Cem dias de pandemia. Meio milhão de mortos e um mundo novo
Consternado, ligou o microfone e aclarou a voz: "Decidimos que daqui em diante a covid-19 pode ser caracterizada como uma pandemia." Seguiram-se os conselhos. Tedros Adhanom Ghebreyesus, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), lembrou que a palavra não deveria ser utilizada "de forma leve" e que a "situação não altera a avaliação da OMS sobre a ameaça representada pelo novo coronavírus". Aconteceu a 11 de março. Cem dias depois, os receios confirmaram-se: a covid-19 matou quase meio milhão de cidadãos em todo o mundo e infetou mais de 8,6 milhões (4,5 recuperaram), alterando as vidas de todos.
Em Portugal, registam-se 38 464 casos (375 nas últimas 24 horas) e 1527 mortes (mais três). Cada doente continua a contagiar, em média, outra pessoa, o que levou a ministra da Saúde, Marta Temido, a admitir, esta sexta-feira, dificuldades no controlo das cadeias de transmissão.
Desde o dia em que o novo coronavírus foi descoberto - no final do ano passado num mercado de venda de animais vivos na cidade chinesa de Wuhan - até ao anúncio da OMS passaram-se cerca de três meses, repletos de incertezas. Mas as novidades não escassearam entretanto. Se os cientistas conseguiram que o vírus lhes desse (algumas) respostas e os médicos foram aprendendo a lidar com os doentes com covid, a simples rotina de sair à rua é para muitos motivo de ansiedade. Lá fora, o mundo não está igual. A máscara faz parte da indumentária (depois de ter sido desaconselhada) e os abraços e os beijos estão adiados.
Começa agora uma nova etapa, uma prova de resistência, com os atletas já cansados, que está a preocupar a OMS, uma vez que a saturação dos tempos de confinamento começa a sentir-se, sem que o vírus tenha desaparecido. "É uma fase nova e perigosa", alerta a organização.
Segundo a autoridade de saúde mundial, em dezembro de 2019, a China comunicou ter em mãos um conjunto de casos de uma pneumonia viral desconhecida, embora haja rumores de que antes já se soubesse da doença na província de Hubei.
A investigação oficial ao vírus SARS-CoV-2 começou em janeiro e foi relacionada com coronavírus detetados em morcegos e pangolins. Ao nono dia de 2020 foi declarada a primeira morte oficial na China, em Wuhan. Quase um mês depois, a 2 de fevereiro, morreu um infetado fora do China, um homem das Filipinas. E a 9 de fevereiro é declarado o primeiro óbito europeu, em França.
No entanto, no penúltimo dia de janeiro, a OMS já tinha deixado o primeiro alerta formal, declarando o surto como uma emergência de saúde pública de interesse internacional. Havia quase oito mil casos confirmados, espalhados por 19 países, e começava a surgir a hipótese pandémica. A OMS escolheu não tomar a atitude mais drástica de imediato, mas esta viria a ser inevitável.
À Europa, a covid chega por via da Itália, relato que correu depressa por todos os países. Hospitais sem espaço para mais doentes, profissionais de saúde sem mãos a medir, enquanto os governantes lutavam com a incerteza das medidas a tomar. Depois, a Espanha. E o cenário fotografado em Itália a repetir-se.
Portugal teve mais tempo para se preparar. Os primeiros dois casos de infeção pelo novo coronavírus foram descobertos a dois de março e a primeira vítima mortal confirmou-se três dias depois, mas o crescimento da situação epidemiológica foi mais lento e o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi capaz de responder à pressão dos doentes covid. Em parte, por causa das medidas de contenção implementadas precocemente.
O estado de emergência nacional foi decretado pela, primeira vez, a 19 de março, como conclusão de uma série de medidas de contenção já em vigor. Quando o país parou já havia escolas fechadas, pessoas em teletrabalho e atividades de grupo canceladas. "Movia-nos o medo do que se via noutros países", dizia, ao DN, em abril, Carla Nunes, investigadora e diretora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Universidade Nova de Lisboa, que se encontra a estudar a evolução da pandemia no nosso país e no mundo.
Durante dois meses, as ruas estiveram desertas e as fronteiras foram fechadas. Grande parte das empresas nacionais param a sua atividade e para os estudantes regressou a velhinha telescola - um modelo de aulas pela televisão agora transmitido na RTP Memória. Com o ano letivo a terminar dia 26 de junho, só os alunos dos 11.º e 12.º anos regressaram às aulas presenciais. Os restantes fizeram da tecnologia e da televisão meios para encurtar a distância dos professores.
A avaliação feita ao confinamento português pelas autoridades de saúde é muito positiva. O que não se poderá dizer de todas as nações. Métodos de confinamento usados no resto do mundo encontram muitos obstáculos em países onde as pessoas dependem mais do rendimento do dia-a-dia para alimentar as suas famílias. E a OMS não escondeu a preocupação com o continente africano à medida que a pandemia se espalhava. Com sistemas de saúde frágeis ou invisíveis, os países africanos foram identificados como zonas de fácil propagação da doença e de difícil cura.
No final de abril, cerca de 300 milhões de europeus, 200 milhões de latino-americanos, 300 milhões de norte-americanos, 100 milhões de filipinos e 1,3 mil milhões de indianos estavam trancados em casa.
Para o dia-a-dia, as autoridades de saúde criaram sugestões para lidar com as atividades mais banais como ir ao supermercado, andar de comboio ou tirar anéis. Recordando sempre as indicações mais básicas: lavar as mãos, respeitar as medidas de distanciamento social, etiqueta respiratória, de higiene pessoal e de superfícies. A estas foi acrescentada mais uma: a utilização de máscara em espaços fechados e quando não é possível garantir o afastamento de no mínimo dois metros em relação a outra pessoa.
