção interna foram orientações para facilitar a legalização de imigrantes, dadas pelo diretor nacional adjunto, Luís Gouveia. Os imigrantes ficaram isentos da prova de entrada legal que era exigida por lei e condição sine qua non para que se pudessem candidatar a um visto de residência ao abrigo do regime excecional para a regularização de cidadãos estrangeiros.
A lei determinava que cada requerente preenchesse uma manifestação de interesse (MI) disponibilizada no Portal do SEF. Além da prova de entrada legal, tinham de registar a morada, o número da Segurança Social, o número de contribuinte da entidade empregadora e local de trabalho (sede).
Na operação da PJ de há uma semana, um dos crimes detetados foi precisamente a falsificação destes dados, através da rede criminosa de advogados, que corrompia funcionários dos serviços do Estado para obter aqueles dados ilicitamente. Muitos imigrantes nem sequer vinham a Portugal.
Terão sido as orientações do dirigente do SEF a facilitar a situação ilegal. "Este conjunto de decisões e despachos do inspetor coordenador superior, Luís Paulo Gouveia, na qualidade de diretor nacional adjunto do SEF, resultou numa alteração ilícita de procedimentos, para a qual não dispunha de competência ou legitimidade legal, no que concerne à apreciação dos requisitos para efeitos de manifestação de interesse ao abrigo do regime excecional do n.º 2 do artigo 88.º da Lei de Estrangeiros, contra legem, tornando dispensável o requisito da entrada legal em território nacional", foi escrito no relatório.
Estes processos, com base no artigo 88 da lei de estrangeiros, em vigor nessa data, eram na sua maioria tratados em Alverca - embora o impacto se tenha dado um pouco por todo o país, segundo foi registado na inspeção interna.
Os instrutores do Gabinete de Inspeção constataram ainda que, em fevereiro de 2015, também por ordem de Luís Gouveia, o próprio sistema informático do SEF, através do qual os imigrantes se inscrevem, teria sido "manipulado" - para que não fosse necessário preencher o campo da prova de entrada legal.
Isto deu origem, por exemplo, a que 487 imigrantes de origem hindustânica tivessem sido registados como de nacionalidade brasileira. A Direção Regional Centro tomou nota do facto, segundo o relatório interno, e terá avisado o ex-diretor nacional adjunto, que não tomou nenhuma medida, como consta do inquérito.
Não há sobre Luís Gouveia, no topo da carreira do SEF, como inspetor coordenador superior, nenhuma imputação de corrupção - estas dizem respeito apenas à inspetora agora detida e a uma administrativa.
Nesta altura era diretor do SEF o juiz desembargador António Beça Pereira, que esteve no cargo entre dezembro de 2014 e janeiro de 2016. Era um outsider do sistema, que confiava no experiente quadro do serviço. No ministério estava Miguel Macedo e na secretaria de Estado com a tutela do SEF estava João Almeida, do CDS. O ex-secretário de Estado disse na altura ao DN não ter tido conhecimento das medidas do diretor adjunto do SEF.
Se o polémico despacho, apesar de contrariar a lei, veio ajudar imigrantes que, de facto, já se encontravam há algum tempo a trabalhar no nosso país e a fazer descontos, terá também provocado um "efeito chamada".
O "efeito chamada" começou a ser notado a partir de finais de 2014, com maior expressão em 2015, e comprovado no âmbito do inquérito interno. Os pedidos das nacionalidades hindustânicas cresceram 300% entre 2014 e 2015, sendo que nepaleses e indianos duplicaram. Os pedidos naquele posto passaram de 1898 em 2013, para 2628 em 2014 e depois 4071 em 2015.
Foi também uma oportunidade de negócio para as redes criminosas de auxílio à imigração ilegal e de tráfico de seres humanos, com o apoio de funcionários corruptos, como veio demonstrar a operação da PJ, e já tinha sido escrito no relatório interno do próprio SEF.
"Na prática, são corrompidos estes funcionários colocados em serviços estratégicos do Estado porque as suas intervenções nos respetivos sistemas informáticos permitem manipular e falsear informações sobre contratos de trabalho fictícios, para os títulos de autorizações de residência. E têm também, no caso da inspetora (...), o poder de acelerar de forma seletiva os processos de legalização de imigrantes que lhe são impostos pela rede criminosa", diz o relatório.
