Polícias municipais não são forças de segurança nem órgãos de polícia criminal. Enquanto nelas integrados, agentes da PSP são polícias administrativos, funcionando na estrita dependência dos presidentes das câmaras municipais, estando-lhes vedada investigação criminal ou detenções – excepto em situações de flagrante delito de um crime punível com pena de prisão, tendo de entregar de imediato o detido a uma autoridade judiciária ou a um órgão de polícia criminal.Estas são duas das principais conclusões do parecer 8/2025 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República (PGR), versando sobre as competências das polícias municipais, e, sabe o DN, homologado pelo Governo ainda em julho – significando a homologação que a interpretação da lei vertida no documento é a “oficial”. Esta interpretação da lei, coincidente com a de um parecer anterior, de 2008, e igualmente homologado, do mesmo órgão, não deixa dúvidas sobre a ilegalidade da ordem que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa anunciou em setembro de 2024 ter dado ao comandante da respetiva Polícia Municipal – a ordem de que os respetivos agentes “passassem a efetuar detenções por crimes”. .Ordem de Moedas põe polícias municipais em risco de serem acusados de abuso de poder ou sequestro.“Acho um disparate e um perigo.” Rui Moreira sobre ordem de Moedas à Polícia Municipal para fazer detenções.Pretensão que o autarca voltou a defender a 8 de julho último, após uma reunião com a ministra da Administração Interna, dando até a entender que Maria Lúcia Amaral concordava: “A senhora ministra entende exatamente a necessidade de a Polícia Municipal poder fazer detenções sem ser órgão de polícia criminal”. E de novo a 22 de julho, já após o DN noticiar que o parecer da PGR não lhe dava razão, Carlos Moedas voltava à carga: “Tenho uma força de PSP, que são colegas dos outros, e têm de ficar parados à espera do colega que andou na mesma academia mas é superior, suponho, porque pode levar à esquadra. (…) A senhora ministra pediu um parecer, porque é necessário um parecer, porque eu quero que a Polícia Municipal, porque são PSP em Lisboa, possa participar e possa ajudar (…). Eu estou aqui a dizer ao Estado central: quero-vos ajudar.”Mas o parecer 8/2025, ora homologado, contradiz sem cerimónias a asserção de Carlos Moedas de que “tem uma força da PSP”. O documento reputa de “falsa” a ideia de que, “sendo as Polícias Municipais de Lisboa e do Porto constituídas [exclusivamente] por pessoal com funções policiais da Polícia de Segurança Pública (…) manteriam assim o originário estatuto e competências de ‘autoridades e órgãos de polícia criminal’, por ocorrer um ‘cúmulo de competências’, de polícia administrativa e de órgão de polícia criminal”. Trata-se, declara o parecer, de “uma falsa ideia, negada pela história, pela letra e pelo pensamento legislativo”.Para “absoluta clareza”, prossegue o parecer, “convirá frisar que (…) o efetivo das polícias municipais, nomeadamente das Polícias Municipais de Lisboa e do Porto, não integra – nem pode integrar – entidades com as competências próprias de “autoridades de polícia criminal”.E o documento, respondendo diretamente a Carlos Moedas, reitera: “O mais que hic et nunc [aqui e agora], se pode reiterar, em face de afirmações que têm sido propaladas sobre o tema, é que, na verdade, ‘os agentes das polícias municipais [somente] podem deter suspeitos no caso de crime público ou semi-público punível com pena de prisão, em flagrante delito, cabendo-lhes proceder à elaboração do respetivo auto de notícia e detenção e à entrega do detido, de imediato, à autoridade judiciária, ou ao órgão de polícia criminal’. Ou seja, nomeadamente os ‘polícias municipais’ nesses casos – embora somente nesses casos, tipificados na lei – têm competência para ‘deter suspeitos’; mais sendo certo que não ficam a aguardar pela chegada do órgão de polícia criminal, bem pelo contrário, têm de, ativamente, proceder à ‘imediata’ entrega do detido à autoridade judiciária, ou ao órgão de polícia criminal competentes.”Que espera MAI para anunciar homologação?Curiosamente, da leitura do parecer da PGR conclui-se que um parecer do próprio MAI, datado de 8 de outubro de 2024, apontava para as mesmas conclusões.Sucede que, apesar de homologado, o parecer 8/2025 da PGR ainda não foi, como é obrigatório no caso de homologação, publicado em Diário da República. Aliás, o MAI nem reconhece sequer tê-lo homologado. .Governo esconde parecer da PGR sobre Polícia Municipal que contraria Moedas. Questionado pelo DN a 24 de julho – quando, de acordo com informações recolhidas pelo jornal junto de várias fontes, a homologação já tinha ocorrido –, sobre a decisão da ministra da Administração Interna em relação ao documento, o gabinete de Maria Lúcia Amaral