Impasse na carreira de Gouveia e Melo na Armada. Marcelo e Cravinho em silêncio sobre nomeação

A crise política está a agravar o impasse que já se verificava desde que Marcelo travou a promoção do vice-almirante, que nas últimas semanas se tem desmultiplicado em conferências e entrevistas internacionais. No próximo dia 14 estará num dos programas de maior audiência nos EUA, o Sunday Morning, na CBS.
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Há cerca de uma semana Henrique Gouveia e Melo, ex-coordenador da task force (TF) da vacinação, almoçava com um amigo numa esplanada de Lisboa. Foram mais de meia dúzia de vezes interrompidos ou por alguém que passava e gritava "obrigada vice-almirante, por tudo o que fez por nós", ou para tirar uma selfie, ou ainda para lhe pedir autógrafos, segundo contou ao DN um dos oficiais que trabalhou com ele.

Numa conferência, dias depois, na Nova SBE, foi aplaudido de pé (tem sido sempre assim onde passa) e ainda esta semana foi uma espécie de rock star na Web Summit.

Em pose descontraída, conversou, riu e até deu conselhos a uma mãe que lhe perguntou como deveria "educar os seus três filhos para serem organizados e responsáveis" como ele.

"Tem de os matricular na escola da Marinha para terem uma carreira militar. E têm de ser normais, terem bons sentimentos sobre a comunidade, terem a esperança de fazer algo, não apenas por si mesmos, mas por toda a gente", sugeriu Gouveia e Melo, deixando a plateia ao rubro.

Desde que deixou a TF, no final do mês de setembro, que o vice-almirante se tem desdobrado em conferências, palestras e entrevistas a televisões e jornais estrangeiros, mostrando boa disposição e descontração, passando sempre uma mensagem de valorização do país e do Serviço Nacional de Saúde, em particular.

Nesta sexta-feira gravou uma entrevista num dos programas mais vistos nos EUA, o Sunday Morning na CBS, com mais de seis milhões de audiência, que irá para o ar a 14 de novembro.

Mas é bem expectável que essa imagem disfarce ou sirva para mitigar alguma preocupação, porque, na verdade, a sua vida profissional, que atingiria agora o topo com a sua nomeação para Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), está num ponto de imprevisibilidade, como nunca esperaria que estivesse nesta fase da sua carreira, que começou com 17 anos na Marinha.

O seu enorme capital de popularidade que somou interna e externamente por ter colocado Portugal no topo dos países do mundo com maior taxa de vacinados contra a covid-19 de nada lhe está a servir quando se vê enrolado em guerras políticas e das quais acaba por ser um dano colateral.

Primeiro pela polémica dos "equívocos" entre o ministro da Defesa Nacional e o Presidente da República, por causa do precipitado anúncio da exoneração do atual CEMA, Mendes Calado - vindo a público no pior momento, precisamente no dia em que o vice-almirante deixou as funções na TF - e agora pela atual crise política.

Está pois num impasse a nomeação de Gouveia e Melo para a Armada, noticiada como sendo a escolha do governo - e nunca desmentida - mas a verdade é que não chegou a ser formalizada em Conselho de Ministros, nem proposta ainda a Marcelo Rebelo de Sousa, que é quem nomeia, segundo o DN conseguiu apurar.

Questionado o gabinete de Marcelo, diz não querer responder por não ser este o momento. O mesmo silêncio vem do gabinete de João Gomes Cravinho, o qual nem sequer se pronuncia sobre os pedidos de esclarecimento enviados pelo DN sobre este processo, designadamente, se a proposta para a nomeação de Gouveia e Melo foi feita.

No inner circle de Gouveia e Melo, que tem mantido, garante uma fonte ao DN, "reserva absoluta sobre o que pensa" deste impasse, as opiniões dividem-se sobre qual será a ideia do vice-almirante, sendo sabido "que quase nunca reage de acordo com os padrões convencionais".

Há quem aposte "na calma e paciência, que são suas características, para esperar o tempo que for preciso pela decisão", e há quem acredite que "surpreenda e que bata com a porta, deixe a vida militar para trás e abrace outros projetos, ligados ou não à política na vertente participação cívica".

No entanto, há uma contagem decrescente a tiquetaquear: até dia 25 de dezembro terá de ser promovido um conjunto de oficiais generais da Armada, vice-almirantes, contra-almirantes e comodoros, que constituirão o topo da hierarquia da Marinha nos próximos anos, sendo por isso necessário que essa escolha tenha de ser do próximo CEMA - se for o caso, Gouveia e Melo, pois será a sua equipa dirigente.

