Participou há dias num debate na embaixada de França com Rui Tavares em que discutiram o universalismo. Num mundo cada vez mais fragmentado, há lugar para o universalismo?O mundo está fragmentado, mas também está unificado pela internet, de uma forma inédita na história da humanidade. Esta fragmentação é uma realidade, mas o mundo partilha uma linguagem comum, que não vem dos povos, mas que é uma produção de grandes empresas norte-americanas e chinesas, fundamentalmente. O que cria uma situação de grande preocupação pelo futuro das democracias, na medida em que esta linguagem tecnológica, que permite uma circulação sem controlo pelos cidadãos de conteúdos, ideias, saberes, opiniões, cria uma situação que é nova, pelo menos em relação aos dois últimos séculos, que é uma progressiva indiferença em relação ao que é verdade e falsidade. Os políticos sempre foram mentirosos, o que é normal, faz parte do exercício da conquista do poder e da justificação das decisões. Ser mentiroso, é normal. O que se está a passar hoje é completamente diferente, é a afirmação, pelo poder, de que a verdade não existe, que existem factos alternativos, pós-verdades. Mas a pós-verdade é indiferença perante a verdade, que é a situação que nós estamos a viver hoje. E não li nada que me permita pensar que a democracia representativa, que é a única garantia sólida das liberdades individuais e coletivas, possa sobreviver perante o poder da internet. Não tenho certeza nenhuma. Estas fake news, estes factos alternativos, tanto se encontram nas democracias, como os EUA de Donald Trump, como nos regimes autocráticos. Quem é o maior mestre da mentira? Devo dizer uma coisa para ser bem entendido: eu não sou nada anti-americano, não fui formado numa ideologia de progressismo anti-americano, pelo contrário, sou filho da Guerra Fria, do lado americano. Dito isso, não diria de forma automática que os EUA sejam uma democracia hoje. Acho que algumas das decisões do Supremo Tribunal, em particular sobre a limitação do poder dos juízes federais, bem como a pressão sobre Jimmy Kimmel, na televisão ABC da companhia Disney, são indícios de que o sistema americano já não é o modelo da democracia parlamentar funcional. E quero lembrar uma mensagem no X, então Twitter, de Donald Trump, durante a campanha em 2016, uma frase que muita gente não esqueceu, em que ele disse: “Podia estar no meio da 5ª Avenida e dar um tiro em alguém, que mesmo assim não perdia votos”. Esta frase pode ser entendida como fake news, como provocação, ou como bullshit comunicativo, mas também é uma ameaça. A posteriori, aquela é uma frase ameaçadora. Não é apenas uma joke. Para mim tem um duplo sentido. Não sei se o próprio Trump, na altura, tinha a noção de que podia ter aquela dimensão de promessa de brutalidade, mas agora, em 2025, esta frase tem uma cor diferente, uma leitura diferente. Voltando à sua pergunta, é evidente que as ditaduras, as grandes tiranias, sempre tiveram, na época contemporânea, aparelhos de propaganda absolutamente indiferentes à verdade, ou melhor dito, que contradiziam a verdade de forma voluntária, explícita, clara, etc. O período atual é diferente. É o que o filósofo norte-americano Harry Frankfurt definiu em 1986, se não me engano, como o discurso bullshit. O discurso bullshit não é o discurso da mentira, é o discurso da indiferença com a verdade, o que é pior. Porque significa, no fundo, que os políticos, os intelectuais, os produtores de opinião, podem falar, e falar, e fazer barulho, e aquele barulho não tem sentido nenhum, senão estar presente num espaço comunicativo. Esse é o fim, não é o meio. E o problema é que a consequência deste barulho geral, sem norte, que abandona a fronteira entre o que são verdades e o que são mentiras, que é trágica para futuro das democracias, é que no fim de contas os cidadãos não acreditam em nada. Há uma dúvida universal, geral. Há uma desconfiança em relação a tudo?Bom, nos nossos países vimos, por exemplo, o caso das campanhas contra a vacinação... E, como sabe, eu sou francês, e há dias o ex-presidente Nicolas Sarkozy foi condenado a uma pena única na história, são cinco anos de cadeia, com aplicação imediata apesar dos recursos. Como é que eu, como cidadão francês, recebo o que se passou? Não tenho nenhuma simpatia pela política nem pela pessoa de Sarkozy. De certeza que se ele tivesse sido inocentado, eu teria ficado escandalizado, porque é evidente que ele tem culpa. Mas, devo dizer que este resultado também é triste. É triste para o país. É triste em duas medidas. Primeiro, porque significa aumentar esta desconfiança