Uma das empresas fantasma criada pela rede de auxílio à imigração ilegal, cujos principais cabecilhas foram detidos pela PJ nesta terça-feira, é também alvo de uma investigação da Polícia Nacional de Espanha por tráfico de seres humanos..Segundo informou a Europol, essa empresa - utilizada pela rede em Portugal para criar contratos de trabalho (fictícios) aos imigrantes - está na mira das autoridades espanholas, no âmbito de um processo de exploração laboral de cidadãos indianos..Um dos imigrantes vítima da organização criminosa portuguesa tinha o nome desta empresa como entidade empregadora no seu processo da Segurança Social, que foi alvo da análise da PJ. A morada da empresa era o escritório de um dos advogados arguidos no processo e tinha o nome de outro dos suspeitos detidos esta terça-feira..A rede de tráfico em Espanha é suspeita de angariar pessoas na Índia para trabalhar naquele país, em regime de quase escravatura, principalmente na agricultura. Portugal foi utilizado como plataforma para a obtenção de vistos, através da organização criminosa desmantelada, para estes indianos entrarem legalmente em Espanha..Segundo o que foi apurado pela investigação espanhola, estas vítimas de tráfico humano foram todas aliciadas para trabalhar em Portugal, tendo pago aos intermediários/angariadores avultadas somas de dinheiro..Chegados ao nosso país, onde ansiavam por ter uma vida melhor, estes indianos assinavam, de facto, contratos com empresas, mas nunca eram chamados para trabalhar. Em vez disso, boa parte deles era enviada para Espanha onde eram explorados. Os outros ficavam entregues a si próprios e o sonho a transformar-se em pesadelo..Esta é uma das pontas da investigação, titulada pelo DIAP de Lisboa, que levou à detenção de dezenas de pessoas suspeitas de integrarem uma organização criminosa de auxílio à imigração ilegal, liderada por advogados e com cumplicidade de funcionários do SEF, da Segurança Social e das Finanças..Empresas-fantasma na hora.O esquema estava bem montado e foi sendo oleado, pelo menos, desde 2015 - data a partir da qual a PJ conseguiu começar a reunir os processos destes imigrantes legalizados à margem da lei..Para obterem o visto de residência, os imigrantes têm de apresentar um contrato de trabalho, descontos para a Segurança Social e número de contribuinte. O carimbo final é estampado pelo SEF..Por isso, a rede criminosa tratou de criar empresas-fantasma - trabalho facilitado pelo sistema Empresa na Hora - para produzir os contratos de trabalho..Ao que os investigadores confirmaram, através destas sociedades de fachada, foram celebrados centenas de contratos de trabalho em diversas áreas de atividade. Em alguns casos foram mesmo feitos descontos para a Segurança Social, a simular a prestação de trabalho, com o objetivo de reunirem os pressupostos para obterem os documentos necessários à legalização..Paralelamente, a rede criminosa corrompeu funcionários nas entidades do Estado responsáveis por estas validações. Na operação da PJ foram detidos funcionários da Segurança Social, da Autoridade Tributária e do SEF que, a troco de dinheiro, aceleravam e facilitavam os processos que lhe eram sinalizados pela organização..A empregada de limpeza e "a contabilista".Na Segurança Social de Lisboa, por exemplo, a rede criminosa tinha uma toupeira que levava e recolhia do gabinete do funcionário corrompido os processos dos imigrantes, que precisavam do número daquela entidade para se legalizarem.. A toupeira era uma empregada de limpeza paga pela rede para esse serviço. A sua ligação aos advogados suspeitos era feita através de uma mulher, conhecida por "a contabilista" e que era uma espécie de braço direito do cabecilha da organização..Esta "contabilista" - era assim apresentada pelos advogados - geria a chamada "carteira de imigrantes", uma espécie de dossiê em que reunia os contratos de trabalho fictícios, as declarações de IRS e os recibos de vencimento..De acordo com o que foi apurado pela investigação, o vaivém de processos era quase diário, com a toupeira a deixar e a recolher os processos diretamente da secretária do funcionário. Por cada imigrante registado recebia 200 euros e foram, no mínimo, centenas - a PJ não tem ainda o número certo de pessoas legalizadas através desta rede, mas está convicta de que pode atingir milhares..Quando queria saber pelo estado dos processos, o advogado perguntava pelas "chamuças" - nome de código utilizado para disfarçar em conversas telefónicas..Três advogados no comando da rede.Na Operação Rota do Cabo, desencadeada nesta terça-feira, foram detidas dezenas de pessoas (a PJ não divulgou o número exato), entre as quais três advogados - além dos funcionários públicos já referidos e de diversos operacionais que funcionavam como angariadores..A investigação aponta Sabirali Ali como o principal cabecilha da organização, que tinha tentado, sem sucesso, manter-se