"Não é porque os agentes das polícias municipais de Lisboa e Porto têm estatuto de polícias de segurança pública — porque a sua origem é a PSP — que, estando na Polícia Municipal em comissão de serviço, podem exorbitar das suas competências, arrogando-se órgãos de polícia criminal. Porque não são: a PSP é que é, e enquanto estão na Polícia Municipal são polícias municipais, não são PSP”.Quem o diz é polícia municipal há mais de duas décadas, na Polícia Municipal de Coimbra, e presidente do Sindicato Nacional dos Polícias Municipais (SNPM) há cinco anos. Para Pedro Oliveira — é o seu nome — não houve surpresa nos conteúdos dos pareceres jurídicos que o governo anterior de Luís Montenegro foi pedindo a propósito das pretensões de Carlos Moedas sobre as competências das polícias municipais de Lisboa e Porto, e que acabaram revelados nos dois últimos meses, contradizendo essas pretensões. Nomeadamente a de que o autarca, podia, como anunciou em setembro de 2024, mandar os agentes da Polícia Municipal de Lisboa (PML) “deter suspeitos de crimes”“Um presidente da Câmara não é ninguém para dar ordens a qualquer polícia que seja, mesmo da Polícia Municipal onde ele é presidente”, comentou a 7 de agosto, à Antena 1, na sequência da notícia do DN de que o Ministério Público instaurou um inquérito a atuações da Polícia Municipal de Lisboa (PML) divulgadas em reportagens do Canal Now.Ao DN, aprofunda: “Quem obriga a deter é a lei. E repare: se o presidente da Câmara pudesse dar ordens para deter, também poderia dar ordens para não deter. E aí seria de mandar as mãos à cabeça. Porque se apanharmos um filho de um vereador, ou do próprio presidente, embriagado a conduzir temos de o deter. As competências e responsabilidades são do próprio polícia municipal, não são da câmara. Não temos cá xerifes: é a lei que manda.”Trata-se de um argumentário que coincide com o do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, uma das primeiras vozes a contrariar Carlos Moedas. E, como o autarca portuense, o sindicalista exaspera-se: “Como é que se está há tanto tempo a discutir algo que é tão claro?”Porque, prossegue, “as polícias municipais são aquelas que são administrativas, não têm competência na investigação criminal. Só têm as competências criminais que estão na lei. Que são o quê? Detenção em flagrante delito dos crimes, que sejam públicos ou semi-públicos, de que tomem conhecimento; salvaguardar os meios de prova para entregar ao órgão policial competente ou ao tribunal; quanto aos crimes no âmbito das relações administrativas, os chamados crimes de competência específica da PM, são nossos. Vou dizer quais são: os que decorrem da recusa da prática de ato devido ou da violação de lei no âmbito das relações administrativas.” Enumera: “Apanhar um indivíduo sem carta, ou a conduzir em estado de embriaguez, ou a conduzir com carta apreendida por sanção anterior, ou alguém recusar-se a identificar-se no âmbito de qualquer fiscalização relacionada com o nosso trabalho — desde que solicitado legitimamente, porque não posso pedir a identificação a quem quero e me apetece.” E quando aos crimes públicos ou semi-públicos que não são da competência específica da polícia municipal? Simples, responde Pedro Oliveira: “Se por exemplo nos confrontamos com um crime de violência doméstica, somos obrigados a intervir, a deter — mas temos de entregar logo o detido à PSP ou GNR. Porque esse é um crime que não decorre das relações administrativas, e aí não podemos fazer a constituição de arguido. É esta a diferença entre as polícias administrativas e as polícias que têm competência de investigação criminal.” “É ‘não concordo com esta lei, vou fazer contra a lei’”E como é que, sequer, começou o debate? Pedro Oliveira tem um palpite. “O doutor Carlos Moedas, pela sua ingenuidade política e pouca experiência, chegou ali e achou, sem ler a lei: os agentes da Polícia Municipal de Lisboa são da PSP, então podem fazer o que a PSP faz. Mas não tem culpa sozinho, porque andou de volta do ministério da Administração Interna e alguém lhe andou a alimentar esperanças de que os agentes da PML, por terem origem na PSP, poderiam, de um momento para o outro, adquirir um estatuto especial. Ora não podem, é impossível. E até acredito que o Governo gostasse de lhe fazer a