Xi Jinping organizou há dias uma mega parada militar em Pequim, e convidou Putin e Kim, depois de ter recebido Modi na cimeira da Organização para a Cooperação de Xangai. O presidente chinês está a reforçar a posição de líder do que chama “eixo da conveniência sino-russo” ou “eixo dos revoltados”? Vou fazer aqui um ponto de princípio que o “eixo dos revoltados” advém de um artigo publicado na Foreign Policy que fala do “Axis of Upheaval”, que inclui, além da China e da Rússia, também o Irão e a Coreia do Norte. Voltando à centralidade da questão de Pequim e de Xi Jinping, nesta fase estamos num período de consolidação da liderança de Xi Jinping, quer na dimensão doméstica, quer na dimensão externa. Até agora Xi estava muito ocupado com questões de índole interna, gerir a questão económica, mas também a reunificação de Taiwan, que é entendida como questão doméstica. E não querendo, em termos internacionais, de forma clara, emergir com esse papel de grande poder principal: o papel de interlocutor - não gosto da palavra oponente, mas talvez de oponente dos EUA. Claro que a questão da guerra da Ucrânia foi disruptiva. Não só na Europa, mas também em termos internacionais, sendo uma crise multinível, como refiro no livro. Em certa medida acabou por arrastar todos os atores internacionais, que sofreram o impacto da mesma ou viram-se obrigados a tomar um posicionamento político. No caso de Xi, como parceiro e aliado de Moscovo, exigiu um pouco mais. Até agora Xi Jinping não tinha querido tomar uma posição clara, saindo daquela ambiguidade mais pró-Russa. Ainda assim, já foi considerado como um desafiador sistémico do Ocidente, dos EUA, como o facilitador do esforço de guerra russo, e isso tudo estava a empurrá-lo para a tomada de uma posição clara, que ficou espelhada este ano com a famosa declaração de que a Rússia não pode sair derrotada desta guerra. E acabou por condicionar a posição dos EUA de Trump, que estava a querer obrigar os beligerantes a uma paz rápida, sem acautelar que é uma negociação muito complexa, é um conflito com muitas dimensões. O futuro da Ucrânia terá implicações, na relação bilateral com Moscovo, mas também na nova arquitetura de segurança europeia, e em termos internacionais. Portanto, respondendo à sua questão, com a parada militar, tendo sido anfitrião de uma importante cimeira da Organização para a Cooperação de Xangai, a liderança internacional de Xi Jinping consolidou-se em três dimensões. No seu posicionamento enquanto grande poder no sistema internacional, passando essa mensagem clara a Trump e à administração norte-americana; depois, a dimensão de parcerias do Sul Global e de países que não se reveem na ordem outrora liderada pelos EUA, a ordem liberal internacional, que do meu ponto de vista, e de outros académicos, está em declínio. E finalmente, em termos internos, era importante para Xi Jinping demonstrar todo o prestígio internacional da China, para consolidar a sua liderança.Xi quer devolver à China o lugar de primeira potência mundial que já foi dela. Esse plano não ficará completo, como dizia, sem a reunificação com Taiwan?Não tenho a menor dúvida, Xi Jinping tem muitos iniciativas com vista a projetar e consolidar o poder da China, na dimensão interna e na dimensão externa. Mas a reunificação de Taiwan está claramente na mente, enquanto propósito e objetivo estratégico de Xi, para ficar nos anais da história chinesa e mundial. Eu costumo dizer, por graça, nas minhas aulas, que já há um cronograma: 2049, ano do centenário da República Popular da China, será a data limite para acontecer. Idealmente de forma pacífica e não por via militar. Creio que esse o maior temor, quer de Taipé, quer do Ocidente e de lideranças, como a norte-americana, que tem estado ocupada com outras dinâmicas de conflictualidade, como sabemos.A Ordem Tripolar que dá nome ao seu livro nasceu com o regresso de Trump ao poder nos EUA? Podemos dizer isso?Eu começo exatamente a minha proposta de reflexão com a dimensão desta ordem tripolar, destes três grandes poderes. Putin tentou ser o caráter mais disruptivo, que contesta, que se revolta contra a liderança dos EUA em termos internacionais. Depois temos Xi Jinping, que