Quando Luísa Maia Gonçalves, em julho de 2017, leu o explosivo relatório final do seu Gabinete de Inspeção, não teve dúvidas em propor a instauração de processos disciplinares individuais a cada um dos visados - da base ao topo da hierarquia.
Propunha também que o documento fosse enviado à Direção Central de Investigação do SEF "para conhecimento e eventual cruzamento de dados, com informação existente na citada direção central, que se afigure de interesse para a análise de eventuais situações que logrem configurar a prática de atos de natureza criminal".
Nesta altura, o diretor nacional adjunto implicado Luís Gouveia já não estava no cargo - saiu em janeiro de 2016 -, encontrando-se em funções numa organização de migrações, em Viena. A subdiretora regional, Paula Azevedo Cristina, era nesse momento a diretora regional do SEF da Madeira.
Como medida preventiva, ainda antes da conclusão dos processos disciplinares individuais, a diretora nacional transferiu os funcionários visados do posto de Alverca para outros serviços não relacionados com os vistos e retirou dali o processamento daquele tipo de autorizações de residência. Antes disso, logo em março, tinha revogado o despacho do ex-diretor nacional adjunto que permitia que não se preenchesse a data de entrada em Portugal.
Mas a relação de Luísa Maia Gonçalves e dos seus dois adjuntos com Constança Urbano de Sousa estava em fase de rutura - em parte por causa das discordâncias em relação às medidas para facilitar a entrada de imigrantes, no âmbito da alteração à lei de estrangeiros, entretanto aprovadas pela maioria de esquerda do Parlamento, no verão de 2017. Alertavam para o "efeito chamada" que se veio a verificar.
A diretora nacional pediu a demissão a 4 de outubro de 2017, seguida de António Patrício e Joaquim Oliveira, sem conseguir assinar as propostas de sanções aos funcionários que foram finalizadas dois dias depois, acabando por ser o seu sucessor a ficar com o inquérito na mão.
Contactada pelo DN, Luísa Maia Gonçalves explica-se em resposta escrita: "Na sequência de suspeitas de irregularidades no SEF em Alverca, além de várias outras medidas, foi instaurado um processo disciplinar de inquérito e criada uma equipa especialmente qualificada no gabinete de inspeção para este efeito, com um trabalho exímio e monitorizado ao longo do seu decurso pela IGAI. Foram ainda desenvolvidos procedimentos internos e externos, em razão das situações detetadas. O projeto de relatório final propôs várias sanções disciplinares, entre outras conclusões. Por ter cessado funções, a meu pedido, a 4 de outubro de 2017, a decisão final não foi proferida sob a minha responsabilidade", afirma, remetendo para explicações sobre o arquivamento para as "entidades envolvidas" - ou seja, os seus sucessores.
O sucessor, Carlos Moreira, acabou por assinar o despacho de arquivamento a 24 de outubro de 2017. E não respondeu às perguntas do DN sobre os motivos da sua decisão.
Já o SEF, quando questionado sobre a detenção da inspetora na operação da PJ por alguns factos coincidentes com os do inquérito interno arquivado (como suspeitas de corrupção e autorizações de vistos à margem da lei), alega que se trata de "factualidade diversa".
O gabinete de imprensa sublinha que o processo disciplinar "foi alvo de proposta de arquivamento devidamente fundamentada, atentos aos factos apurados à época". Não explica quais foram os fundamentos.
A direção do SEF acrescenta que "a esta funcionária foi à data aplicada a medida de suspensão de funções, no âmbito de outro processo disciplinar que lhe foi instaurado, na sequência da nova factualidade apurada no decorrer das investigações". Acrescenta ainda o SEF que "a funcionária não tinha, à data da detenção, funções inspetivas, acesso a base de dados ou a quaisquer outras matérias da área documental".
O SEF suscita aqui alguma confusão. O processo disciplinar referido foi em maio de 2018, na sequência de a inspetora ter sido detida e apanhada em flagrante a receber um suborno de um advogado. As medidas de coação judiciais incluíam a suspensão de funções o que, obrigatoriamente, leva a que seja instaurado um processo disciplinar.
