“Chegamos agora à conclusão de que o assunto das competências das polícias municipais poderia ter sido esclarecido pelo governo logo no início da polémica, em outubro de 2024, quando recebeu o parecer da auditora jurídica do ministério da Administração Interna, mas andou meses a adiar. E deixou que se criasse a perceção, errada, de que eram o município do Porto e a Polícia Municipal do Porto que por laxismo não queriam fazer nada.”É num tom agastado que Rui Moreira reage à informação, manchete do DN desta segunda-feira, de que logo em setembro de 2024, após o anúncio do presidente da Câmara de Lisboa de que dera ordens à respetiva Polícia Municipal para efetuar detenções, o Governo pediu um parecer à auditora jurídica do ministério da Administração Interna, o qual, entregue a 8 de outubro, deixa claro que a ordem do edil da capital está destituída de legalidade. O presidente da Câmara do Porto considera “grave” que a anterior ministra da Administração Interna tenha, a despeito da existência desse parecer, “permitido que se criasse uma perceção errada, a de que quem está a cumprir escrupulosamente a lei não está a querer combater a criminalidade. Acabei por ser acusado de querer proteger os criminosos e de ter os polícias municipais sem fazer nada, de papo para o ar.”Quando afinal, prossegue, “toda a gente agora percebeu que de facto o nosso entendimento, o entendimento do nosso comandante da Polícia Municipal, que considero uma pessoa altamente competente, era o correto e adequado. Mas deixou-se que a confusão ficasse, e o assunto acaba por verter para uma campanha eleitoral em que se andam a discutir modelos securitários provavelmente ilegais.”Recorde-se que a 24 de setembro de 2024, na sequência do anúncio de Carlos Moedas efetuado à SIC no dia anterior, Rui Moreira certificou ao DN que, apesar de as polícias municipais de Lisboa e Porto serem compostas por agentes da PSP em comissão de serviço, não tinham a competência de investigação criminal, e que considerava a ordem do seu homólogo lisboeta “um disparate e um perigo”, “violando inclusive princípios da Constituição”. O autarca portuense comparou então a pretensão de Moedas “ao modelo americano dos xerifes”, considerando que “um presidente da Câmara ter competências de investigação criminal seria abrir de uma caixa de Pandora”, e que não se tratava, no caso, de “diferentes visões políticas”, mas de “uma matéria de estrita legalidade”“Isto preocupa-me como cidadão”Ora o parecer que o DN revelou nesta segunda-feira, assinado pela procuradora-geral-adjunta Luísa Sobral Verdasca, auditora jurídica junto do ministério da Administração Interna, e datado de 8 de outubro de 2024, corrobora basicamente tudo o que Rui Moreira disse ao DN. Repristinando, de resto, aquilo que já estava fixado como interpretação oficial da lei pelo parecer de 2008 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, então homologado, sobre as competências das polícias municipais. Ou seja, que as polícias municipais têm caráter administrativo, não são “forças de segurança” e não têm competências de investigação criminal, podendo apenas efetuar detenções em flagrante delito, por crimes com pena de prisão, devendo entregar de seguida os detidos a órgãos de polícia criminal.Exceção para a qual Rui Moreira tinha chamado logo a atenção nas suas declarações de 24 de setembro de 2024 ao DN, ao esclarecer que está já legalmente previsto que a PM possa efetuar detenções em flagrante de delito, assim como que em determinadas circunstâncias possa ser chamada para ajudar a PSP: “Quando a PSP precisa de reforços da Polícia Municipal pode solicitar ao presidente da câmara, e ele concorda, a PM pode desempenhar funções de segurança pública. Por exemplo em grandes eventos e sempre que haja um risco grande, como uma ação de terrorismo.” O autarca do Porto vê pois com intensa “preocupação” que os dois executivos de Luís Montenegro tenham permitido a manutenção de uma confusão que considera perigosa, por “descredibilizar a própria polícia municipal nas competências que ela exerce”. Tanto mais que, informa, teve desde setembro de 2024 várias interações com o ministério da Administração Interna e nunca lhe foi comunicada a existência do dito parecer. “Preocupa-me como cidadão, não