dos cidadãos em relação aos políticos, o que é mau. Mas também levanta dúvidas sobre os juízes, porque estes decidiram que ele tinha que ir para a cadeia, apesar de entrar num ciclo de recursos, o que não era necessário. Porque é que se vai para a cadeia? Porque há um risco de fuga. O que é que vai fazer Sarkozy? Ir para a Arábia Saudita como o rei João Carlos? De certeza que não. Portanto, repito, acho que ele é culpado. Mas, de alguma forma, aquela pena é uma derrota coletiva do povo francês, da França como entidade política. Portanto acho normal que fosse condenado mas é triste que fosse condenado.Porque vai aumentar a desconfiança e alimentar os extremismos e a sua mensagem de que os políticos são todos corruptos?É uma arma para a extrema-direita. E para a extrema-esquerda também. Portanto é mau, globalmente, para a democracia.Voltando à ideia da mentira, já vimos que hoje a mentira ou uma verdade alternativa é comum em vários regimes. Com a diferença que nas democracias há contrapoderes, há fact-checking. Num país como a Rússia, isso não existe. Putin é o grande mestre dessa mentira?Na Rússia hoje há mais presos políticos do que no tempo do Brezhnev. Ou seja, no período de pacificação do socialismo soviético, a partir da segunda metade do governo do Khrushchev e durante todo o período de Brezhnev, a situação de repressão não era tão forte como é agora. A situação na Rússia é um regresso a níveis de repressão praticamente da época de Estaline. Portanto, no caso do regime do Putin, estamos perante uma pura ditadura. E as formas de repressão através da justiça inventadas pelo regime do Putin, na realidade, é uma máscara. Ou seja, a sua questão é para saber se os protagonistas da realidade contemporânea são os imperialistas, neo-imperialistas, ou seja, Xi Jinping, Putin e Trump. De facto, Trump, quando começa o seu segundo mandato, com o discurso sobre a Gronelândia, o Canadá e o Panamá, disse claramente que o seu esquema é um esquema imperialista clássico e que, no fundo, existem três impérios em expansão hoje no mundo, que são a China, em detrimento do Tibete, e talvez de Taiwan, a Rússia, em detrimento de repúblicas perdidas em 1991, e agora os Estados Unidos, com uma nova doutrina Monroe absurda. Não gosto de Maduro, mas está claro que o discurso de Trump sobre os ataques contra a Venezuela não tem nada a ver com uma reprovação moral da ditadura venezuelana, é uma coisa imperialista. .Temos portanto três protagonistas deste novo mundo - Trump, Xi e Putin. E a Europa no meio disso tudo?Bom, a Europa, no meio de tudo isto, tem problemas de antagonismos internos, tem o problema da sua dependência militar com os EUA, que não está resolvida, que temos alguns anos para resolver, o que significa também que os países europeus estejam dispostos a não depender da indústria militar americana, como é o caso da Polónia, por exemplo, ou de outros. A decisão da Dinamarca de já não comprar armas à indústria norte-americana, mas apenas à indústria europeia de defesa, acho que é importante. Outra coisa importante, que vale a pena dizer, é que uma das fraquezas da Europa é que tem duas vizinhanças difíceis. Uma é a Rússia, a outra é o Islão Mediterrânico. O nosso relacionamento com o Islão Mediterrânico é fundamental, da Turquia a Marrocos, não podemos pensar a Europa sem esta relação de vizinhança. O problema é que o Islão Mediterrânico está completamente desorganizado, está numa situação de caos moral, de caos político inacreditável. A Turquia de Erdogan é quase já uma ditadura, com o líder do principal partido da oposição na cadeia. E podemos fazer a lista: o Líbano já não é um país, a Síria também não, o Iraque também não, a Jordânia é uma bola de sabão que pode rebentar a qualquer momento, a Arábia Saudita é uma das piores ditaduras do mundo, em termos de violência política interna, o Egito é uma ditadura, a Líbia está em guerra civil, a Revolução na Tunisina acabou com um novo ditador, a Argélia, para mim, como francês, é um espetáculo desastroso, e resta Marrocos, um pouco corrupto, enfim, que mais ou menos se aguenta. Uma das fraquezas da Europa é que a sua vizinhança a sul está completamente desorganizada, e é muito complicado para nós, com as consequências em termos de migrações internacionais, etc. E acho que é importante não esquecer que essa é uma fonte de debilidade para a Europa também. A debilidade do mundo árabe-muçulmano, os turcos e os iranianos também, é uma debilidade para nós, porque o que se passa lá, o insucesso radical das revoluções árabes de 2011, de que não ficou praticamente nada, também