O SEF é atualmente dirigido por Cristina Gatões, que era a número dois de Carlos Moreira, nomeado ainda por Constança Urbano de Sousa.
Contactada pelo DN, a ex-ministra não tem memória deste caso. "Não me recordo desse processo", afirma.
"O Dr. Carlos Moreira entrou em funções em outubro de 2017, numa altura para mim crítica por causa da Proteção Civil. Estava completamente concentrada na preparação do Conselho de Ministros de 20 de outubro, convocado para implementar as recomendações da comissão técnica independente aos incêndios de Pedrógão. Aliás, o Dr. Carlos Moreira tomou posse alguns dias antes de se concretizar a minha demissão (18 de outubro). Como me parece óbvio, tendo em consideração as circunstâncias da época, não tive tempo útil para reuniões com o então DN do SEF, pelo que não me recordo desse processo, cuja existência soube pela comunicação social."
Alguma confusão também nesta resposta: Carlos Moreira, que tinha sido o representante de Portugal do SEF na REPER - onde conheceu Constança Urbano de Sousa -, tomou posse precisamente a 18 de outubro, no dia em que a ministra pediu a demissão. A cerimónia realizou-se à tarde e o despacho de exoneração de Constança Urbano de Sousa foi publicado nessa noite no Diário da República.
Quanto ao papel da IGAI, a juíza conselheira Margarida Blasco, inspetora-geral no período do inquérito interno do SEF que instaurou a auditoria e que, segundo Luísa Maia Gonçalves, terá "monitorizado" todo o processo, remete a resposta para a sucessora. "Desde maio (data da sua saída do cargo) que não acompanho os assuntos da IGAI. Por uma questão de ética não me quero envolver", sublinha a magistrada.
Além da nomeação de Luís Gouveia para a REPER, a subdiretora regional de Lisboa foi também nomeada para um cargo internacional, na Frontex (a agência europeia para a segurança das fronteiras). Os outros implicados no processo disciplinar de inquérito deixaram o serviço relacionado com os vistos, mas não foi possível saber exatamente onde se encontra atualmente cada um deles.
Além da inspetora detida, que estava suspensa de funções desde maio de 2018, a funcionária administrativa que confessou o suborno foi transferida logo em dezembro de 2017, através da mobilidade do Estado, para a Direção-Geral de Política de Justiça, segundo um despacho publicado em Diário da República consultado pelo DN.
Para Luís Gouveia, o ex-diretor nacional adjunto, que está ainda na REPER , em Bruxelas, o assunto "está encerrado". Assinala que o que lhe "foi imputado nada tinha que ver com corrupção, estando somente em causa uma interpretação da lei". Acrescenta que "o MP, na sequência das notícias saídas a público, pediu o processo e analisou-o, tendo concluído que essa decisão de arquivamento foi correta".
Contactada a Procuradoria-Geral da República (PGR) para esclarecer esta diligência, o gabinete de imprensa de Lucília Gago não respondeu ainda.
Contudo, as respostas da PGR na altura em que o DN publicou a notícia do arquivamento, face aos recentes acontecimentos, deixam algumas dúvidas sobre qual foi, de facto, a iniciativa do MP neste processo.
Em dezembro de 2017, questionada sobre se tinha sido aberto algum inquérito por suspeitas de subornos a funcionários do SEF em troca de vistos à margem da lei, tendo em conta os factos apurados no inquérito interno, já noticiado, a PGR informou que "os elementos recolhidos oportunamente foram objeto de análise, não tendo sido identificados factos suscetíveis de integrarem ilícitos criminais". Em relação às certidões, "não foi possível localizá-las". Nessa altura estava Joana Marques Vidal ao comando da PGR.
No entanto, passados sete meses do arquivamento do processo disciplinar foi detida Sónia Francisco, num inquérito conduzido pelo DIAP de Vila Franca de Xira e, na passada terça-feira, voltou a ser detida pela PJ numa megaoperação da PJ, titulada pelo DIAP de Lisboa.
Questionada na passada semana pelo DN sobre estas dúvidas, na sequência da operação da PJ, a PGR responde que, "no que respeita à designada Operação Rota do Cabo, o inquérito encontra-se em investigação e está em segredo de justiça". Remete ainda para o processo de Vila Franca de Xira.