na retaguarda, depois de ter sido condenado a cinco anos de prisão (com pena suspensa) num processo em 2013 por crimes idênticos aos deste inquérito. Acabou por ser apanhado em inúmeras escutas incriminatórias..No escritório de Ali trabalhavam a sua mulher, os seus dois irmãos, a sua irmã e "a contabilista". Cada um desempenhava um papel específico. Um dos irmãos, por exemplo, era um ativo angariador de imigrantes ilegais que viviam clandestinamente na Alemanha e na Suíça..A dedicação era tal que a própria "contabilista" disponibilizou-se para ser noiva de um "casamento branco" - outra das atividades da organização - preparado para legalizar um indiano, também colaborador da rede. Deu ainda o seu nome para uma das empresa de limpeza, que servia de fachada aos contratos fraudulentos..Outra ramificação desta rede era o escritório de uma advogada, Ana Bernardi, ex-mulher de Sabirali e o seu antigo braço direito na atividade criminosa. Depois da condenação de Sabirali separou-se e continuou a tratar destes processos à margem da lei, desta vez tendo como braço direito o seu novo marido..O terceiro escritório estava em nome de João Vaz e tinha uma rede de dezenas de colaboradores de várias nacionalidades, entre os quais brasileiros, indianos, paquistaneses e africanos, que angariavam imigrantes ilegais nas respetivas comunidades - boa parte deles mesmo nos países de origem ou noutros países europeus onde se encontravam clandestinamente..As empresas-fantasma tinham, a maior parte das vezes unipessoais, o nome destes suspeitos ou dos seus colaboradores, tendo sido identificados vários processos que passavam pelos três escritórios que funcionavam em rede..Um portfólio variado.As atividades promovidas pelos advogados junto às comunidades de potenciais clientes eram variadas. Uma delas era a instrução dos processos junto ao SEF - cujo principal objetivo era saltar os meses de espera que resultam da falta dramática de recursos humanos - para a obtenção dos vistos de residência ou de nacionalidade para imigrantes que nem sequer moram nem trabalham em Portugal..Aqui contavam com uma inspetora da delegação de Alverca que, quando decorria a investigação da PJ, foi apanhada em flagrante a receber dinheiro de outro advogado e constituída arguida pelo Ministério Público. Esta inspetora é suspeita também de ter autorizado um visto para um paquistanês proibido de entrar no espaço europeu..No seu portfólio destacava-se também a obtenção dos números de Segurança Social e de contribuinte, para a qual tinham corrompido funcionários destas entidades, que, não só aceleravam os processos, como ignoravam regras de controlo..O grupo tratava ainda de processos de reagrupamento familiar, também com a ajuda da inspetora do SEF, e organizava os casamentos brancos, recrutando noivas com nacionalidade portuguesa para casar com os imigrantes..Os preços pagos pelos imigrantes eram diversos, desde os dois mil euros para a residência, ao que se juntavam os descontos fictícios para a segurança social, de cerca de 200 euros por mês. Mas o valor mais elevado registado foi 15 mil euros por destes 'casamentos brancos'..A ponta do icebergue.Segundo a PJ, os detidos, com idades compreendidas entre os 28 e os 64 anos, "são suspeitos da prática dos crimes de associação criminosa, auxílio à imigração ilegal, de casamento por conveniência, de falsificação de documentos, de abuso de poder, de corrupção ativa e passiva, de branqueamento, de falsidade informática e acesso indevido, atividade criminosa que permitiu obter elevados proventos financeiros"..Mas para os investigadores, este processo é apenas a ponta do icebergue de uma realidade que consideram estar sem controlo..Pelo que foi possível apurar neste inquérito, a fiscalização do Estado é deficiente nesta matéria e não é feito cruzamento de dados entre as várias entidades que intervêm nos processos de legalização. Ou, quando há medidas de prevenção definidas, são meramente formais, sem efeito prático..Por outro lado, a permeabilidade do Estado a estas redes deixou os investigadores chocados. Conforme é sabido, uma inspetora do SEF foi apanhada no esquema, bem como duas funcionárias, uma delas chefe, da Autoridade Tributária..No caso do SEF, esta inspetora estava referenciada internamente desde 2016, mas só em 2018, no âmbito de outro processo-crime de que foi alvo, pelo mesmo tipo de crimes, foi suspensa de funções..De resto, a localização geográfica coloca Portugal num grau de risco elevado de ser procurado por quem se dedica a este tipo de esquemas ligados os fluxos imigratórios irregulares, assim como aos crimes associados, entre os quais o tráfico de pessoas e terrorismo.."Estas organizações passam a palavra que em Portugal é fácil a legalização de imigrantes, provocando uma volumosa procura que é depois respondida através dos esquemas criminosos", diz ao DN fonte que acompanhou este processo.