Os casos que atormentam Montenegro em 10 meses de governo
Os negócios da empresa familiar de Luís Montenegro estão a atirar o primeiro-ministro para a maior crise política do seu governo, por causa das dúvidas que se levantam entre a atividade desta organização e a (possível) influência na ação governativa daí decorrente.
A declaração pública marcada para as 20.00 deste sábado, após um Conselho de Ministros extraordinário, será mais uma tentativa por parte do chefe do Executivo de esclarecer o que ficou por dizer após as suas declarações, na Assembleia da República, durante o debate da moção de censura ao Governo, promovida pelo Chega, precisamente por causa da atividade da Spinumviva.
Nessa altura , Montenegro expôs vários detalhes da empresa, criada em sociedade com a mulher e a quem vendeu a sua quota quando se tornou líder do PSD. Venda essa que, no entanto, poderá ser nula: uma vez que o casal está no regime geral de comunhão de adquiridos, na prática faz com que todos os rendimentos da sociedade mantêm-se na esfera familiar.
Ainda no debate na AR, e nos dias que se seguiram, o PS pela voz do seu secretário-geral, Pedro Nuno Santos, insistiu que o primeiro-ministro não forneceu os dados que eram, para os socialistas, os mais importantes - a lista de clientes da empresa. Só assim, defendiam, seria possível aferir se haveria o risco (e qual o seu nível) de confusão de negócios entre Estado e privado.
Nesta sexta-feira, e na sequência da notícia do jornal Expresso revelando que a sociedade Solverde, concessionária do Casino de Espinho (a mesma cidade de Luís Montenegro) paga uma avença mensal de 4500 euros à Spinumviva, foi conhecida a lista de clientes "fixos" desta empresa: Lopes Barata, Consultoria e Gestão, Lda; CLIP - Colégio Luso Internacional do Porto, SA; FERPINTA, SA; Solverde, SA; Radio Popular, SA..
Este não é, porém, o único caso a dar dores de cabeça a Luís Montenegro desde que o Governo tomou posse, a 4 de abril de 2024 - com a revisão da chamada "Lei dos solos" a espoletar, inclusivamente, uma pequena remodelação.
Os tremores da "Lei dos solos"
É da polémica aberta com o decreto que visa permitir que as câmaras municipais possam (mediante aprovação da respetiva Assembleia Municipal) reclassificar um terreno rústico para um terreno urbano -- no qual se possa construir habitação -- desde que os imóveis aí erigidos sejam a custos controlados que surge o caso Spinumviva.
Inicialmente, levantou-se a questão de que a empresa de Luís Montenegro teria interesses imobiliários -- uma das atividades secundárias inscritas nas Finanças para esta sociedade. E, como tal, havia quem questionasse se poderia a família do PM usufruir daquela alteração legislativa.
(Na Assembleia da República, Luís Montenegro explicou detalhadamente por que razão tal é impossível, visto que os imóveis familiares objeto da empresa, herança de família, não se integram no objeto da lei.)
Isto porque, ainda o decreto estava a ser preparado em Conselho de Ministros, foi noticiado que o então secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território, Hernâni Dias, criara duas sociedades imobiliárias com a mulher e os filhos já quando fazia parte do Executivo. Estas empresas trabalham ainda na construção civil e gestão de património.
O caso foi conhecido a 24 de janeiro e quatro dias depois o governante apresentava a sua demissão, ainda que se afirmasse de "consciência absolutamente tranquila".
Mas ainda que o caso de Hernâni Dias seja manifestamente diferente do de qualquer pessoa que tivesse já uma empresa no setor imobiliário antes ir para o Executivo, começaram a surgir nos media os governantes que detêm (ou detiveram) participações em sociedades deste tipo. Entre eles, duas ministras: a do Trabalho, Paula Ramalho, e da Justiça, Rita Alarcão Júdice. E apesar de não existirem formalmente incompatibilidades entre a ação governativa e esta sua atividade empresarial privada, é o suficiente para alguns comentadores (em especial da área da esquerda) levantarem suspeitas.
Quem também estava nesta situação era o próprio ministro da tutela, Castro Almeida, que anunciou a 20 de fevereiro ter vendido, em janeiro, a quota que detinha há 25 anos numa empresa imobiliária de forma a evitar qualquer associação com a alteração à lei dos solos.
A saída de Hernâni Dias espoletou a primeira (e única até agora) remodelação do Governo. Além do ex-secretário de Estado da Administração Local e do Território, foram também substituídos os secretários de Estado da Administração e Inovação Educativa, da Segurança Social, da Energia, da Adjunta e da Igualdade e a da Cultura. Mas ficou incólume aquela que seria a sua ministra mais "remodelável" à primeira vista: Ana Paula Martins.
