Um retrato de família e tradição na comunidade hindu, que consegue celebrar “dois natais”

Da memória à diáspora, as culturas fundem-se, com a família Amratlal Ranchordas a viver em simultâneo as tradições de Natal e Diwali. “Somos as duas coisas”, assume Ainoa, a mais nova da família.

No interior do templo Radha Krishna, em Lisboa, centro nevrálgico da Comunidade Hindu de Portugal, o Natal apresenta-se menos como um contraste e mais como um abraço entre culturas. À entrada da cantina vegetariana, mesmo por baixo do templo, em harmonia com uma tela que representa simultaneamente Ganesh e o mantra Om, surgem decorações natalícias, com um pinheiro pleno de luzes, bolas e fitas coloridas. Na cantina, sobre a mesa, alinham-se doces e salgados tradicionais indianos, partilhados numa conversa longa, tranquila e reveladora com a família Amratlal Ranchordas, que surge como um retrato de como o Natal é acarinhado por muitos hindus portugueses.

Sona Manilal, a mãe, explica este encontro de tradições, enquanto partilha alguns pedaços de fafda gathiya, um salgado de farinha de grão-de-bico feito à mão: “Na Índia come-se ao pequeno-almoço, acompanhado de jalebi”, um doce de farinha de trigo, frito e mergulhado em calda de açúcar, que é presença obrigatória em festas e eventos da comunidade. Ao lado, surgem o kaju katli, feito de castanha de caju, e o pendá, preparado a partir de leite fervido até ganhar um tom tostado.

Será sempre uma "mesa cheia", garante Sona, a antecipar o que vai acontecer dentro de poucos dias, na véspera de Natal. A comida, como tantas vezes acontece, é o ponto de partida para falar de identidade, pertença e celebração.

Dipac Amratlal, o pai, nasceu em Lourenço Marques, agora Maputo, em Moçambique, e chegou a Portugal em 1976, com 14 anos. Sona teve um percurso semelhante, sendo neta de um imigrante indiano que se fixou em África, também em Lourenço Marques. No entanto, conheceram-se no Porto, já depois da descolonização, e fizeram de Portugal casa definitiva.

As filhas, Niráli e Ainoa, já nasceram em Portugal. “Somos portuguesas, mas hindus”, resume Ainoa, a mais nova, que, aos 22 anos, com entusiasmo, explica que está a "trabalhar numa agência de comunicação, a Taylor, do grupo Young Network. E estou a fazer uma pós-graduação em Comunicação de Futebol Profissional com a Liga Portugal", acrescenta.

Quanto ao Natal, apesar de não ser uma celebração do hinduísmo, esteve sempre presente na casa da família. “Sempre tivemos uma árvore de Natal”, recorda Dipac, deixando até escapar uma revelação que surpreendeu a filha: "Eu já fiz de Pai Natal!"

Ainoa confirma a tradição, lembrando que desde pequena celebra o Natal, "na escola, com os amigos", que é algo que diz fazer "não pelo significado religioso, mas por um sentimento de pertença, de cultura e de festa”.

A mesa da família Amratlal Ranchordas seguiu sempre os cánones portugueses, com bacalhau, hortaliça, arroz doce – o "preferido" da família, confessam Sona e Ainoa –, bolo-rei, sonhos e rabanadas. Porém, para acomodar o vegetarianismo de Sona e das filhas, havia piza vegetariana. “Para mim, comer piza no Natal sempre foi normal”, diz Ainoa, sorridente.

Questionada sobre se o vegetarianismo é um preceito que é obrigatório seguir dentro do hinduísmo, Sona garante que não é, porém, é aconselhado, e Ainoa corrobora a ideia. "Não existe nenhuma obrigação em ser vegetariano, não existe uma proibição em comer carne. O que está escrito nas nossas literaturas é que é aconselhável sermos vegetarianos", ensina a mais nova da família, lembrando que a mãe vai um pouco mais longe e "não come nada com ovos".

