Ao passar de cinco para sete anos o tempo necessário de posse do título de residência (para cidadãos da Comunidade de Língua Portuguesa - CPLP) para obter a nacionalidade, Portugal passa a integrar a lista de países mais restritivos nesta matéria. Este aumento não integrou o pedido do Partido Socialista ao Tribunal Constitucional (TC) para a análise preventiva de constitucionalidade. Ou seja, assim que a lei for aprovada e promulgada, este será o novo cenário do país.Ao analisar as dez nações europeias com maior número de imigrantes, Portugal afastar-se-á da Alemanha, França, Reino Unido, Países Baixos, Bélgica, Suécia e Irlanda, onde o tempo exigido aos imigrantes é de cinco anos. O país torna-se ainda mais restritivo se se levar em conta o facto de que os cidadãos não-CPLP vão precisar de dez anos de residência para obterem o direito. O país ficará mais próximo de Espanha, Itália e Áustria, onde a regra geral é de dez anos. Espanha tem exceções para brasileiros e cidadãos de origem hispânica, num quadro semelhante ao da CPLP, mas uma década permanece como padrão.Com as recentes mudanças à Lei da Nacionalidade, mesmo com o chumbo de algumas normas pelos juízes do Palácio Ratton esta semana, o objetivo do Governo ficará assegurado: que menos cidadãos estrangeiros tenham direito a ser portugueses. O DN sabe que a decisão do TC, proferida na segunda-feira, não foi vista com preocupação pelo Ministério da Presidência, porque não foi imposta nenhuma “linha vermelha”, nem houve qualquer alteração que mude o objetivo do Executivo de Luís Montenegro.Publicamente, esta avaliação foi analisada pelo deputado social-democrata António Rodrigues: “O que o TC considerou não conforme à Constituição não inviabiliza que tenhamos uma Lei da Nacionalidade. É bom que tenhamos em atenção que a Lei da Nacionalidade são dezenas e não apenas as quatro questões que foram apontadas por parte do TC”, disse o parlamentar, que é o principal porta-voz do partido no Parlamento sobre a matéria. “É, portanto, com tranquilidade que observamos esta decisão. Consideramos que o TC viabilizou questões essenciais e estruturais, como a contagem de prazos e a diferenciação entre cidadãos europeus e da CPLP em relação a cidadãos de Estados terceiros”, frisou. São precisamente estas “questões essenciais e estruturais” que têm o objetivo de diminuir o número de estrangeiros com direito à nacionalidade.Entre os pontos considerados essenciais pelo Governo está o aumento do tempo de moradia com título de residência para solicitação do pedido e a exclusão na lei do artigo que permite contabilizar o tempo de espera pela autorização de residência. Estes dois pontos, que constam da legislação ainda em vigor, resultam no aumento do número de pedidos, que atualmente ultrapassam os 700 mil. Segundo dados do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado (STRN), cerca de 30% destes processos referem-se à nacionalidade por tempo de residência em Portugal. Mas há várias outras regras alteradas que já se consideram certas, por não terem sido alvo de fiscalização do Tribunal Constitucional. É o caso do regime que permite aos descendentes de judeus sefarditas solicitarem a nacionalidade. Em Espanha, este regime foi temporário e vigorou de 2015 a 2019. Em Portugal, a legislação foi aprovada por unanimidade, incluindo a bancada do PSD, no ano de 2013. A regulamentação ocorreu em 2015, pelo Governo do social-democrata Passos Coelho. “Votaram todos a favor pela reparação histórica, mas, por causa da polémica envolvendo uma pessoa, alteram toda a lógica de nacionalidade e, agora, lembraram-se de revogar, porque muitas pessoas que pedem a nacionalidade hoje estão abrangidas por este artigo da lei”, analisa a jurista Isabel Comte, autora do livro Lei da Nacionalidade - Anotada e Comentada e que atua na consultoria Martins Castro. De acordo com dados oficiais do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), em 2022 foram feitos 124.663 pedidos, mais de 85.000 em 2023 e cerca de 86.000 no ano passado. Aproximadamente 30% do total de pedidos no IRN em análise atualmente referem-se a descendentes de judeus sefarditas.