Uma viagem ao simbolismo do Natal ucraniano, com todos os antepassados presentes e muita música

O DN conversou com uma família ucraniana radicada em Portugal há mais de 30 anos, que preserva as tradições ancestrais da Ucrânia, algumas das quais esquecidas no período soviético.

Na sala onde a ceia de Natal decorre, em Portugal, há símbolos que transportam séculos de história. Entre pratos cuidadosamente dispostos e cânticos que ecoam de um passado distante, a família Stetsenko vive o Natal como um espaço de memória, identidade e resistência cultural. Halyna Stetsenko e o filho, Denys, estão em Portugal há quase 31 anos, mas continuam a celebrar esta data do calendário cristão segundo rituais herdados da Ucrânia, transmitidos entre gerações e preservados apesar da distância, da migração que descrevem como tendo sido necessária na década de 1990, em clima de crise económica, e da guerra que hoje marca o quotidiano do seu país de origem.

Um dos elementos centrais da ceia é o Didukh, um feixe de trigo colocado à mesa na véspera de Natal. Mais do que um adorno, trata-se de um símbolo ancestral. “Traduzido para português, significa avó”, explica Halyna Stetsenko. O Didukh representa a presença dos antepassados no momento da ceia e convoca ao momento as gerações passadas e a continuidade da família. Na verdade, é uma forma de manter presente “tudo o que é passado, tudo o que tivemos nas gerações passadas”, reforça Halyna, sublinhando, com emoção, que todos estão “presentes na mesa, todos os nossos parentes”. O trigo alude também à última colheita do ano agrícola e simboliza a esperança de que haverá prosperidade no ano seguinte, num exercício muito semelhante ao do pinheiro de Natal. “São símbolos, e isso é muito importante”, acrescenta, numa afirmação que resume a lógica do Natal ucraniano, onde nada é só decorativo e tudo tem significado.

A ceia de Natal acontece no dia 24 de dezembro e inclui, tradicionalmente, 12 pratos. "Não pode ter carne, mas pode ter peixe", alerta Denys Stetsenko, enquanto descreve o prato principal daquela refeição tão especial, chamado kutiá, "que vem ainda do paganismo" e que é composto por "trigo cozido com passas, mel, nozes e sementes de papoila moídas". Em algumas regiões da Ucrânia, a primeira colher de kutiá é atirada ao teto e, se ficar colada, é sinal de um ano próspero, relata Denys, mostrando como cada traço sagrado está ligado ao quotidiano.

Denys e Halyna Stetsenko, filho e mãe, seguram o Didukh, um feixe de trigo representa prosperidade no Natal ucraniano.
Denys e Halyna Stetsenko, filho e mãe, seguram o Didukh, um feixe de trigo representa prosperidade no Natal ucraniano.Foto: Gerardo Santos

Antes de se sentarem à mesa, há ainda rituais que remetem para uma relação profunda com a terra. Antigamente, de acordo com a descrição minuciosa que Halyna faz, o dono da casa oferecia a primeira colherada da refeição aos animais, reconhecendo o seu papel essencial na subsistência da família.

Depois, a música, à semelhança do que acontece em tantas outras culturas, é muito marcante no Natal ucraniano. Os koliadky, cânticos tradicionais, são entoados por grupos que percorrem as casas com uma estrela de oito pontas, símbolo que remeta para a estrela que guiou os "pastores até ao nascimento de Jesus", explica Denys. É assim que os kolyadnyky, as pessoas que percorrem as casas a anunciar o Natal, surgem às portas não apenas como visitantes humanos, mas também na qualidade de espíritos que trazem votos de prosperidade para o novo ano. As portas abrem-se, a hospitalidade revela a generosidade das famílias e os donos da casa oferecem comida ou dinheiro como sinal de abundância.

No meio de toda esta avassaladora tradição, nem sequer o mal fica de fora. "Há também as regiões onde abrem as portas e dizem aos espíritos maus: todos são bem-vindos para partilhar connosco a ceia, e, se não quiserem, por favor desapareçam e não voltem mais", explica Denys.

A ceia só começa quando a primeira estrela aparece no céu. Até esse momento, o cumprimento tradicional é “Jesus está a nascer”. Depois, transforma-se em “Cristo nasceu”, uma mensagem à qual se responde com “Glória a Ele”. Este diálogo ritualizado marca o tempo sagrado do Natal e reforça o seu carácter profundamente religioso.

