Rui Moreira não tem dúvidas de que a ordem que Carlos Moedas anunciou em setembro de 2024 ter dado ao comandante da Polícia Municipal de Lisboa — no sentido de que os agentes passassem a “efetuar detenções de suspeitos de crimes” — é “um disparate e um perigo”. Disse isso mesmo, na altura, ao DN, e explicou porquê: para o autarca portuense, estava em causa uma violação da Constituição. Não o surpreende, assim, que o novo parecer da Procuradoria Geral da República (existia já um de 2008 sobre o mesmo assunto) sobre as competências das polícias municipais conclua no mesmo sentido. Acha aliás que “não era preciso mais um parecer, a lei não mudou entretanto.”Se do parecer, que, como o DN noticiou esta terça-feira, foi homologado pelo Governo, se retira a conclusão de que a referida ordem de Moedas é ilegal, o presidente da Câmara do Porto faz uma ressalva algo sarcástica: “Só é ilegal se foi cumprida pelo comandante da Polícia Municipal de Lisboa. E eu suspeito que o comandante da PML, como é um quadro dirigente da PSP, pura e simplesmente não a tenha cumprido.”Mas se cumpriu, e Carlos Moedas afiançou que sim, que “as detenções estavam a acontecer”, estar-se-á ante uma ordem ilegal do autarca e ações ilegais da Polícia Municipal de Lisboa (PML). Como aliás logo em setembro de 2024 alertou, em declarações à Lusa, o penalista Paulo Saragoça da Matta: se a PML está a efetuar detenções fora de flagrante delito sem entrega imediata a uma autoridade judiciária, então essas detenções serão “todas ilegais”, gerando o direito a pedir indemnização.Mas, de acordo com a opinião de vários especialistas em segurança interna ouvidos pelo DN, poderão estar em causa outras ações ilegais da PML, já que este departamento municipal, que o parecer da PGR define como uma polícia administrativa, tem vindo, como se evidencia em várias reportagens transmitidas no canal Now, a desenvolver operações que, como qualifica um destes especialistas, “suscitam muitas dúvidas, estão pelo menos no limiar da legalidade”. Nas ditas reportagens veem-se agentes da PML, “disfarçados de turistas”, a surpreender, perseguir e algemar, de forma vigorosa, vendedores ambulantes na Baixa de Lisboa e a forçar a entrada, sem mandado judicial, num alegado restaurante clandestino. “Vamos de autocarro como se fossemos turistas para apanhar os infratores mais desprevenidos”, diz, numa das reportagens, o oficial que parece dirigir todas estas atuações da PML, o subintendente Tiago Mota, que desde dezembro de 2024 comanda a respetiva divisão policial.“A polícia municipal pode fazer muita coisa — talvez não aquilo”“Qual a ideia que passa dessas reportagens?”, questiona o presidente do Sindicato Nacional de Oficiais de Polícia (SNOP), Bruno Pereira. “Podemos estar a confundir as pessoas quanto àquilo que se espera de cada corpo de polícia. Tem de ficar claro o que as polícias municipais podem fazer. Porque podem fazer muita coisa — talvez não aquilo.” E explica porquê: “A polícia municipal age dentro das baias daquilo que é a normatividade administrativa própria das autarquias. E só pode actuar nesse âmbito. Se na sua atuação se depara com um crime, pode e deve relatá-lo, mas tem de comunicar imediatamente aos órgãos de polícia criminal. De outro modo, andamos para aqui aos encontrões e não sabemos muito bem o que cada um anda a fazer e portanto criamos redundâncias, pleonasmos de atuação — e ainda mais quando a atuação das polícias municipais tem de se cingir, como fica bem claro do recente parecer da PGR (caso ainda houvesse dúvidas), dentro do que são as baias da intervenção administrativa, do que são os poderes camarários, e nada mais.”Ora, prossegue este oficial da PSP, que tem formação em Direito, “se o impulso, a motivação que leva os agentes da polícia municipal a atuar é a base potencial de um crime, não pode atuar, tem de remeter o assunto para quem tem essa competência.”Outro quadro da PSP, o superintendente-chefe José Bastos Leitão, prefere enquadrar o assunto em termos abstratos. “Imaginemos que uma polícia municipal está a investigar uma série de vendedores que estão nas ruas que parece que estão todos organizados, e o fornecedor é o mesmo, etc. Isso é investigação criminal, e a ocorrer com uma polícia municipal, ocorreria à margem da legalidade já que teria que ser sancionada, delegada pelo MP.” Quanto a uma situação em que agentes de uma polícia municipal se introduzam, fazendo-se passar por turistas, numa residência que suspeitem estar a funcionar como restaurante clandestino, Bastos Leitão não hesita: “Qualquer introdução de qualquer polícia numa residência, tenha ou não suspeitas, só pode ocorrer com mandado — a não ser que esteja em causa um perigo grave para uma pessoa, por exemplo se ouviram gritos. E para haver um mandado tem de haver uma investigação criminal.”O mesmo julgamento de ilegalidade se aplica, discorre ainda o superintendente-chefe, num caso em que polícias municipais, tendo recebido uma denúncia de que num determinado estabelecimento comercial estavam a viver pessoas, eventualmente imigrantes ilegais, numa área para a qual se entrava por um alçapão, entram no estabelecimento e abrem o dito alçapão. “Não tendo