Os dramas na Saúde
O mandato de Ana Paula Martins como Ministra da Saúde tem sido marcado por uma sucessão de polémicas. A mais recente é a possível responsabilidade do seu ministério nas falhas de socorro do INEM de novembro, que ocorreram durante o período de greve dos trabalhadores dos serviços de emergência médica.
O relatório da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) conhecido esta semana, aponta responsabilidades ao Governo, dando conta de que o pré-aviso da paralisação ficou "perdido" na tutela pelo que não se previram serviços mínimos. Na sequência, sucedem-se os pedidos de demissão da ministra, incluindo do líder do partido da oposição. Pedro Nuno Santos.
Mas esta ministra quase não teve um período de graças no Executivo, uma vez que assume aquela que será a mais complicada pasta do Executivo, dado o complicada situação que está o Serviço Nacional de Saúde, em plena fase de reestruturação no momento em que o novo Governo toma posse.
Tinha o Executivo 19 dias e Fernando Araújo, o diretor executivo do SNS (lugar criado pelo governo de António Costa para reformular toda a estrutura do Serviço Nacional de Saúde) demitia-se. A causa (oficial) que a sua equipa não fosse um obstáculo às medidas e políticas que a nova ministra quisesse pôr em prática.
A ministra viria posteriormente a dizer, no Parlamento, que só tivera conhecimento da intenção do médico de se demitir no próprio dia.
Para o seu lugar, a governante escolheria o cirurgião Gandra d'Almeida. Mas este esteve apenas sete meses no cargo. Após uma reportagem revelar que teria recebido 200 mil euros em acumulação de funções incompatíveis (estava ao serviço do INEM e foi operar de forma remunerada, recebendo através de uma empresa, quando o contrato que assinara apenas lhe permitia exercer pro bono), decidia afastar-se.
De resto, o verão não correu bem - o plano de saúde não estava pronto a tempo - e o inverno também está a correr com muitas dificuldades, com várias equipas das ULS (Unidades Locais de Saúde, que integram localmente a gestão de vários hospitais por região) a demitirem-se sucessivamente alegando falta de recursos humanos.
A falta de capacidade de resposta das Urgências, em especial na Grande Lisboa, tem sido, neste inverno, uma das maiores preocupações. O método mais caricato encontrado está a ser aplicado no Hospital Amadora-Sintra: o utente tem de telefonar para a linha Saúde24 antes de se dirigir a esta urgência. Mas quem tentar deslocar-se lá diretamente encontra a porta fechada e... um telefone. Apenas ligando primeiro (e se esta triagem telefónica o permitir) poderá aceder às urgências deste hospital.
Também as urgências de obstetrícia continuam a dar muitas dores de cabeça às grávidas, que têm, fim de semana a fim de semana, a ter de consultar os serviços para saber que serviço afinal de contas está aberto...
Os números errados da Educação
A 22 de novembro de 2024, ia já o primeiro período letivo bem lançado, vinha o ministro da Educação, Luís Montenegro dizia que este Governo tinha conseguido "reduzir 89% o número de alunos sem professor", o que seria, praticamente conseguir cumprir - e antecipadamente - o objetivo do Executivo, ainda antes da data prevista: chegar ao final do 1.º período com uma redução de 90% de estudantes sem docente.
Pequeno problema... os dados que foram dados ao líder do Governo pelo Ministério da Educação estavam errados. Isso mesmo acabou por reconhecer o ministro da tutela, Fernando Alexandre. "Lamento ter indicado aquele dado. Se tivesse o conhecimento que tenho hoje, não o teria feito", acabou por reconhecer, a 24 de novembro.
Era ter feito (bem) as contas...
Afinal os milhões vieram de onde?
Com um Parlamento tripartido e um Governo apoiado por partidos que, somados, têm apenas mais dois deputados do que o maior partido da oposição, a atividade governativa tem naturalmente passado por maiores percalços do que, noutras circunstâncias, seria necessário.
Um deles foi o das contas à "mais ambiciosa" redução de IRS anunciada no hemiciclo pelo ministro das Finanças, Miranda Sarmento, quando se discutia a revisão do imposto sobre pessoas singulares. O governo disse que ia cortar 1500 milhões de euros... e (quase) toda a gente foi atrás da conversa. Até o Expresso, que fez manchete com isso.
Só que não era nada disso. Honra lhe seja feita, no próprio plenário, o deputado da Iniciativa Liberal Bernardo Blanco - aparentemente mais habituado a contas - percebeu o que na realidade se passava: o valor anunciado era total, ou seja, incluía os cerca de 1300 milhões já previstos pelo governo do PS e "adicionava" um corte de 200 milhões.
As acusações de "embuste" e "falcatrua" ao governo sucederam-se da oposição. E até motivaram um duríssimo editorial do próprio Expresso, acusando o Executivo de os ter enganado. Parafraseando António Guterres, era ter feito as contas... que aparentemente só a IL soube fazer a tempo e horas só que ninguém os quis ouvir.