A música, à semelhança do que acontece em tantas outras culturas, é muito marcante no Natal ucraniano.
A música, à semelhança do que acontece em tantas outras culturas, é muito marcante no Natal ucraniano.Gerardo Santos

Manter estas tradições não foi sempre simples. Durante o período soviético, as práticas culturais ucranianas foram perseguidas e associadas ao nacionalismo, considerado criminoso, lembra Halyna. Denys recorda que, nessa altura, "o Império Russo" queria era "continuar a russificar e a aniquilar todas as outras tradições, com exceção da tradição russa. E havia na altura uma premissa para mostrar diferenças entre cada nacionalidade." As verdadeiras tradições sobreviveram sobretudo no espaço privado, transmitidas em segredo. Só nas últimas décadas, após a independência da Ucrânia, se iniciou um esforço sistemático de recuperação das práticas originais, através de investigação histórica e do testemunho oral.

Antes disto, descreve Denys, as práticas tradicionais mostradas resumiam-se a "cossacos com aquelas calças azuis ou vermelhas, largas. Era o padrão do folclore. Na verdade, foi tudo mentira", afirma.

Halyna e Denys chegaram a Portugal em meados dos anos 1990, empurrados por uma crise económica. Halyna veio para a Madeira, onde ainda mora e onde começou a trabalhar como organista e professora de música no Conservatório – Escola das Artes da Madeira. Denys, na altura, também foi para a Madeira, mas depois seguiu para Lisboa, onde estudou violino na Orquestra Metropolitana e na Escola Superior de Música. A separação geográfica marcou profundamente os primeiros Natais em Portugal, agravada pelo desfasamento entre o calendário gregoriano e o calendário juliano, então seguido pela Igreja Ortodoxa Ucraniana. Celebravam o Natal português a 25 de dezembro, mas o Natal ucraniano caía a 7 de janeiro, dia de trabalho, impossibilitando o reencontro familiar.

Agora, o calendário religioso ucraniano já está sicronizado com o do mundo ocidental, pelo que o Natal não se apresenta como uma barreira.

Apesar das dificuldades, a família encontrou pontos de contacto com a tradição portuguesa. Halyna recorda com emoção a experiência de cantar as janeiras na Madeira, reconhecendo semelhanças na lógica da visita às casas, da música e da partilha. Também já celebrou o Natal com famílias portuguesas, onde encontrou um ambiente íntimo e reflexivo, centrado na união familiar e na partilha de experiências do ano que termina. “Nada para gritar na rua, é mesmo muito familiar”, descreve.

A guerra desencadeada em fevereiro de 2022 não alterou o significado do Natal, tanto na Ucrânia como na diáspora, mas trouxe dor às famílias. Milhares de ucranianos chegaram a Portugal, reforçando a comunidade e criando novos espaços de encontro. Denys descreve a organização de celebrações comunitárias com música e tradições ucranianas como uma forma de acolhimento para quem foi forçado a deixar o país.

Denys e Halyna Stetsenko, filho e mãe, seguram o Didukh, um feixe de trigo representa prosperidade no Natal ucraniano.
Natal angolano em Portugal é “a festa da família”, onde nada importa mais do que as pessoas e o “cabrito”

Foi precisamente em 2022 que chegaram a Portugal jovens ucranianos, que se afastaram da guerra, com os quais Denys, violinista de profissão, criou um grupo de folclore chamado Litá.

"Aproveitámos logo no primeiro ano para fazer um Natal ucrâniano, recriamos as tradições e tudo. Tentámos aconchegar também e chamar mais gente para que sintam bem e em casa, porque é muito duro para nós e para eles que tiveram de sair e deslocar-se. É importante e havia muita gente sentida. De repente, fizemos um concerto num restaurante, num café, e as pessoas apareceram e estava cheio de música ucraniana. Questionaram o que se passava", relata o também professor de violino, acrescentando que as pessoas "entraram e até choraram".

Na Ucrânia, o Natal continua a ser celebrado, mas num registo marcado pela dor e pela ausência. Muitos passam a data nas "trincheiras", segundo Denys, ou longe das famílias. Ainda assim, os “momentos sagrados” mantêm-se, como afirma Halyna, porque a tradição, mais do que uma festa, é uma âncora identitária.

Para a família Stetsenko, o Natal vivido em Portugal é um espaço de cruzamento entre culturas, tempos e geografias. À mesa, convivem a kutiá, a estrela dos kolyadnyky e a experiência de quase três décadas de vida num outro país. Num mundo atravessado por guerras e deslocações, este Natal apresenta-se também como uma afirmação de que a memória continua viva.

Nesta série de reportagens, o DN conversa com representantes das principais comunidades estrangeiras que formam o nosso país. Pessoas que abraçam Portugal e celebram o Natal com uma mistura de culturas e gratidão pelo que constroem aqui.
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