é um problema para nós. E não apenas em termos de migrações, em geral, porque temos que gerir a relação, e digo isso porque estamos num país do sul da Europa. Talvez isto visto da Suécia, ou da Dinamarca, não pareça, mas para os portugueses, os espanhóis, os franceses, os italianos, os gregos, é um problema fundamental.Com esta vizinhança complicada, com uma guerra às suas portas, na Ucrânia, a Europa procura afirmar-se neste mundo. Concorda com a ideia que a UE reage melhor, funciona melhor, quando há uma crise?Sim, é verdade. No debate no Palácio de Santos falei de um político francês, que foi presidente da Comissão dos Assuntos Estrangeiros do Parlamento até 2022, que é um tipo super inteligente, Jean-Louis Bourlanges, um democrata cristão, de centro. Eu admiro-o muito, é um senhor idoso, e ele dizia uma coisa que eu acho que é absolutamente certa, é que depois da criação do euro, houve uma quase conjura de Gerhard Schröder, Tony Blair, José Maria Aznar, Durão Barroso, Silvio Berlusconi, Jacques Chirac, contra Jacques Delors. Delors ganhou um poder simbólico, e real, como presidente da Comissão Europeia, com a criação da moeda única, que eles viram como uma ameaça insuportável em relação à soberania nacional de cada um dos seus Estados. E esta conjura de todos os políticos, alguns socialistas, outros de centro, outros da direita, mas todos tinham um ponto comum, que era não permitir que a Comissão Europeia tivesse o poder que ela teve com a liderança de Jacques Delors. E, para pessoas da minha geração, acho que aqueles dirigentes foram traiçoeiros da grande esperança da construção europeia. Nisto estou completamente de acordo com Rui Tavares, estou completamente a favor de uma transferência máxima de competências, até soberanas, para a UE. E como francês, não tenho nenhum tabu sobre os lugares permanentes no Conselho de Segurança da ONU. Porque é que a França continua? Porque tem a bomba atómica, mas é a única razão que o justifica. Eu estou totalmente a favor de um aprofundamento federal da União Europeia, mas é uma coisa que não vou ver na minha vida. Não sei se os meus filhos, se os meus netos, verão, mas eu não.É irónico que nessa lista de líderes que eram céticos quanto aos poderes da Comissão Europeia, esteja Durão Barroso, que depois foi presidente da Comissão Europeia…Sim, mas como sabe, há uma frase portuguesa sobre Durão Barroso que adoro. Durão Barroso fala muitas línguas, como muitos portugueses educados, e a frase era muito engraçada, dizia, “Durão Barroso é o tipo que não diz nada em cinco línguas” [risos].Quando olhamos para os líderes da UE, Macron, Merz, Meloni, quem vê a liderar esta União? Eu diria que o que se passou nos últimos 20 anos é uma abertura. O Brexit é um caso, mas o facto de aquele triângulo, França, Alemanha e Itália, que é o fundador da União Europeia, e também, com o fim da presença britânica, são as três economias mais importantes, mas o que se passou, parece-me, nos últimos anos é um novo protagonismo de dois países, que são a Polónia e a Espanha. E digamos que uma Europa com este reequilíbrio a favor da parte ibérica, mediterrânea pela liderança espanhola. Apesar da debilidade do seu sistema político interno, Espanha como realidade económica geoestratégica, tem um protagonismo que não tinha há 20 anos. É a mesma coisa para a Polónia. E, portanto, este quinteto parece-me uma configuração mais interessante do que o triângulo fundacional. De qualquer modo, é impossível pensar no futuro baseando-se apenas no triângulo inicial. Portanto, não sei o que se vai passar com os escandinavos, com a passagem para a NATO de Suécia e Finlândia, como vai mudar as coisas. O que é que se vai passar com os Balcãs ocidentais? Eu acho que uma das vitórias geoestratégicas que a Europa poderia ganhar contra a Rússia no futuro seria a adesão da Sérvia, que hoje não é um país democrático, que hoje é um país claramente putinista, mas caso a juventude da Sérvia acabe com o sistema corrupto de Vucic e a sociedade Sérvia faça o caminho que a Ucrânia queria fazer para a Europa, seria um desastre para a Rússia. Porque em termos de solidariedade ortodoxa, da igreja ortodoxa, em termos geoestratégicos, o putinismo sérvio é uma ameaça séria para a Europa. Trabalhar em direção aos Balcãs Ocidentais, com riscos, porque todos sabemos que a integração da Bulgária e da Roménia não se fez sem desafios, mas se ficarem de fora, é pior. .“A divisão de amanhã na Ucrânia não será linguística ou étnica, será sobre o que cada um fez na guerra” .“A imprevisibilidade advém mais de Donald Trump do que de Putin e Xi”