Por isso, segundo apurou o DN, de acordo com o que tinha sido acertado com o governo, a sua nomeação teria de ser efetivada até ao final do presente mês de novembro.

Ainda assim, segundo fontes da Marinha, Mendes Calado, apesar de saber que está a prazo, tem feito algumas propostas de nomeações, mas que têm sido recusadas pelo ministro, como foi o caso da proposta do seu chefe de Gabinete para o posto de comandante naval e que esta semana voltou a insistir como um novo nome, desta vez o contra-almirante Nobre de Sousa.

Do lado dos apoiantes de Gouveia e Melo estas movimentações são acompanhadas com apreensão, até porque, como explicam, "caso sejam feitas nomeações nesta fase isso pode comprometer os projetos do vice-almirante, pois terá oficiais na sua estrutura de comando que não escolheu e podem não querer ter o empenho necessário para o apoiar nos seus planos futuros para a Marinha".

Para o general Carlos Henrique Chaves, ex-adjunto de Pedro Passos Coelho, "a primeira coisa a saber é se o Governo apresentou ao PR, como devia, as propostas de exoneração do CEMA atual e de nomeação do novo. Se o fez a responsabilidade de tudo o que possa vir a acontecer será única e exclusivamente do PR. Se não o fez será muito grave para o Governo manter esta situação de ter um Chefe Militar provisório sem fim à vista".

Este oficial general classifica o impasse vivido de "inacreditável, incrível e inaceitável para a Armada, para a Instituição Militar e para o normal funcionamento das Instituições envolvidas", frisando que "não havendo dúvidas que o indigitado merece a confiança do PR e do Governo e que este terminou a missão que o impediu há uns meses de ter sido nomeado e tomado posse do lugar é um absurdo incompreensível e inaceitável manter esta incrível situação". "Haverá por aí ciúmes ou invejas?", questiona.

Fonte da Defesa admite que "há em alguns setores militares e políticos, a sensação que Marcelo não estará entusiasmado com a nomeação de Gouveia e Melo para CEMA, o que pode ser entendido como influência do seu Chefe da Casa Militar, o vice-almirante Sousa Pereira, um oficial da Armada com ambições também ao cargo, e próximo do atual CEMA.

Estranham que Marcelo nunca tenha visitado a task force, nem louvado a equipa dos 38 militares que colocaram Portugal no topo do mundo no processo de vacinação. O DN questionou Belém sobre porque o Presidente nunca visitou a TF, mas o seu gabinete disse também que não ia responder.

Mas há também quem não veja intenção, nem justificação para Marcelo querer prejudicar Gouveia e Melo. "Estamos num período muito conturbado politicamente e é perfeitamente normal que a Marinha seja neste momento um assunto secundário", diz um general no ativo, que pediu anonimato.

Recorda até que "Marcelo e Gouveia e Melo têm pontos em comum, como a relação forte com Moçambique, onde as famílias de ambos foram muito próximas no tempo colonial".

Lembra ainda que "quando o Presidente da República elencou os equívocos no anúncio precipitado da exoneração de Mendes Calado, não deixou de lamentar que Gouveia e Melo tivesse sido arrastado para a confusão".

O Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas defendeu que Henrique Gouveia e Melo merecia "pela atuação na campanha da vacinação, o agradecimento de todos os portugueses", assinalando que "o seu mérito, a sua classe, a sua categoria dispensam o ser envolvido numa situação em que pudesse aparecer como que de atropelamento de pessoas ou de instituições".

Numa visita ao centro de vacinação de Alcabideche, a 22 de agosto, com Gouveia e Melo a seu lado, não deixou de o felicitar publicamente pelo "grande sucesso da vacinação".

Distinguido esta semana com o Prémio Nacional de Bioética, dedicou-o aos portugueses por não caírem na "tentação fácil da dúvida".

"Quando me vêm perguntar do estrangeiro qual foi o segredo [do processo de vacinação que coordenou], às vezes dá-me vontade de responder coisas muito esquisitas (...), dá vontade de responder se querem uma transfusão genética do gene português, se querem uma transfusão da cultura portuguesa, porque as pessoas pensam que há um truque qualquer", observou o vice-almirante.

O coordenador da extinta task force" afirmou que o sucesso do processo de vacinação se prendeu com o facto de os portugueses não caírem "na tentação fácil da dúvida" face à ética de se defenderem enquanto comunidade.