vontade, mas não pode: Não é uma senhora ministra ou um governo que consegue alterar as leis da Polícia Municipal. Tem de ser a Assembleia da República. E depois tem um problema: a lei não pode ser ilegal nem inconstitucional. Porque existem os limites das competências dos municipios e da lei das autarquias locais, que diz que compete às autarquias locais isto e aquilo, e não fala de segurança interna nem investigação criminal. Porque isso é do Estado e não dos municípios. Para mudar isto seria preciso mudar a Constituição.”O que sucedeu a seguir, continua Pedro Oliveira, foi que o governo “pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República por causa do que o presidente da Câmara de Lisboa pediu ao governo, e o parecer vai contra o entendimento e a vontade dele. Mas ele insiste em dizer que a polícia municipal dele vai continuar a exercer, contra a lei e contra um parecer que foi homologado pelo Governo, as competências que ele próprio entende que ela tem. Ora muitos presidentes de câmara gostariam de ir contra a legislação em muitas áreas, mas compete-lhes respeitar as leis da República. Não pode ser: ‘Não concordo com esta lei, vou fazer contra a lei’. Imagine que apetece agora a Moedas fazer, independentemente do valor de um contrato, adjudicações diretas em vez de concurso público, como a lei manda. A isso não se atreve. Mas atreve-se a dar competências às câmaras municipais que elas não têm só porque os agentes da polícia municipal pertencem de origem à PSP? É um enorme desrespeito pelo Estado de Direito.” Não que o presidente do SNPM não veja problemas de direito, até eventuais inconstitucionalidades, na legislação atinente às polícias municipais; as suas preocupações são é o avesso das de Carlos Moedas. Se este pede um estatuto especial para os polícias municipais de Lisboa e Porto que os transforme em agentes de uma força de segurança, o sindicalista reivindica o contrário: que os agentes dessas polícias municipais fiquem em pé de igualdade com os de todas as outras. E faz um resumo histórico: “Quando nos anos 1940 foram colocados agentes da PSP nas polícias municipais dessas duas cidades, foram-no em regime provisório — deviam ter um tempo de adaptação e depois iriam ser convertidos em guardas municipais, saindo da PSP. Ou então voltavam à PSP; tinham de escolher. A legislação que foi saindo foi mantendo o regime provisório, chegando a dar prazos para o respetivo fim; em 1999, por exemplo, deu-se um prazo de cinco anos. Mas a coisa foi-se mantendo até que com a ministra Constança Urbano de Sousa (Governo de António Costa) foi aprovada uma legislação que transformou a situação provisória em definitiva: os agentes das polícias municipais de Lisboa e Porto ficaram com o estatuto da PSP e as competências da Polícia Municipal. Ficámos assim com dois regimes de pessoal para uma só função na administração pública, coisa para a qual não conheço paralelo no mundo e que me parece inconstitucional.”Significa isso, informa, que enquanto os agentes de todas as outras polícias municipais estão sujeitos ao regime geral dos funcionários da administração local, com o correspondente estatuto remuneratório, os de Lisboa e Porto mantêm o estatuto remuneratório da PSP, “com todos os suplementos, incluindo o que diz respeito a serem parte de uma força de segurança, quando não são, e o subsídio de fardamento, quando é a Câmara Municipal que lhes fala a farda”. Em suma: “Recebem tudo como se estivessem na PSP, e ainda mais o subsídio da comissão de serviço, que são uns 300 euros. Além de que podem fazer gratificados para as próprias câmaras — que é trabalharem fora das horas de serviço, a serem pagos por fora com uma tabela que existe desde o tempo do Salazar, e que corresponde a o agente trabalhar quase por conta própria”. A desigualdade não se fica pela remuneração: há ainda a desigual idade de reforma, 60 para os polícias municipais que têm vínculo à PSP e 67 para os restantes, e a desigual assistência na doença. “Se o estatuto deles está errado?”, questiona Pedro Oliveira. “Não, acho bem que o tenham. O que está errado é a desigualdade. Porque se é preciso, para ser polícia municipal de Lisboa e Porto, ganhar aqueles suplementos, ganhar aqueles salários e ter aquelas regalias, então devia ser igual nos outros locais.”