O DN tentou saber junto à PJ se o material reunido no inquérito arquivado foi também consultado pelos inspetores na Operação Rota do Cabo. A resposta, que chegou na tarde desta quarta-feira, é diplomática, mas deixa claro que o relatório do SEF não foi solicitado nem chegou à Judiciária.
"Houve cautela prévia para não por em causa a investigação, mas depois de ter sido desencadeada a operação 'Rota do Cabo' a cooperação com o SEF tem sido total", sublinha fonte oficial da Direção Nacional da PJ.
Perante a insistência do DN sobre se tinham, entretanto, solicitado o relatório arquivado, esta fonte respondeu que "não houve troca de documentos".
Falta de comunicação e coordenação? Se o SEF tinha 15 volumes de um processo interno cheio de pistas criminais porque não foi usado? A sua existência era pública, nomeadamente desde dezembro de 2017, quando o DN o noticiou.
O processo disciplinar de inquérito do SEF revela alguns pontos em comum com as conclusões da investigação da PJ - as quais apontam para uma estrutura criminosa que legalizou milhares de imigrantes à margem da lei, através de empresas-fantasma, as quais faziam contratos de trabalho e obtinham, subornando funcionários do SEF, das Finanças e da Segurança Social, os números e registos nestas entidades.
Nesta análise, o Gabinete de Inspeção do SEF indicava três advogados suspeitos de estarem a corromper funcionários - um deles foi detido em maio, outra foi detida nesta terça-feira pela PJ.
A análise feita aos processos despachados pela inspetora detida produziu a prova de celeridade e facilitação para a rede criminosa: "No período entre 19 de junho de 2015 e 14 de abril de 2016, foi possível apurar que a inspetora (...) não assegurou o tratamento uniforme no que reporta a tempos de espera dos processos de instrução, desrespeitando a ordem de entrada e privilegiando uns em detrimento de outros. (...) Constata-se que, durante o referido período e sob a sua coordenação, não foi respeitada a ordem de entrada, na confirmação de requisitos de 484 processos, sendo que destes 261 tiveram um tratamento de antecipação face aos demais."
A inspeção constatou que, em alguns processos mais complexos que exigem o cumprimento de procedimentos de segurança, aquela responsável fechava os olhos. "Sem qualquer justificação, sob a coordenação da inspetora (...), foram analisados processos e remetidos para decisão da Direção Nacional, com um tempo de análise que não permite a verificação de documentos e respetivo cumprimento de requisitos legais, havendo situações de análises em 20 segundos."
Tanto neste processo interno - arquivado sem sanções, recorde-se - como na investigação da PJ foi detetado que a inspetora autorizou um visto de residência a um cidadão paquistanês proibido de entrar no espaço Schengen, uma medida emitida pela Noruega.
Validou ainda um visto para um cidadão indiano, alvo de duas medidas cautelares de localização de paradeiro, uma para expulsão e outra para localização.
Só entre janeiro e abril de 2016, sob a coordenação desta inspetora, foram atendidos no posto de Alverca 1600 imigrantes sem agendamento prévio e 183 sem registo. Entre janeiro e dezembro de 2015 foram atendidos 2924 imigrantes sem agendamento prévio - tudo isto a indiciar favorecimento, através dos advogados.
"Aceitou ainda o agendamento de dezenas de cidadãos hindustânicos, que se inscreveram como brasileiros para poder aceder ao sistema de marcações - sabendo que se tratava de uma fraude", assinala o relatório.
Sobre a ex-subdiretora de Lisboa, atualmente na Frontex, foi detetado que autorizou 245 inscrições para agendamento de imigrantes sem o comprovativo de entrada legal em território nacional. Os pedidos tinham sido feitos pela inspetora detida e por outro inspetor, também visado no processo disciplinar de inquérito.
Esta dirigente, segundo o relatório do Gabinete de Inspeção, "em meados de 2015 foi informada por funcionários do posto de atendimento de Alverca sobre benefícios que alguns advogados teriam naquele posto de atendimento", tendo um inspetor levantado "suspeitas sobre a inspetora Sónia Francisco (detida na operação da PJ nesta semana) relativamente ao aproveitamento dos agendamentos extra e dos atendimentos de advogados".