“No limite teremos muitas crianças apátridas”A advogada Inês Azevedo, que atua nesta matéria há quase 20 anos, diz ao DN que “choca” o facto de algumas normas não terem sido alvo de fiscalização do TC. A principal delas é que os bebés nascidos em Portugal só terão direito à nacionalidade portuguesa quando um dos progenitores completar cinco anos de residência legal no território. “Os imigrantes terão uma enorme dificuldade para registar os filhos e ainda vão ter de reagrupá-los pela AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo), que nunca dispõe de vagas”, afirma a advogada, recentemente contratada para criar e chefiar o departamento de migrações no escritório Morais e Leitão. Mas, para serem reagrupadas, as crianças vão precisar de passaporte, e a especialista recorda que nem todos os consulados em Portugal estão estruturados para esta procura.“Os bebés vão precisar de um passaporte para conseguirem, logo de imediato, pedir o título de residência. Depois, aguardar pela AIMA. Isto, conjugado com a alteração da lei dos estrangeiros, que veio restringir o reagrupamento familiar, coloca a situação das crianças numa posição de alta vulnerabilidade”, explica. “No limite, podemos ter muitas crianças apátridas”, acrescenta Inês Azevedo. A advogada frisa que se esta medida ocorre para barrar os casos de mães estrangeiras que vêm para Portugal apenas para terem os filhos, mas existem soluções que não passam por esta lei. “Se o IRN fosse mais exigente na análise da documentação dessas mulheres, se tivesse mais formação para o efeito, se todos os balcões tivessem a mesma checklist para consulta, talvez não tivéssemos discrepâncias na análise e bebés a serem registados de mães que não residem no país”, defende. “Assim, não haveria aproveitamento deste expediente ou de uma situação que poderia estar regulamentada sem recorrer a uma alteração legislativa como esta”, complementa.A jurista Isabel Comte partilha da mesma preocupação. “Eu gostava muito que o tribunal se tivesse pronunciado sobre as crianças. Vamos criar aqui uma geração de crianças que serão apátridas durante muito tempo da sua vida; é uma situação muito gravosa”, lamenta. De acordo com Comte, a situação não seria tão grave se os processos administrativos fossem eficazes, em especial no reagrupamento familiar, recentemente tornado mais restritivo. “Penso que, se tivéssemos um sistema da AIMA mais eficiente, não precisariam de ser tão ‘mauzinhos’, entre aspas, com a Lei da Nacionalidade”, vinca.Uma das consequências desta mudança será justamente o aumento do número de pedidos de nacionalidade para crianças apátridas, prevê. Além disso, analisa que este trecho da lei não teve em conta o princípio do superior interesse dos menores. É um facto que, em muitos países europeus, é necessário um tempo de residência da mãe ou do pai para obter a nacionalidade. No entanto, isso é conjugado com uma rede consular eficaz e agências de imigração sem restrição de atendimentos. Na Alemanha, por exemplo, e a Turquia tem 11 consulados gerais e serviços digitais, bem como o Reino Unido e França - só Portugal tem 13 consulados-gerais.No limite da Constituição?Este é o segundo chumbo do TC a leis criadas pelo atual Governo. A primeira foi a Lei dos Estrangeiros, em agosto. Para o advogado Diogo Santos Oliveira, cofundador da Orien, este chumbo era “relativamente expectável”, mesmo para o Governo. “Isto ficou claro já no diploma que seria tratado à parte, relativamente à alteração do Código Penal. Tanto é que eu acho que o próprio legislador teve alguma noção disso ao tentar propor um diploma à parte, para impedir que este, no geral, fosse chumbado por causa dessa norma em concreto”, analisa.Será o Executivo de Luís Montenegro a testar os limites da Constituição? Para o advogado, “é de se compreender a necessidade de cumprimento da regra e, acima de tudo, a existência de rigor na admissão de quaisquer cidadãos estrangeiros em Portugal e no cumprimento das normas correspondentes”. No entanto, acrescenta que a Constituição “acaba mesmo por ser esse limite” e que isso é importante. “O mais importante será assegurar que a Constituição continue a ser a nossa salvaguarda nestes tipos de normas, porque estas se baseiam numa leitura política do momento atual. A Constituição terá de ser sempre a trave mestra e um limite inviolável”, sublinha ao DN.amanda.lima@dn.pt.Lei da Nacionalidade. O que "não passou", o que "passou" e os próximos passos .PS acusa Governo de falta de cautela, após TC chumbar normas da Lei da Nacionalidade