“O que é isto, um golpe de Estado em Lisboa?”Para este representante dos polícias municipais, todo o imbróglio suscitado por Carlos Moedas poderia, afinal, ser uma oportunidade para deslindar a confusão que se arrasta há quase um século. “Era acabar com o regime especial de Lisboa e Porto, criar um regime único para as polícias municipais a nível nacional, regulamentar um estatuto adequado às funções policiais que os agentes realizam — com idade de reforma adequada, suplemento de patrulha (que não temos) e um estatuto que não seja uma colagem aos estatutos da PSP e GNR.” Em vez disso, porém, aquilo a que se assiste é ao adensar da confusão, com a Polícia Municipal de Lisboa a passar, no final de 2024, a ostentar o crachá da PSP (a Polícia Municipal do Porto já o usava no fardamento) e o presidente da Câmara da capital a declarar-se insurrecto face ao parecer do Conselho Consultivo da PGR e à respetiva validação do Governo (Em reação ao parecer, Carlos Moedas afirmou-se, ao microfone da TSF, “incrédulo”, tendo posteriormente defendido uma mudança da lei, enquanto declarava: “Estou e estarei sempre do lado da Policia Municipal e de todas as forças de segurança. A Polícia Municipal pauta a sua atuação pelos princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade. Continuarei sempre a incentivar qualquer força de segurança a fazer cumprir a lei e a impor a ordem em nome da proteção de todos os cidadãos”). Pedro Oliveira escandaliza-se. “Então agora os municípios atrevem-se a não respeitar as leis da Assembleia da República e os pareceres da Procuradoria-Geral da República que são pedidos pelo governo? E ainda diz Carlos Moedas que está do lado dos polícias. Não está, está a obrigá-los a praticar, na melhor das hipóteses, atos nulos.”E na pior das hipóteses, crimes — ou o Ministério Público não tivesse instaurado, a partir de uma série de reportagens do canal Now, um inquérito-crime a operações da PML. “Aquelas reportagens [no canal Now] eram uma publicidade”, interpreta Pedro Oliveira. “Queriam dizer: agora é que vai ser, agora é que vai haver segurança em Lisboa.”O desígnio seria, para usar uma expressão do comandante da PML, José Carvalho Figueira, em discurso de 17 de setembro de 2024 no qual reivindicou competências de investigação criminal para o departamento municipal que comanda, apresentar uma PML “empoderada”. Mas o sindicalista viu outra coisa: “Vemos agentes da PML à paisana efetuar detenções. Ora a lei diz que os agentes das polícias municipais exercem as suas funções devidamente uniformizados. E aquelas detenções são, na minha opinião, muito discutíveis do ponto de vista legal.”Podem os agentes alegar, para não serem responsabilizados, obediência a ordens superiores? “Há co-autoria na responsabilidade. Porque os agentes, se estiverem devidamente informados e conscientes de que estão a passar limites, devem pedir as ordens ilegais por escrito, e se considerarem que ao segui-las podem acabar por cometer crimes, devem recusar-se a fazer. Mas, claro, isso é muito difícil num organismo com o estatuto hierárquico das polícias.”E o sindicalista conclui: “O presidente da Câmara de Lisboa quer dar a imagem de que está a lutar por mais segurança. Não está, está a lutar quase por uma anarquia. Pelo que seria uma milícia civil que entende em determinado momento criar. Porque aquilo que quer, não sendo baseado na lei, só pode ser uma coisa particular dele. Regulamenta normas próprias para si próprio e entende que deve exercê-las na sociedade civil onde está: agora vou impor isto aqui ao cidadão, a minha polícia municipal é mais que a de Coimbra, de Famalicão, etc. A Câmara de Lisboa e a PML estão a lutar contra o Estado, contra a Assembleia da República, contra o Governo, contra os tribunais? Estão contra os órgãos de soberania? O que é isto? Uma milícia? Um golpe de Estado em Lisboa?”.Polícia Municipal: Governo homologa parecer que contraria Moedas, IGAI abre averiguação.Ministério Público abre inquérito à atuação da Polícia Municipal de Lisboa.Rui Moreira: “Ordem de Moedas só é ilegal se foi cumprida pela Polícia Municipal” .Polícias Municipais. “O MAI permitiu que se criasse uma perceção errada, e isso é grave”, diz Rui Moreira.Ordem de Moedas põe polícias municipais em risco de serem acusados de abuso de poder ou sequestro