"A segurança dos portugueses não pode ser usada ao sabor das agendas políticas de cada partido”, declarou Margarida Blasco.
"A segurança dos portugueses não pode ser usada ao sabor das agendas políticas de cada partido”, declarou Margarida Blasco.António Pedro Santos/LUSA

Blasco contraria Moedas na Polícia Municipal e não consegue explicar “perceção de insegurança”

Ministra da Administração Interna contra mais poderes das polícias municipais. Questionada sobre origem da "perceção de insegurança" tão referida pelo Governo, não conseguiu responder. E, para refutar ideia de que "a desigualdade alimenta a violência", invocou "tempos" - sem dizer quais - em que havia "menos crime" e "menos apoios sociais".
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Em setembro de 2024, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, afirmou ter dado “ordens à Polícia Municipal para proceder a detenções de suspeitos da prática de crimes”. Foi logo criticado pelo seu homólogo portuense, Rui Moreira, que o acusou de violar “princípios constitucionais” ao querer “avançar para o modelo americano dos xerifes”, mas a ministra da Administração Interna não se pronunciou, limitando-se a pedir um parecer sobre os poderes das policias municipais ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República. Agora, questionada no parlamento, Margarida Blasco, que é juíza desembargadora, assumiu que a sua “opinião enquanto ministra” é contrária à pretensão do autarca do PSD.

“Para mim, as polícias municipais são polícias administrativas. As polícias municipais podem colaborar com a PSP e com a GNR mas são polícias administrativas.” Ou seja, para o Governo, as polícias municipais não são órgãos de polícia criminal, não podendo proceder a detenções fora de flagrante delito. 

Conclusão que levou o deputado António Filipe, do PCP, a perguntar por que motivo foi então pedido um parecer à PGR: “Foi para não desautorizar completamente o presidente da Câmara?” Em resposta, a governante explicou que o fez por existir “uma margem para dúvidas no que respeita à liberdade dos cidadãos” - depreendendo-se que se referia ao tempo que alguém, se detido pela polícia municipal em flagrante delito, poderá estar “em poder” da Polícia Municipal até que um órgão de polícia criminal tome conta da ocorrência.  

Foi esta uma das poucas novidades trazidas pela audição da titular da pasta da Administração Interna na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias na manhã desta quarta-feira, a requerimento do PS, Chega, BE, PCP e Livre. O alinhamento de temas ia desde os casos Odair Moniz e Benformoso às condições operacionais e materiais das polícias, incluindo as bodycams (que a ministra anunciou poderem agora ser adquiridas por existir uma decisão judicial que o permite). 

Recusando fazer qualquer comentário sobre o caso Odair (o homem de 43 anos baleado pela PSP a 21 de outubro no bairro da Cova da Moura), por estar ainda em investigação, e nada adiantando, pelos mesmos motivos, sobre as detenções relacionadas com os distúrbios que abalaram a zona da capital na sequência dessa morte, Margarida Blasco reafirmou, sobre a operação de 19 de dezembro na Rua do Benformoso, o que tem sido a resposta-tipo do Governo face às críticas: que “ações como aquela sempre se fizeram” e que “a polícia se limitou a cumprir a lei em coordenação com o Ministério Público, que estava presente”

Insistentemente questionada pelos partidos de esquerda sobre a origem da alegada “perceção” ou “sensação de insegurança” que o governo tem atribuído aos cidadãos e para remédio da qual serviriam (ainda segundo o Executivo) ações como aquela, Margarida Blasco não soube responder.

Malgrado afirmar, numa primeira intervenção lida, que “a segurança interna, a segurança dos portugueses, não pertence à espuma dos dias, nem pode ser usada ao sabor das agendas políticas de cada partido”, a governante foi incapaz de apontar uma fonte para as repetidas afirmações quer do primeiro-ministro quer de outros governantes no sentido de que “as pessoas têm um sentimento de insegurança”.

Menos crime e menos apoios sociais: uma declaração por explicar

Referindo que o COMETLIS (Comando Metropolitano de Lisboa da PSP) aplica “vários fatores na sua análise entre os quais os fatores de perceção de insegurança a partir das queixas que são feitas”, e que “há o Global Index, há vários, poderei facultar, não encontro aqui agora”, Margarida Blasco acabou por anunciar que existe “um inquérito a correr há muito tempo na Inspeção Geral da Administração Interna, ‘Cartografia do Risco’; mais três meses e devo ter esse inquérito”. E prosseguiu: “É um estudo científico, que tem todos os fatores, vai desde a vitimação aos crimes que têm a ver com a sensação de insegurança que as pessoas têm, nomeadamente vai sempre tocar à violência doméstica, aos crimes pessoais.”

O DN pediu ao gabinete da ministra que esclarecesse em que consiste tal estudo, quem está encarregado de o fazer, nomeadamente no que respeita ao inquérito de vitimação/sentimento de segurança ou insegurança, e se os termos desse inquérito são compatíveis com o anterior efetuado (em 2008) no país sobre a mesma matéria, mas até ao fecho desta edição não houve resposta. 

Igualmente sem esclarecimento ficou outra afirmação da ministra, proferida durante a sua alocução inicial. Disse Blasco que “no nosso país já vivemos tempos em que o número de pessoas com contextos e condições sociais complexas e desafiantes era proporcionalmente maior. E isto acontecia numa realidade em que existiam muito menos apoios sociais. Nesses tempos, os níveis de criminalidade não eram maiores do que os que se registam hoje. Eram inferiores”.

Margarida Blasco fez esta declaração para procurar fundamentar a ideia de que “não são as condições sociais e as situações de desigualdade que alimentam a violência a que assistimos” (referia-se aos distúrbios ocorridos após a morte de Odair Moniz). O DN pediu ao ministério que esclarecesse a que “tempos” e a que indicadores de criminalidade aludia Blasco, mas, como já referido, ficou sem resposta.

Refira-se porém que no que respeita à criminalidade participada (que em 2023 contabilizou 371 995 queixas) tem existido um decréscimo sustentado nos últimos 20 anos. Em 2003 foram participados às polícias, de acordo com o Relatório de Segurança Interna referente a esse ano, 409 509 crimes. Nos anos seguintes assistiu-se a uma diminuição das participações (embora sempre acima do número registado em 2023), mas em 2008, ano no qual se registou o recorde das duas últimas décadas, sobem de novo, para 421 037, mantendo-se acima dos 400 mil até 2011. Esta subida é em parte explicada pelo facto de ter surgido um tipo criminal novo - o crime de violência doméstica - a partir de 2008; até hoje, este é um dos crimes com mais participações (em 2023, foram contabilizadas 26 041).

Margarida Blasco só poderá, assim, estar a referir-se a "tempos" mais remotos - aos anos 1990 e 1980 (partindo do princípio de que estava a pensar no Portugal democrático). Só que, como a juíza desembargadora não poderá ignorar, qualquer comparação entre a criminalidade participada nesses anos e agora tem de ter em conta o facto de os tipos criminais, assim como a perceção social do que é ou não aceitável, terem sofrido uma notável evolução. Já se deu o exemplo da violência doméstica, mas há muitos mais: o crime de abuso sexual de menores foi criado em 1995; até esse ano o crime de violação só admitia vítima feminina. Assim, aguarda-se com curiosidade a explicação que a ministra decerto virá a apresentar para as suas declarações.

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