emerge como o garante desse eixo da conveniência, muito alargado, que contesta a pretensão dos EUA, com os seus parceiros ocidentais, de impor as suas regras e, segundo os próprios, uma espécie de neoimperialismo, neopaternalismo, sobretudo em relação a continentes como o africano. Finalmente, temos o regresso de Donald Trump à Casa Branca, que muda tudo. No fundo, encerra este ciclo. Deixa uma Europa orfã de uma relação com os EUA, o principal parceiro e aliado, quer na dimensão de defesa, quer na dimensão política ou diplomática, e gera-se um caos inicial, sem saber quem pode avançar para ocupar esse vazio. Depois, o que houve foi uma falta de leitura política, de perceber a liderança de Vladimir Putin e a maneira como consegue capitalizar, quer com as fragilidades do Ocidente, quer com este fascínio que Trump parece ter por ele. Putin acaba por ter uma espécie de ascendente que se materializa nesta gestão dificultada das negociações diretas com a Ucrânia, que aparece fragilizada, obrigada, até pela administração Trump, a ceder a muitas das suas exigências. Estamos num momento difícil, em que se fala em cedência territorial e isso é o oposto das pretensões ucranianas sob a liderança de Zelensky. O contraponto aqui é que nesta gestão de lideranças de grandes poderes, neste fascínio que Trump parece ter por Putin, não contava que Xi Jinping agora viesse afirmar a sua posição. Xi até agora contava com o parceiro russo, com a proximidade do amigo fiel Putin, mas não tinha querido posicionar-se em termos internacionais. E a semana que passou é a consolidação de que a China, sob a liderança de Xi Jinping, quer ser reconhecida inter pares como um grande poder. Continua a ser um importante membro permanente do Conselho de Segurança, está a criar, há muito, uma ordem alternativa ao Ocidente sob a liderança dos EUA, cria um multilateralismo alternativo ao Ocidental, com os BRICS, a Organização para a Cooperação de Xangai, com parcerias importantes com a Índia, e isto tende a congregar-se para emergir uma espécie de ordem tripolar. Tudo pode mudar de forma abrupta. Mas, neste momento, temos uma China a querer consolidar a sua posição internacional, uma Rússia que, apesar da fragilidade económica, não quer prescindir de ser reconhecida como grande poder. E temos Trump a querer fazer reemergir os EUA como um grande poder, não apenas na sua esfera habitual euroatlântica, mas também em termos internacionais. Porque havia, até há pouco tempo, um retraimento norte-americano em algumas regiões do mundo, como o Medio Oriente. Desde Obama que os EUA recentraram o foco no Indo-Pacífico..Ordem TripolarSónia SénicaPlaneta 224 páginas .Trump quer fazer a América Grande outra Vez mas os EUA têm cada vez mais dificuldade em manter a liderança do Ocidente. Há como inverter o ciclo?Enquanto académica, a futurologia é muito arriscada, mas olhando para a realidade internacional, para o posicionamento destes três atores e das suas lideranças, estamos num momento em certa medida imprevisível. O curioso é que a imprevisibilidade advém mais de Donald Trump do que de Putin e Xi. Tento explicar no livro que ao contrário do que é muitas vezes argumentado, há uma certa previsibilidade em Putin, consegue perceber-se o pensamento do Kremlin e as suas pretensões, seja no espaço pós-soviético, seja em termos internacionais. Xi Jinping agora também deixa claro que quer assumir a China como grande poder e ser reconhecido em termos internacionais. Putin e Xi são mais previsíveis, Trump talvez mais disruptivo. Porquê? Porque desde o princípio que cria uma tensão não esperada, sobretudo com parceiros e aliados. A maneira de gerir de forma unilateral os dossiês da Ucrânia, mas também do Médio Oriente, muitas vezes sem articulação com os parceiros, sem consultar as partes, impondo uma política externa muito mais assertiva e transacional. Querendo sempre retirar algum proveito no que advoga ser a defesa do interesse norte-americano, o famoso Make America Great Again. Portanto, eu diria que nos próximos anos teremos uma gestão internacional destes três grandes poderes, com os seus parceiros, caso esses parceiros, no caso europeu, consigam afirmar a sua importância. No caso do eixo