Em relação a estas denúncias, a ex-subdiretora "nada diligenciou para verificar a irregularidade e retificação das situações", violando o "dever de zelo" profissional.
Outro inspetor foi também visado por ter submetido mais de duas centenas de processos de cidadãos "que tinha conhecimento terem prestado falsas declarações" e que "não reuniam os requisitos" impostos pela lei.
Segundo o relatório final, em dois casos que tinham um parecer negativo do departamento de fiscalização do SEF, o inspetor "não procedeu às notificações de abandono voluntário e de não aceitação do pedido dos requerentes, tendo, ao invés, procedido à alteração do sentido desse parecer e emitido novo parecer no sentido da aceitação do processo para decisão final de concessão de autorização de residência".
Às funcionárias administrativas foram imputadas várias situações relacionadas com registos no sistema de processos que não cumpriam os requisitos legais e favorecimento na data de agendamento em muitos casos.
Ficou claro para o Gabinete de Inspeção que tinham violado vários deveres profissionais: de prossecução do interesse público, imparcialidade, zelo, obediência e lealdade.
As sanções propostas até podem parecer leves, mas no caso dos dirigentes (333 euros de multa, suspensas por um ano para Luís Gouveia e repreensão escrita para a subdiretora regional) implicava que não podiam ser nomeados para cargos internacionais, como veio a acontecer.
Em relação aos outros funcionários, para a inspetora detida foi proposto 60 dias de suspensão; para a administrativa suspeita de corrupção os instrutores do processo disciplinar sugeriam 555 euros de multa, suspensa por um ano; para uma das administrativas 444 euros de multa, suspensa por um ano; para os restantes repreensões escritas.
Estas são medidas disciplinares internas - que não foram aplicadas - porque, tendo em conta a gravidade da situação, o inquérito propunha que fossem extraídas certidões com vista a que se iniciasse uma investigação criminal.
Isso acabou por acontecer, mas por outra via. A PJ acabou por chegar à funcionária agora detida por outra investigação, exterior, que envolvia uma rede de auxílio à legalização fraudulenta de imigrantes. Uma coincidência, portanto.
Atualizado às 16h55 com a resposta da PJ
CRONOLOGIA
São difundidos no SEF orientações escritas do diretor nacional adjunto à época Luís Gouveia, que visam isentar os estrangeiros requerentes a um visto excecional da prova de entrada legal no espaço comunitário - obrigatório por lei.
Os pedidos das nacionalidades hindustânicas cresceram 300% entre 2014 e 2015 no posto de atendimento do SEF de Alverca, sendo que nepaleses e indianos duplicaram. Os pedidos naquele posto passaram de 1898 em 2013, para 2628 em 2014 e depois 4071 em 2015.
Era diretor do SEF o juiz desembargador António Beça Pereira, e diretores nacionais adjuntos Luís Gouveia e José Van der Kellen.
Janeiro - Luísa Maia Gonçalves, uma dirigente com 25 anos de carreira, toma posse como diretora nacional do SEF, numa cerimónia presidida pelo primeiro-ministro António Costa. Nomeia novos adjuntos: António Patrício e Joaquim Pedro Oliveira. Era ministra da Administração Interna Constança Urbano de Sousa.
Março de 2016 - Confrontada com o crescendo de pedidos de visto, que conclui serem à margem da lei, a nova diretora nacional revoga os despachos do anterior adjunto.
Abril de 2016 - É instaurado no SEF um processo disciplinar de inquérito, por ordem de Luísa Maia Gonçalves, depois de terem chegado aos serviços várias denúncias sobre irregularidades no atendimento, incluindo subornos a funcionários, no posto de Alverca.
O processo é monitorizado pela IGAI, dirigida por Margarida Blasco.
Julho - Concluído o relatório final do processo disciplinar de Inquérito.