como presidente, porque daqui a um mês já aqui não estarei. Mas criou-se um ambiente, que verteu para a campanha eleitoral, em que o reforço das competências das polícias municipais de Lisboa e Porto são tema.”Os pareceres desaparecidos e a teimosia de MoedasA existência do parecer da auditora jurídica do MAI, indicada para o lugar em dezembro de 2023 pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), só foi conhecido por via de outro parecer — aquele que o referido Conselho Consultivo da PGR exarou a 27 de março de 2025, igualmente sobre as competências das polícias municipais e também a pedido da anterior ministra da Administração Interna, Margarida Blasco. Parecer que por sua vez esteve vários meses clandestino no ministério, até que o DN noticiou as respetivas conclusões e o atraso do governo na decisão sobre ele — posto o que a atual ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, cujo gabinete respondera ao jornal estar “desde o início das suas funções” a dedicar “uma análise cuidada” ao mesmo, o homologou. Rui Moreira tem riso na voz ante a sucessão de pareceres sobre o mesmo assunto e o tempo que levou a que fossem conhecidos: “Este novo parecer do Conselho Consultivo da PGR diz algo como ‘este parecer é mais ou menos irrelevante porque já existia um parecer e a lei não mudou’. Aliás, julgo que seria até necessária uma alteração constitucional para que as competências das polícias municipais fossem alteradas no sentido de poderem fazer investigação criminal.”Moreira foi aliás sarcástico quando a 6 de agosto comentou, a pedido do DN, o novo parecer do Conselho Consultivo da PGR e o facto de lhe dar razão, tornando clara a ilegalidade da ordem que Carlos Moedas afirmou ter dado: “A ordem só é ilegal se foi cumprida pelo comandante da Polícia Municipal de Lisboa. E eu suspeito que o comandante da PML, como é um quadro dirigente da PSP, pura e simplesmente não a tenha cumprido.” Certo é que o seu homólogo lisboeta continua a exigir “que se mude a lei de forma a que os polícias municipais, que são polícias de segurança pública, possam fazer o seu trabalho”. Disse-o de novo esta segunda-feira à RTP, proclamando no Twitter/X, em comentário à notícia do DN sobre o parecer da auditora jurídica do MAI: “Continuarei a incentivar a PM a fazer tudo, tudo, tudo para manter a segurança dos lisboetas. Eu estarei ao lado dos polícias, nunca estarei a liderar manifestações contra os polícias.” A insistência de Carlos Moedas em referir os agentes da Polícia Municipal de Lisboa como “polícias de segurança pública” — um estatuto que o parecer mais recente do Conselho Consultivo da PGR sublinha não terem, do ponto de vista funcional, enquanto estão nas polícias municipais — é partilhada pelo comandante deste departamento da Câmara Municipal de Lisboa, o subintendente José Carvalho Figueira. Este, no 133º aniversário da PML, a 17 de setembro de 2024, chegou até a reivindicar claramente competências de investigação criminal para o departamento autárquico que dirige: “Se não somos competentes como órgão de polícia criminal com capacidade de efetuar detenções em flagrante delito, poderá questionar-se qual a vantagem de os municípios de Lisboa e do Porto recrutarem polícias das fileiras da PSP.” Recorde-se que, como este jornal noticiou a 7 de agosto em primeira mão, o Ministério Público abriu um inquérito a atuações da Polícia Municipal de Lisboa, divulgadas em reportagens do canal Now, nas quais agentes deste serviço da Câmara Municipal de Lisboa procedem, à paisana, a “ações encobertas”, fazendo-se passar por turistas e efetuando detenções musculadas. Também a Inspeção Geral da Administração Interna comunicou ao DN, no final de julho, ter aberto um processo administrativo — o qual, informou a 19 de agosto, ante o pedido de esclarecimento do jornal, continua “pendente”. .Ministério Público abre inquérito à atuação da Polícia Municipal de Lisboa.“Acho um disparate e um perigo.” Rui Moreira sobre ordem de Moedas à Polícia Municipal para fazer detenções.Rui Moreira: “Ordem de Moedas só é ilegal se foi cumprida pela Polícia Municipal” .Polícia Municipal: Governo homologa parecer que contraria Moedas, IGAI abre averiguação.Governo esconde parecer da PGR sobre Polícia Municipal que contraria Moedas