Por mais impressionantes que sejam os projetos apresentados quase diariamente no que respeita ao mercado do turismo da Arábia Saudita, o Reino ainda está longe de ser o destino tão atrativo que almeja o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, líder daquela nação.Responsável por implementar no país a Visão 2030, na qual prevê, em cinco anos, ter a Arábia Saudita como a nação mais visitada do mundo (o objetivo é alcançar os 150 milhões de turistas por ano), o que bin Salman vê, em parte do país - ou pelo menos na capital Riade e arredores - é que ainda existem obstáculos relevantes diante das suas intenções.Para o povo local, MBS, iniciais pelas quais é conhecido, é um ídolo nacional. "Sempre gostei de viajar, visitar outros países, conhecer o mundo. Desde 2019, foi o mundo que veio até mim", conta orgulhoso Ali Al-Aligi, guia turístico que, a exemplo da esmagadora maioria dos sauditas, é dono de uma hospitalidade rara. Ali, como gosta de ser chamado, acompanha-nos até o Bujairi Terrace, fascinante hub de cultura, história, lazer e compras inaugurado em 2022, num dos tours para o qual a reportagem do DN foi convidada pela organização do Tourise 2025 - inovadora conferência sobre turismo e investimento que decorreu na capital saudita na última semana.. O Bujairi Terrace fica na cidade histórica de Al-Diriyah, arredores de Riade e onde se encontra grande parte da história saudita, afinal, foi onde viveu a família Al Saud, fundadora do reino de qual bin Salman é herdeiro. O recinto foi reconstruído de forma a lembrar a arquitetura local do século XVIII e hoje acolhe um museu, restaurantes de fine dining e lojas de luxo e constitui um dos lugares mais impressionantes dos arredores da capital saudita, especialmente para um visitante ocidental. Deslocar-se para estes tours, no entanto, é um dos principais desafios em solo saudita. A maior cidade do país, que tem pressa para atingir os objetivos da Visão 2030, é um canteiro de obras por quase toda a sua extensão que, já agora, está longe de ser pequena. O trânsito é intenso, até mais infernal se comparável com o de outras metrópoles que convivem com o mesmo problema, como São Paulo ou Los Angeles, e faz com que pequenas deslocações se transformem em grande epopeias. Isso ainda numa cidade com largas avenidas, onde andar a pé não é propriamente a tarefa mais agradável, para não dizer inviável. Sair e entrar na cidade, especialmente com a quantidade de obras que decorrem também nos arredores da capital, é tarefa laboriosa quase em todos os horários, seja de manhã, à meia-noite, mas especialmente no final de tarde. Neste sentido, apesar da simpatia e hospitalidade dos sauditas, falta algum manejo e organização na receção aos visitantes, algo que é compreensível pela novidade que é o turismo no país, mas que deve ser corrigido para atingir as ambições locais de ser a principal referência de destino no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG)..O futuro da mobilidade por aquelas bandas torna-se até assustador quando nos chega a informação de que outro objetivo da Visão 2030, anunciada por bin Salman em 2016, é quase duplicar a população da capital para 15 milhões em cinco anos (atualmente são cerca de 7.800.000 habitantes em Riade). Embora os guias nos contem, entusiasmados, dos megalómanos empreendimentos que aparecem em cada esquina de Riade e se prolongam pelo país, alguns dos projetos inovadores anunciados pelo Ministério do Turismo enfrentam adversidades que colocam em xeque sua viabilidade. O principal deles é a The Line, a megacidade futurista de 170 km pensada como símbolo máximo do projeto Neom e apresentada por Mohammed bin Salman como um “arranha-céus horizontal” sem carros e com zero emissões. O plano, contudo, entrou em colapso: mudanças constantes de direção, custos astronómicos, desafios físicos quase insolúveis e a queda do preço do petróleo tornaram impossível concretizar a visão original..O petróleo, aliás, foi justamente o motivo da implementação da Visão 2030, projeto apresentado por bin Salman para diversificar a economia saudita especialmente através do turismo e do desporto. Apesar de, desde então, ter flexibilizado diversas regras e de certa forma "ocidentalizado" parte da cultura saudita de forma a tornar o país num ponto de encontro entre Ásia, África e Europa, ainda existem barreiras locais que tornarão obstáculos o turismo em massa e megaeventos como o Mundial de 2034.Se por um lado as mulheres ganharam outra liberdade (ou menos restrições) no país desde 2019, quando obtiveram permissão para conduzir, obter passaporte ou fumar em espaços públicos, entre outros, alguns "poréns" podem ser chocantes para quem faz turismo no país. Na maioria dos hotéis por que passámos em Riade, por exemplo, as áreas de piscina e de ginásio eram restritas à utilização por parte dos homens. Essa questão já é objeto de crítica por parte das visitantes, que questionam o facto de não poder haver um horário específico para utilização das mulheres nesses espaços. Num momento no qual resorts de luxo que dialogam entre o histórico e o futurismo são construídos ao redor do país ao mesmo tempo em que megaeventos são organizados, repensar e