da conveniência sino-russo, China e Rússia perceberam que era importante emergir, mas com apoio internacional, no quadro do que Lavrov chama a emergência da nova maioria. Em que o Ocidente, os EUA, estão reduzidos a menos votos na ONU, menos capacidade de projeção de influência em termos internacionais e regionais.Que papel há para a Europa nesse mundo?Estamos numa lógica de grandes poderes. O problema da Europa é que está numa posição muito difícil. Talvez tão ou mais difícil do que a própria Ucrânia. Porque está muito secundarizada, está subestimada, e as suas fragilidades que outrora eram enaltecidas como mais valias - o facto de serem democracias liberais ocidentais com alternância política, de serem países que se preocupam com a dimensão social, política, económica, e não com a dimensão securitária - retirou-lhes uma preocupação, que é essa mudança em termos internacionais, de voltarmos a recentrar o mundo numa lógica de poder. E a Europa não conseguiu ainda emergir e projetar esse poder. Estamos a falar de poder político, mas materializado em poder militar. Por isso é que temos os que advogam mais autonomia estratégica, mas que terá que ser explicada às sociedades civis europeias, porque teremos de investir mais em defesa e segurança, em armamento, para nos defendermos, e não na justiça, na educação, na saúde, e isto pesa nos votos. Há uma espécie de disputa entre a França de Macron, a Alemanha de Merz, o Reino Unido de Starmer na tentativa de ocupar a posição de liderança europeia. E não perceberam que talvez fosse mais útil a coesão, nem que seja para transparecer essa projeção de força para fora. Putin, Trump, Xi - três líderes na casa dos 70. Apesar de Xi e Putin terem comentado em Pequim que “os 70 são os novos 40” e ambos terem arranjado forma de ficar no poder mais longos anos, uma renovação parece não estar à vista nem na China nem da Rússia? Nós partimos sempre dessa premissa de que são eles a impor a sua liderança ao seu país e ao seu povo. No caso da Rússia, é evidente que este Putinismo, esta Rússia de Putin, acaba por ser comungada por muitos cidadãos russos. Muitas vezes estas lideranças são vistas como tendo um caráter paternalista. No caso de Putin brincam a dizer que é o novo czar da Rússia, no caso de Xi falam do novo imperador chinês. Esta é uma imagem projetada politicamente, essa dimensão de liderança forte, centralizada, personalizada - masculina -, de homens fortes que conseguem proteger o seu país em momentos de desafios e ameaças. O caso de Trump é o mais curioso. Trump tem o fascínio de ser o líder capaz de devolver a dimensão de grandiosidade dos EUA, de excecionalismo americano. Também se fala que alguns apoiantes consideram propor uma mudança constitucional para permitir um novo mandato trumpiano. Alerta para os perigos do fim da liderança ocidental poder abrir portas a uma era em que um eixo de regimes autocráticos ou iliberais pode tornar-se dominante. Estamos a caminhar para aí?Eu diria que já estamos a assistir em certa medida a alguns desses eventos. Esta ordem internacional está a tender para uma concertação de grandes poderes, para o regresso da importância dos Estados, dando menos palco ao multilateralismo onde países considerados de menor poder acabavam por ter voz. E pode levar a que qualquer liderança política considere que pode alavancar os seus objetivos, o que considera a defesa do interesse nacional, através de pretensões de índole militarizada. É a isso que estamos a assistir. A questão do Irão querer ter capacidade militar nuclear, pende para essa questão. Teerão quer ser um ator regional importante, mas colidiu com os objetivos dos EUA para o Médio Oriente. Temos lideranças políticas que estão neste limbo. É o caso da Índia de Narendra Modi, que ora se articula com o lado ocidental, ora pende para o lado sino-russo e isso mostra autonomia estratégica. Temos o caso da Turquia de Erdogan, que não só consolida o seu poder interno, conseguiu agora apaziguar a questão do PKK, e volta a virar-se para a política externa. E não exclui a possibilidade, já que a UE não permitiu a sua adesão, virar-se para outras organizações, sendo um parceiro da NATO e aliado dos EUA nessa dimensão.