"Um pastel de nata, por exemplo, leva ovos e a minha mãe não come", destaca. Mas o leite surge como uma exceção dentro de toda a gama de produtos de origem vegetal que Sona consome, porque o hinduísmo estabelece a vaca como um animal sagrado, "como uma mãe".

"É um animal extremamente sagrado. Há milhares de anos, nas aldeias, as mulheres preparavam todos os derivados do leite, desde iogurtes às manteigas, e vendiam-nos para sustentar a família. E o leite de vaca é mais parecido com o leite da mãe. Quando é para fazer a transição do leite ao bebé, o primeiro leite que nós temos é da vaca. E o leite de vaca não faz mal, não é pesado. E a vaca é o único animal que é 100% vegetariano", descreve Sona, com emoção.

Dipac Amratlal, ao lado da mulher, Sona Manilal, e da filha mais nova, Ainoa Dipac, na cantina vegetariana da Comunidade Hindu de Portugal.
Dipac Amratlal, ao lado da mulher, Sona Manilal, e da filha mais nova, Ainoa Dipac, na cantina vegetariana da Comunidade Hindu de Portugal.Foto: Paulo Spranger

Apesar da harmonia que a família Amratlal Ranchordas transmitiu ao DN, houve também relatos de episódios pontuais de preconceito, que tanto Dipac como ainoa descreveram com leveza, referindo comentários na rua e uma situação vivida por Niráli na universidade, com uma frase proferida por uma professora. No entanto, nada disto afeta a relação desta família com Portugal. “Somos portugueses”, lembra, Ainoa, sempre sorridente.

E celebrar o Natal não ofende ninguém. É exatamente o contrário", continua a especialista em relações públicas. A família critica, aliás, tentativas de limitar decorações natalícias por receio de excluir outras culturas. “Quem vem para cá adapta-se ao país”, defende Dipac. “Ninguém tem de deixar de ser o que é. É acrescentar.

No templo, essa ideia traduz-se em prática. Sona mantém um altar em casa e faz orações diariamente, com a prática do Aarti, lembra, referindo-se a um ritual diário que acontece tanto no templo como em casa duas vezes por dia, de manhã e ao final da tarde. No Radha Krishna, Sona coordena voluntariado de apoio a idosos e pessoas com mobilidade reduzida.

Sejam católicos, muçulmanos ou hindus, não há restrições”, diz, revelando que o caráter humanitário daquilo que faz se sobrepõe a tudo o resto. Para além de voluntariado do templo Radha Krishna, Sona também trabalha a fazer traduções de hindi, gujarati, urdu, espanhol, inglês e português. Já Dipac, trabalha atualmente num hotel, depois de ter tido um negócio próprio que chegou a passar por Madrid.

Durante anos, a Comunidade Hindu organizou no dia 25 de dezembro, o chamado “Oriental Christmas” (Natal oriental), lembra Ainoa, descrevendo jogos, convívios, um Pai Natal a distribuir prendas às crianças. “Vale a pena viver isso”, afirma.

Entre jalebi e arroz doce, entre o Diwali e o Natal, a família Amratlal Ranchordas mostra que a vivência hindu em Lisboa não se faz de exclusões, mas de camadas. Uma identidade construída entre geografias, línguas e tradições, onde a árvore de Natal pode coexistir com o altar do Aarti, e onde a festa, seja qual for o calendário, continua a ser um símbolo de família e de encontros.

Nesta série de reportagens, o DN conversa com representantes das principais comunidades estrangeiras que formam o nosso país. Pessoas que abraçam Portugal e celebram o Natal com uma mistura de culturas e gratidão pelo que constroem aqui.
Dipac Amratlal, ao lado da mulher, Sona Manilal, e da filha mais nova, Ainoa Dipac, na cantina vegetariana da Comunidade Hindu de Portugal.
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