abrir mãos de mais restrições deverá ser um caminho inevitável para atrair mais turistas. .Por falar em megaeventos, em nove anos ou menos os sauditas também deverão tomar uma decisão sobre um tema com que outros países do golfo já tiveram que se deparar no processo de abertura que ainda é algo novo para a Arábia: o consumo do álcool. É possível que o Reino seja a nação mais restrita do mundo no que respeita ao acesso a bebidas alcóolicas. Cidades vizinhas que se desenvolveram com a mesma ambição de Riade de se tornarem referências do novo mundo e já se encontram em processo mais avançado nesse sentido - seja em estrutura ou legislação - tiveram que flexibilizar as leis locais para os estrangeiros. Aqui falamos de lugares como Abu Dhabi e Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, inspirações para a abertura da Arábia Saudita, ou Doha, no Qatar, país vizinho que em 2022, ao receber o Mundial da FIFA, autorizou bebidas alcóolicas em determinadas situações: algo que, de acordo com correspondentes internacionais que vivem na Arábia, é difícil de imaginar.Um pensamento a contrariar tendo em vista não só o Mundial de 2034, mas também os 150 milhões de visitantes que o Ministério Saudita colocou como meta para receber anualmente a partir de 2030, entre os quais alguns dificilmente abririam mão de uma boa taça de vinho ou champagne nos resorts paradisíacos de Al-Ula, no Mar Vermelho.A imagem perante o mundoÉ muito mais estrutural, contudo, o maior obstáculo que o Reino saudita enfrenta para se consolidar como um destino turístico: a própria imagem perante o mundo. Se a mobilidade já foi apontada como um dos grandes problemas nas principais cidades do país, seria óbvio que a construção de um metro na maior delas fosse algo que estivesse na lista de projetos do Governo. O metro de Riade tomou forma em 2024 e é um dos mais inovadores e práticos do mundo. Na última semana, no entanto, um relatório da Amnistia Internacional expôs uma face sensível desse avanço. A organização documentou uma década de abusos contra trabalhadores migrantes envolvidos na construção do metro da capital, justamente o projeto apresentado como símbolo maior da transformação urbana e da mobilidade saudita. As denúncias incluem pagamento de taxas de recrutamento ilegais ainda nos países de origem, jornadas superiores a 60 horas semanais e salários que, em muitos casos, não ultrapassavam dois dólares por hora. Os testemunhos recolhidos revelam condições extremamente duras, agravadas pelo calor intenso que domina os meses de verão no Reino, algo não muito distante da questão que o próprio Qatar enfrentou durante as construções dos estádios para o Mundial de 2022, no qual se estima que cerca de 650 pessoas oriundas de países como Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram durante o trabalho..De acordo com a denúncia da Amnistia Internacional, trabalhadores destes mesmos países, agora na Arábia, relataram turnos sob temperaturas acima dos 40 °C, pressão para cumprir horas extras mesmo em situações climaticamente perigosas e alojamentos sobrelotados. A persistência desse cenário, segundo a Amnistia, está diretamente ligada à manutenção prática do sistema kafala (árduo regime de monitorização) e à fraca fiscalização laboral, que permite que abusos se prolonguem mesmo em projetos supervisionados pelo Estado e executados por grandes empresas internacionais.Para a Amnistia Internacional, esses casos expõem contradições centrais da Visão 2030, especialmente no momento em que o país investe em megaprojetos e se posiciona para receber o Mundial de 2034. A organização defende que a Arábia Saudita precisa desmantelar o sistema de patrocínio kafala, aplicar normas laborais compatíveis com padrões internacionais e exigir que as empresas envolvidas adotem diligência rigorosa em direitos humanos. Sem avanços estruturais, argumenta o relatório, o modelo de desenvolvimento saudita continuará assentado numa mão de obra vulnerável e tratada como descartável.Apesar das denúncias, o lobby é grande para que bin Salman e sua Arábia conquistem o lugar de protagonismo no mundo: um dos homens mais poderosos do globo, Donald Trump, por exemplo, vê o país e o seu líder com bons olhos, assim como Cristiano Ronaldo, o mais famoso desportista da terra que jantou com a dupla na Casa Branca na últimas semana. O português é ainda o principal embaixador do turismo no país pelo qual é extremamente dedicado na tarefa de popularizar como destino..Líderes globais no ramo do turismo, ministros europeus e investidores são outros que fecham negócios com o PIF (Fundo de Investimento Público), para que os sauditas concretizem os objetivos. Isso sem contar os eventos como o já falado Mundial de 2034, mas também outras apostas locais que vão desde e-games ao golfe.Mesmo que evidências surjam para tentar evitar o contrário, é difícil de imaginar um futuro no qual, em diferentes frentes, a Arábia Saudita não seja um dos principais players do mundo globalizado.nuno.tibirica@dn.pt.Luxo, desporto e entretenimento: como a Arábia Saudita quer ser o destino número um do Médio Oriente.Arábia Saudita anuncia investimento de 113 mil milhões de dólares para acelerar o turismo