as polícias municipais competência para fiscalizar e investigar a imigração ilegal, uma ação dessas teria que ser informada à PJ em termos de investigação ou à PSP em matéria de fiscalização, sob pena de nulidade de todo o resultado da ação”, ajuíza Bastos Leitão. “Há uma ruptura na conduta da Polícia Municipal de Lisboa”Tanto Bruno Pereira como Bastos Leitão consideram “inovador” e “surpreendente”, até “anormal”, ver agentes de uma polícia municipal operarem desfardados, “à paisana”, mas não veem nisso ilegalidade.Não é essa a opinião de um outro especialista da área da administração interna, que fala na condição de não ser identificado. “Agentes de uma polícia municipal andarem à paisana? Pode andar à paisana um polícia de uma força de segurança, mas polícias municipais andarem a operar à civil não me parece q tenha enquadramento legal. Muito menos se houver atuação que pode ser enquadrada na figura de ‘agente provocador’." Subscrevendo várias das dúvidas levantadas pelos quadros da PSP citados, este perito estranha que a Inspeção-Geral da Administração Interna só tenha, como o DN noticiou esta segunda-feira, instaurado uma averiguação relacionada com as atuações da PML retratadas nas reportagens do canal Now após ser questionada pelo jornal. “Uma simples averiguação é desajustado à matéria em questão. A IGAI deveria abrir um inquérito. Aquelas reportagens foram muito faladas, sobretudo no meio policial e da segurança interna. A IGAI tem autonomia para agir e deveria agir, investigar, afastar as dúvidas que existem.”O mesmo, considera, se aplica à PSP. “Os agentes da Polícia Municipal de Lisboa e Porto são do quadro da PSP, e embora estejam em comissão de serviço continua a aplicar-se-lhes o Estatuto Disciplinar da PSP, pelo que a PSP tem competência para abrir um inquérito, e devia fazê-lo. Aquelas atuações são uma ruptura em relação ao que era a conduta da Polícia Municipal de Lisboa”. MAI nega ter ocultado parecer Nem o ministério da Administração Interna nem a Câmara de Lisboa responderam às questões do DN sobre as operações da Polícia Municipal de Lisboa retratadas nas referidas reportagens do canal Now.De resto, até à noite desta terça-feira, e apesar de repetidamente questionado pelo DN, o ministério da Administração Interna (MAI) não assumira oficialmente a homologação do parecer do Conselho Consultivo da PGR solicitado pela anterior ministra, Margarida Blasco, e que desde 4 de abril, como este jornal já havia noticiado, ali esperava uma decisão. O gabinete da sucessora de Blasco, Maria Lúcia Amaral, fê-lo finalmente perto das 21 horas, clarificando que a homologação do dito parecer ocorrera a 21 de julho (ou seja, imediatamente a seguir à notícia deste jornal sobre o conteúdo do parecer e o facto de o MAI estar a "escondê-lo") e a comunicação dessa mesma homologação à PGR a 22 de julho.Mais uma vez, como já fizera na primeira resposta dada ao DN quando o jornal o questionou, no início de julho, sobre o parecer, o ministério vem alegar que os vários meses de pousio do documento se devem ao facto de ter sido "recebido já na vigência de um Governo de gestão, na sequência da dissolução da Assembleia da República e da convocação de eleições antecipadas" e de ter sido submetido pela atual ministra a "uma análise cuidada". Nega assim que tenha querido esconder o parecer: "O Ministério da Administração Interna não ocultou qualquer documento. O referido parecer encontrava-se sob apreciação, sendo que, nos termos da lei (artigo 50.º, n.º 1, do Estatuto do Ministério Público), as suas conclusões são publicadas em Diário da República após homologação."Na verdade, o parecer integral está pelo menos desde segunda-feira na página do Conselho Consultivo da PGR, o qual já tinha informado o DN, após pedido de acesso do jornal ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, que requerera ao MAI autorização para a respetiva divulgação.Estas declarações do ministério surgem no mesmo dia em que, em reação à notícia do DN sobre a homologação do parecer, Carlos Moedas se manifestou, ao microfone da TSF, "incrédulo", garantindo não ter conhecimento oficial do mesmo ou do facto de ter sido homologado.O DN já tinha confrontado o presidente da Câmara com essas duas informações na noite desta segunda-feira, tendo Carlos Moedas remetido a sua reação para a manhã seguinte — quando não mais respondeu ao jornal.Nas citadas declarações à TSF, o autarca apela ao Governo para que "mude a lei". Não é claro a que mudança se refere, já que o parecer da PGR estabelece que o caráter administrativo das polícias municipais decorre da Constituição: "A lei constitucional recusa atribuir às polícias municipais as funções de 'prevenção dos crimes', as quais reserva para as polícias com âmbito nacional e funções típicas de 'segurança interna', ou seja, às forças de segurança". .Polícia Municipal: Governo homologa parecer que contraria Moedas, IGAI abre averiguação.Governo esconde parecer da PGR sobre Polícia Municipal que contraria Moedas.“Empoderar” a Polícia Municipal. Margarida Blasco pede parecer “urgente” à PGR.Ordem de Moedas põe polícias municipais em risco de serem acusados de abuso de poder ou sequestro