Os instrutores do processo encontraram provas de irregularidades e ilegalidades na concessão de autorizações de residência, responsabilizando por tal comportamento outros três inspetores, três funcionários administrativos, a subdiretora regional de Lisboa, Paula Azevedo Cristina, e o diretor nacional adjunto, Luís Gouveia, à data dos factos (entre 2014 e 2015). A uma inspetora e a uma das funcionárias administrativas foram imputadas também suspeitas de corrupção. Esta inspetora é a mesma que esta semana foi detida pela PJ por suspeitas de corrupção no âmbito de uma rede de auxílio à imigração ilegal e que em maio de 2018 foi detida por alegadamente ter sido apanhada em flagrante a receber um suborno de um advogado.
A diretora do SEF, Luísa Maia Gonçalves, assina um despacho a 7 de julho a propor a abertura de processos disciplinares individuais a cada um dos funcionários, da base ao topo e que sejam extraídas certidões para enviar para a Direção Central de Investigação do SEF e consequente envio ao Ministério Público (MP) para abertura de inquérito-crime sobre as suspeitas de corrupção ou outros crimes, como abuso de poder.
4 de outubro - Luísa Maia Gonçalves pede a demissão, seguida dos seus dois adjuntos
6 de outubro - Ficam concluídos os processos disciplinares individuais, com propostas de sanções para sete dos funcionários, incluindo o ex-diretor nacional adjunto e a ex-subdiretora regional.
18 de outubro - Constança Urbano de Sousa pede a demissão de ministra da Administração Interna. É nomeado Eduardo Cabrita.
O novo diretor do SEF, Carlos Moreira, toma posse.
21 de outubro - Toma posse Eduardo Cabrita.
24 de outubro - Carlos Moreira manda arquivar todos os processos disciplinares e não pune nenhum dos funcionários visados.
5 de dezembro - Eduardo Cabrita nomeia Luís Gouveia, diretor nacional adjunto visado no inquérito disciplinar, para a REPER (Representação Permanente Portuguesa junto da União Europeia), em Bruxelas.
14 de dezembro - A Procuradoria-Geral da República diz, em resposta ao DN, que "não foi possível localizar as certidões" que deviam ter sido enviadas pelo SEF. Questionada sobre o resultado da auditoria do SEF, segundo a qual "estarão em causa suspeitas de recebimentos de quantias monetárias ilegais por parte de funcionários em troca de concessão de autorizações de residência, com base no artigo 88 da lei de estrangeiros, sem o requisito de entrada legal", a PGR acrescentou ainda que "os elementos recolhidos foram objeto de análise, não tendo sido identificados factos suscetíveis de integrarem ilícitos criminais".
15 de dezembro - O DN publica a notícia dizendo que a direção do SEF tinha mandado arquivar uma auditoria interna, com suspeitas de vistos ilegais e corrupção. E um dos implicados tinha sido nomeado pelo ministro para um cargo internacional.
Em resposta ao DN, Eduardo Cabrita manifestou a sua "plena confiança na direção nacional do SEF no exercício das suas competências próprias, designadamente em matéria disciplinar".
Quanto à nomeação de Gouveia, afirmou que quando o currículo lhe foi apresentado "não havia registo de nenhum processo disciplinar" - o que, formalmente, faz sentido, porque o arquivamento tinha sido a 24 e o nome só lhe terá chegado à secretária depois dessa data. Se houvesse algum processo disciplinar sobre Luís Gouveia, este não poderia ter sido nomeado.
31 de janeiro - Eduardo Cabrita é chamado pelo PSD ao Parlamento e na sua audição voltou a reforçar a justificação enviada ao DN, procurando ainda desvalorizar todo o processo de inquérito do SEF, ao ponto de ter revelado que "não foram extraídas certidões" para investigação criminal das suspeitas detetadas.
maio - A inspetora do SEF, que tinha sido visada no inquérito interno, é detida e suspensa de funções por ordem judicial, depois de ter sido apanhada em flagrante a receber um suborno de um advogado - num processo diferente do primeiro.
8 de outubro - A PJ desencadeia a Operação Rota do Cabo, desmantelando uma poderosa rede de auxílio à imigração ilegal, liderada por advogados. São detidos também funcionários do Estado que eram corrompidos pela organização criminosa para ajudar a legalização dos imigrantes à margem da lei. Entre eles está a inspetora do SEF que tinha sido sinalizada internamente.
A PJ iniciou esta investigação em 2015, mas não diz se usou como "fonte" o relatório interno do SEF com 15 volumes.