Natal angolano em Portugal é “a festa da família”, onde nada importa mais do que as pessoas e o “cabrito”

O DN conversou com o professor do ensino básico Mário Carneiro, que nasceu em Angola e, 48 anos depois de ter vindo para Portugal, preserva com a família tradições natalícias dos dois países.

No restaurante Batata Doce, em Lisboa, o Natal começa antes do advento. Começa na memória, no paladar e na forma como a mesa se transforma num lugar simbólico onde família e amigos se reúnem. “O máximo de gente possível”, confessa Mário Carneiro, que, entre pratos de moamba e conversas que se estendem pela noite dentro, reconstrói, ano após ano, momentos que são tão angolanos como portugueses. No Natal, este exercício nostálgico não é exceção.

Mário Carneiro nasceu em Luanda, no Bairro Operário, e vive em Portugal há 48 anos. Veio para Portugal com quatro anos. Professor do primeiro ciclo do ensino básico, professor de língua gestual numa universidade e formador na certificação de língua portuguesa para estrangeiros, pertence a uma geração que chegou ao país logo depois do 25 de Abril, mas sem uma rutura definitiva com as raízes. A família dividiu-se, espalhou-se pelo Porto e pelo Vale da Amoreira, na margem sul do Tejo. Uma irmã ficou em Luanda. A mãe – hoje com 93 anos – continua a fazer o trânsito entre os dois países. “Nunca houve um corte”, diz. “Houve sempre continuidade”, até quando o pai morreu.

Esse regresso constante a África é visível no Natal. Em Angola, explica Mário, o dia 24 é mais importante do que o 25. É a consoada, o verdadeiro “dia da família”, aquele em que ninguém pode faltar, mas também não há nenhuma interrupção entre os dois dias. A reunião começa ao jantar e prolonga-se até de manhã. Não há a pressa de abrir prendas à meia-noite nem o recolhimento silencioso depois da ceia. Há conversa alta, música – semba e kizomba, sublinha –, “fofoca familiar” e comida em abundância. De manhã, serve-se o “aquecido”, o pequeno-almoço feito com os restos da noite, que é uma espécie de roupa velha angolana, mas sem o intervalo do sono. É uma das diferenças entre o Natal português e o angolano.

As prendas abrem-se no dia 25. Não é o Pai Natal que as traz, apesar de a figura existir como símbolo. As prendas são entregues em nome da família – “do pai, do tio, da tia” – e a mais importante é quase sempre a roupa nova e os sapatos. “Havia o sapato domingueiro”, recorda Mário. O pinheiro também faz parte da tradição, muitas vezes colocado no quintal ou até na rua, decorado de forma comunitária. E às vezes nem é um pinheiro, “é o cipreste” que está ali próximo.

Mário Carneiro é professor, nasceu em Luanda, no Bairro Operário, e vive em Portugal há 48 anos.
Mário Carneiro é professor, nasceu em Luanda, no Bairro Operário, e vive em Portugal há 48 anos.Leonardo Negrão

Em Portugal, este Natal foi-se adaptando, mas nunca se dissolveu. Casado com uma portuguesa, Mário assume que na consoada não prescinde de comer o cabrito – seja em funge, em caldeirada ou assado –, vá para onde for, seja para casa dos sogros ou para outro lugar qualquer. Mais importante do que este prato, que classifica como indispénsável, é a família. Já o bacalhau pode aparecer, mas não é central. Para além disto, garante: “Gosto muito de Portugal, mas não troco um cozido à portuguesa por uma moamba.”

Dias antes desta conversa, Susana Ribeiro, a mulher de Mário, portuguesa, lembrou como, depois de casar com o angolano de origem, a sua vida nunca mais foi a mesma em termos gastronómicos. A consoada da família é, por isso, um território híbrido.

Ao lado do arroz doce e das rabanadas em calda, que são também heranças da tradição portuguesa levada para Angola, surgem os doces angolanos. Mário fala em paracuca e kifufutila, doces feitos de amendoim – que em Angola se chama ginguba) – e a quitaba, uma pasta de amendoim com gindungo, picante e intensa. O gindungo, aliás, nunca falta. Nem sempre é cozinhado, está sempre à mesa para ser acrescentado à comida, respeitando uma lógica de uso natural e pouco processado.

Mais do que os pratos, porém, é a estrutura familiar que define o Natal. Em Angola, a idade é sinónimo de sabedoria. A mãe de Mário é a “Menha Cota”, a mais velha da família, aquela a quem todos pedem conselhos antes de tomar decisões importantes. À sua volta organiza-se uma hierarquia afetiva, com os “cotas”, ou seja, os tios, os primos que, num processo de decisão que vai para além da ligação familiar, passam a irmãos da mãe. O respeito manifesta-se em gestos simples, como o beijo na testa e a presença. Este ano será o primeiro Natal passado sem ela em Portugal, já que regressou a Angola. A ausência pesa, mas não rompe o ritual.

Mário Carneiro dá um abraço a Isabel Jacinto, proprietária do restaurante Batata Doce, em Lisboa, onde o português nascido em Angola costuma passar serões.
Mário Carneiro dá um abraço a Isabel Jacinto, proprietária do restaurante Batata Doce, em Lisboa, onde o português nascido em Angola costuma passar serões.Leonardo Negrão

Crescido entre Luanda e as raízes rurais da sanzala (povoação tradicional africana, cujo termo não deve ser confundido, neste contexto, com alojamentos que eram destinados a escravos), Mário conhece bem a diferença entre o urbano e o musseque, entre a cidade e a vida de subsistência. Conhece também as bebidas feitas em casa – a kissângua, feita a partir de milho, e o vinho de palma – e a economia circular das aldeias, onde todos contribuem para a mesa comum. Essa memória acompanha-o desde os primeiros anos em Portugal, passados em bairros sociais como o Vale da Amoreira, onde muitas famílias vindas de Angola recriaram, em condições precárias, a mesma vivência comunitária. “Viver o Natal ali era como estar em Angola”, recorda.

O restaurante Batata Doce surge, assim, como uma extensão dessa casa alargada. Propriedade de Isabel Jacinto, angolana, o espaço é para Mário mais do que um restaurante, apresentando-se como um lugar de amizade, de resistência cultural e de encontro. Mário lembra noites inteiras com a família naquele local. É por isso que que diz: “Aqui vive-se Angola.”

No fim, o Natal de Mário Carneiro resume-se a ideias simples: quanto mais gente, melhor. O Natal é da família, o Ano Novo é dos amigos. O resto – a decoração, os símbolos importados, as formalidades – é secundário. Importa a mesa cheia, a conversa cruzada, a música ao fundo e a certeza de que, mesmo a milhares de quilómetros de Luanda, a tradição não se perdeu. Apenas aprendeu a viver entre dois países.

Nesta série de reportagens, o DN conversa com representantes das principais comunidades estrangeiras que formam o nosso país. Pessoas que abraçam Portugal e celebram o Natal com uma mistura de culturas e gratidão pelo que constroem aqui.
Mário Carneiro dá um abraço a Isabel Jacinto, proprietária do restaurante Batata Doce, em Lisboa, onde o português nascido em Angola costuma passar serões.
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