A medida não ficou isenta de polémica, uma vez que no início da pandemia o conselho da OMS foi precisamente para não se usar máscara. Já em junho, a autoridade de saúde mundial atualizou a informação sobre as máscaras, apelando ao uso generalizado, depois da "revisão das provas" científicas e da "consulta de especialistas".
Agora, a OMS aconselha o uso de máscaras de tecido quando há "transmissão disseminada" da infeção e quando é difícil manter o distanciamento físico, como em "ambientes fechados", apresentando como exemplo, os transportes públicos, lojas, escolas, igrejas, mesquitas, locais de trabalho, campos de refugiados ou bairros de lata.
"O mundo recebeu muitas informações falsas sobre a transmissão e a mortalidade" da covid-19, considerou, em abril, o presidente dos Estados Unidos da América, que desde cedo se posicionou contra a forma como a OMS estava a lidar com a pandemia. Donald Trump acusou ainda a organização de favorecer e encobrir a China, onde o novo coronavírus surgiu.
As ameaças foram concretizadas, em maio, quando o chefe de Estado norte-americano anunciou que o país (o maior contribuinte para a OMS, dando anualmente 400 a 500 milhões de dólares entre contribuições obrigatórias e voluntárias) ia cortar com o finamento à organização. Atualmente, os Estados Unidos são o país com mais casos (2,2 milhões) e mortos (120 mil) registados por causa do novo coronavírus.
Quando, em maio, a pandemia começou a incidir mais na América Latina, nomeadamente no Brasil (o segundo país com mais infetados - 950 mil - e óbitos - 46 mil), Portugal estabilizava os seus indicadores epidemiológicos. O que motivou o Governo a dar passos num plano de desconfinamento, com três fases.
Primeiro reabriram o comércio de rua, os cabeleireiros e as livrarias e passou-se a poder praticar desporto individualmente. Depois, foi a vez das lojas até 400 m2, dos restaurantes, cafés, esplanadas, do regresso à escola dos dois últimos anos do ensino secundário, das creches, dos museus. Seguiu-se a possibilidade de assistir à missa na igreja e, no primeiro dia deste mês, a normalidade ganhou outro significado.
Grande parte dos portugueses deixou o teletrabalho, reabriram as lojas do cidadão ou os centros comerciais e passaram a poder juntar-se vinte pessoas. A região de Lisboa e Vale do Tejo desconfinou mais lentamente, por causa da sua situação epidemiológica. A zona continua a registar todos os dias entre 200 e 300 novos casos de covid-19, que as autoridades garantem dever-se sobretudo ao aumento dos testes de despiste realizados.
Mais dia, menos dia, tal como Portugal, os outros países também iniciaram, em maio, o processo de regresso "à normalidade". E esta semana, foi a vez de um passo conjunto: grande parte da Europa reabriu as suas fronteiras. Embora vários países tenham já decretado restrições a viagens feitas a partir de Portugal, por consideraram que o país não controlou a pandemia. O primeiro-ministro criticou a atitude, nesta sexta-feira, depois de uma reunião do Conselho Europeu, lembrando que o país foi o escolhido para receber a Champions League.
Até ao momento, não existe um medicamento cientificamente comprovado para tratar a covid-19, mas há vários fármacos candidatos e a ser sujeitos a ensaios clínicos por todo o mundo. No entanto, apostas feitas no passado deixaram muitos investigadores de pé atrás, depois de esperanças furadas com a hidroxicloroquina (medicamento usado no tratamento da malária) ou com o remdesivir (medicamento experimental utilizado para o vírus ébola).
No caso da hidroxicloroquina - entretanto suspensa no tratamento de doentes covid - foi estabelecida uma relação entre a sua toma e o aumento da taxa de mortalidade, num estudo da revista cientifica The Lancet. Esta investigação recebeu muitas criticas, mas as autoridades de saúde optaram pela precaução e cancelaram esta opção de tratamento. O fármaco ganhou mais protagonismo depois do presidente dos Estados Unidos da América ter encomendado milhões de embalagens para combater a pandemia e ter admitido estar ele próprio a tomar hidroxicloroquina.
A primeira boa notícia com resultados comprovados no que diz respeito ao tratamento de alguns doentes graves chegou do Reino Unido, esta semana. Um grupo de investigadores da Universidade de Oxford acredita que a dexametasona é o primeiro fármaco com resultados positivos no tratamento de doentes críticos com covid-19 e o Ministério da Saúde britânico quer disseminar a sua utilização. Os responsáveis pelo estudo, que abrangeu duas mil pessoas, falam numa redução da mortalidade em um terço nos cuidados intensivos e a OMS apelidou a descoberta de "avanço cientifico".
Do mesmo país, chega ainda a grande aposta numa vacina projetada e desenvolvida também pela Universidade de Oxford contra a covid-19, que se encontra a ser produzida pelo Instituto britânico Jenner e que poderá ser distribuída já em dezembro, se comprovada a sua eficácia.
A história ainda não está terminada, nem é possível saber quando estará. A covid-19 continua ativa e a possibilidade de uma segunda vaga da doença - tal como está a acontecer na capital chinesa onde, na última semana, o vírus ressurgiu, infetando mais de vinte pessoas - mantém-se.
Fácil de antecipar é a importância que os profissionais de saúde ganharam na luta contra o novo coronavírus. E, por isso, para comemorar os cem dias desde que a OMS declarou que a covid-19 era uma pandemia, nesta sexta-feira, foi inaugurado um mural de homenagem a todos os médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e técnicos de diagnóstico e terapêutica na Rua Abílio Mendes, em Lisboa. Também no Porto, no Centro Hospitalar Universitário de São João, o agradecimento já figura nas paredes.