Já quanto a um eventual regresso da task force e, consequentemente, coordenação do processo de vacinação da 3.ª dose, Gouveia e Melo afirmou que "enquanto vestir o uniforme" manda o poder político democraticamente eleito. Na verdade, a vacinação da 3.ª dose já nem está a correr assim tão bem, como DN noticiou este sábado.

Perante uma plateia de mais de uma centena de pessoas que, no auditório da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto o aplaudiram de pé, Gouveia e Melo emocionou-se ao falar do filho médico e do futuro que se avizinha.

"Acho que temos futuro enquanto povo, uma consciência muito própria, uma língua e cultura muito viva, só temos de ter ambição alta, não ter medo de trabalhar e não nos deixarmos de submeter a nenhuma vergonha que nos querem impor de fora", disse, num tom de discurso que tem muito menos de militar, que de político.

Se estivesse em campanha, não poderia, provavelmente, ter alcançado mais popularidade e público mais entusiasmado que aquele que tem enchido as salas onde vai, nem teria tanta atenção dos órgãos de comunicação social internacionais, tornando-o no mais valioso ativo de promoção do país, das Forças Armadas e da Marinha em particular.

Dezenas de palestras a solo e intervenções em conferências nas mais variadas entidades. Faculdades, ordens profissionais, esta semana na Polícia Judiciária, no Sistema de Segurança Interna, onde foi falar aos diretores e comandantes das polícias e secretas, grupos e associações empresariais, bancos, empresas, como a Sonae, o International Club of Portugal, o Instituto Adelino Amaro da Costa, a Liga Portuguesa de Futebol, a Assembleia dos grupos parlamentares da NATO, o Círculo Eça de Queiroz, são alguns exemplos.

Foram mais de três dezenas as entrevistas ou artigos na imprensa, rádio e televisões estrangeiras que o DN conseguiu encontrar na internet, com a CBS, este domingo, a ser a cereja no topo do bolo. E na passada quinta-feira, Gouveia e Melo foi entrevistado para o Sunday Morning, um dos programas de maior audiência televisiva dos EUA, que vai para o ar no próximo domingo.

O trabalho do vice-almirante despertou interesse a quase todos os maiores jornais e canais de televisão nos EUA, como o New York Times, Washington Post, que o chama "o mais admirado czar da vacinação", a CNN, que abre a notícia com um Gouveia e Melo emocionado debaixo de aplausos no centro de vacinação de Alcabideche, dizendo que é o "herói nacional; na Alemanha; na Austria; no Brasil; no Canadá; em França; na Grécia ; na Índia ; no Japão; Luxemburgo ; no Reino Unido (ITV, The Week, UH News e Financial Times, cujo correspondente em Lisboa, Peter Wise, reporta também a ovação recebida pelo vice-almirante em Alcabideche, depois de ter sido "atacado" por negacionistas em Odivelas, escrevendo que tinha ganhado "o respeito global pelo seu papel" e recordando que antes de tomar posse, o processo de vacinação estava sob suspeita, com alegações casos de fraude e favorecimentos.

Por isso, cada vez mais gente questiona se a Marinha, onde é sabido que Gouveia e Melo tem alguns "inimigos" a quem não agrada o protagonismo do vice-almirante, será o destino certo para aproveitar todo este capital de popularidade.

Paciente e metódico, o submarinista não estava de todo habituado à superfície, muito menos aos holofotes. Já afirmou várias vezes que não quer ser nenhum "salvador" e que o país não precisa de militares na política. Mas há quem tenha ouvido em algumas das suas intervenções públicas em palestras algumas notas de discurso mais politizado, que podem denotar que nenhuma porta estará fechada.

Possivelmente tudo dependerá das decisões nas próximas semanas e da tal contagem decrescente das nomeações na Armada.

Marcelo Rebelo de Sousa terá a última palavra, como sublinha a DN uma fonte parlamentar da comissão de Defesa, que acredita que Gouveia e Melo não deixará as Força Armadas. "A chave está em Belém. Será a típica decisão que poderá ter de aguentar até ao próximo governo. O vice-almirante deve ter calma e paciência. Está na Marinha desde os 17 anos, ser CEMA é o sonho da vida dele. Se fosse para a política poderia descapitalizar a popularidade que tem", adverte.

O ex-CEMA na reforma, almirante Melo Gomes, pede a Henrique Gouveia e Melo que não se inquiete. "A superexposição mediática a que tem sido sujeito não o ajuda. Independentemente das qualidades que tem, deve ter calma. Atrás do tempo, outro tempo virá", conclui enigmaticamente.

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