não respondeu ao jornal, e continua, até à presente data, sem responder.Quanto à Procuradoria Geral da República (PGR), a quem o DN pediu acesso ao parecer ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, e que a 17 de julho comunicou ao jornal ter pedido ao ministério da Administração Interna (como entidade que solicitou o parecer) autorização para o divulgar, acaba de publicar o documento no seu site – o que significa que o MAI autorizou a divulgação – sem no entanto fazer menção ao facto de o mesmo ter sido homologado.Questionada pelo DN sobre se o Ministério Público recebera alguma participação em relação a atuações da Polícia Municipal de Lisboa, retratadas em várias reportagens do canal Now, nas quais esta polícia efectua ações encobertas (típicas da investigação criminal), detém de forma vigorosa pessoas que estavam a proceder a venda ambulante alegadamente não autorizada e se introduz, apresentando-se como “turistas”, em residências que alegadamente funcionavam como restaurantes clandestinos, a PGR não respondeu, nem esclareceu se abrira ou pondera abrir inquérito a tais atuações. Já a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), confrontada pelo jornal com as referidas reportagens e as atuações da PML nelas divulgadas, informou ter “instaurado processo administrativo para a respetiva averiguação”. Mas do gabinete de Maria Lúcia Amaral, ministra que superintende a IGAI e foi, até à sua entrada no Executivo, Provedora de Justiça, o jornal não logrou obter qualquer esclarecimento sobre se a governante considera que as atuações da PML retratadas nas referidas reportagens do Now estão conformes à lei e às competências das polícias municipais, tais como fixadas pela interpretação do Conselho Consultivo da PGR, e se, caso lhe suscitem dúvidas de legalidade, vai ordenar inquéritos. Recorde-se que a anterior ministra da tutela, Margarida Blasco, juíza desembargadora que foi inspetora-geral da Administração Interna, dera, a 15 de janeiro de 2025, numa audição parlamentar, a sua opinião sobre as competências das polícias municipais: “Para mim, as polícias municipais são polícias administrativas. As polícias municipais podem colaborar com a PSP e com a GNR mas são polícias administrativas”.Questionada sobre o motivo pelo qual, sendo essa a sua posição, tinha requerido um novo parecer sobre o assunto – “Foi para não desautorizar completamente o presidente da Câmara?”, perguntou o deputado do PCP António Filipe –, a governante explicou que o fez por existir “uma margem para dúvidas no que respeita à liberdade dos cidadãos”. .Blasco contraria Moedas na Polícia Municipal e não consegue explicar “perceção de insegurança”. Margem de dúvidas que, depreende-se, permanecerá enquanto a atual ministra não tornar pública a sua decisão de homologar o parecer da PGR.Há 21 anos, maioria PSD/CDS recusou o que Moedas pretendeDe referir que a questão agora de novo analisada pelo Conselho Consultivo da PGR foi em 2004 profusamente debatida no parlamento.Isto porque a maioria PSD/CDS apresentou um projeto de lei para "rever a lei-quadro que define o regime e forma de criação das Polícias Municipais”, e nesse diploma, que tinha entre os principais signatários o atual secretário de Estado da Administração Interna Telmo Correia, se lia, no número 3 do artigo 3º, o seguinte: “Para os efeitos estritamente conexos com as suas funções e o exercício das suas competências, a hierarquia e os agentes das polícias municipais consideram-se órgãos de polícia criminal para os efeitos previstos na lei processual penal.”Como surgissem bastas dúvidas de constitucionalidade em relação a tal norma, um dos autores do projeto de Lei, o deputado do PSD Luís Marques Guedes, fazia, no debate na generalidade, marcha-à-ré, reputando de “absurda” a pretensão de que as PM pudessem ter competências de investigação criminal. “Não se defende, nem pretende, minimamente, que as polícias municipais possam ter qualquer tipo de intervenção no plano da investigação criminal — o que seria, desde logo, um absurdo e atentaria mesmo com os contornos constitucionais definidos para as polícias municipais”, proclamou o social-democrata.Sendo secundado pelo então deputado centrista Nuno Melo (hoje ministro da Defesa): “O CDS sempre recusou qualquer iniciativa legislativa que visasse cometer a polícias municipais competências que só podem ser desempenhadas por forças de segurança”.O resultado da discussão, como se frisa no parecer 8/2025 do Conselho Consultivo da PGR, foi a alteração da norma citada. O que leva o relator à conclusão de que “a intenção declarada do legislador da lei-quadro, à luz da interpretação da lei constitucional que perfilhou sobre esta matéria, foi a de recusar atribuir às ´polícias municipais’ o estatuto de “órgão de polícia criminal”.