Eça de Queiroz. De Port Said a Suez

Foi um jovem Eça de Queiroz que, desafiado pelo seu amigo Eduardo Coelho, fundador do DN, escreveu quatro textos sobre a inauguração do canal de Suez a 16 de novembro de 1869, à qual assistiu.
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O DN volta a publicar por ocasião dos 175 anos do nascimento do escritor as quatro crónicas que Eça de Queiroz escreveu para o jornal, entre os dias 18 e 21 de janeiro de 1870. A pedido de Eduardo Coelho, o então jovem escritor acedeu "com a mais perfeita vontade" a contar "descarnadamente" o que lhe ficou na memória "daqueles dias confusos". As reportagens, publicadas ao longo de quatro dias em janeiro de 1870, já com o romancista de regresso a Portugal, são iniciadas com "Sr. Redator", como se Eça estivesse a escrever pessoalmente ao diretor do jornal.

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Primeiro dia. 18 de janeiro de 1870

Sr. Redator

Acedo com a mais perfeita vontade ao seu desejo de ter a história real das festas de Suez. Conto-lhe, porém, simplesmente e descarnadamente, o que me ficou em memória daqueles dias confusos e cheios de factos: tanto mais que as festas de Suez estão para mim entre duas recordações - o Cairo e Jerusalém: estão abafadas, escurecidas por estas duas luminosas e poderosas impressões: estão como pode estar um desenho linear a lápis, entre uma tela resplandecente de Decamps, o pintor do Alcorão, e uma tela mortuária de Delaroche, o pintor do Evangelho.

Talvez em breve eu diga o que é o Cairo e o que é Jerusalém na sua crua e positiva realidade, se Deus consentir que eu escreva o que vi na terra dos seus profetas. Hoje, faço-lhe apenas a narração trivial, o relatório chato das festas de Port Said, Ismailia e Suez.

Tínhamos voltado, eu e o meu companheiro, o conde de Resende, de uma excursão às pirâmides de Gizé, aos templos de Sacara e às ruínas de Mênfis, quando no Cairo soubemos que estavam na baía de Alexandria os navios do quediva que deviam levar-nos a Port Said e Suez.

Vínhamos do sossego do deserto e das ruínas, e logo na gare do Cairo, ao partir para Alexandria, começámos a envolver-nos, bem a custo, naquela confusão irritante que foi o maior elemento de todas as festas de Suez. A previdente penetração da polícia egípcia tinha esquecido que trezentos convidados, ainda que não tenham a corpulência tradicional dos paxás e dos vizires, não podem caber em vinte lugares de vagões, estreitos como bancos de réus. Por isso, em volta das carruagens havia uma multidão tão ávida como no saque de uma cidade.

Jonas Ali, o nosso drogman, um núbio, intrigou, conspirou, clamou e alcançou-nos numa carruagem de segunda classe, miseravelmente desmoronada, dois lugares empoeirados.

Confesso que foi com o maior tédio que comecei a atravessar a magnífica natureza do Delta. Demais, os caminhos-de-ferro egípcios não têm uma velocidade fixa. Vão aos caprichos do maquinista, que, de vez em quando, para a máquina, desce, acende o cachimbo, ri com algum velho conhecimento de estrada, sorve minuciosamente o seu café, torna a subir bocejando, e faz partir distraidamente o trem. Nesse dia, porém, o ar estava nublado, chuvoso; o maquinista levou-nos rapidamente a Alexandria. Na baía esperavam o Marsh, o Fayoum, o Behera, navios do paxá. O embarque fez-se com a confusão habitual, complicada com os embaraços de um mar agitado: os barcos iam cheios de gente; uns de pé, outros sentados na borda, roçando pela água, outros gravemente equilibrados sobre a acumulação pitoresca das bagagens: ria-se, fulminava-se a organização e a polícia das festas, gritava-se um pouco quando os barcos pesados oscilavam mais inquietadoramente. Nós subimos para o Fayoum, que devia levantar ferro nessa tarde, apesar do tempo contrário e dos mares que nós víamos partir de longe na linha de rochedos que precede a baía de Alexandria. E ao outro dia, por uma bela luz da manhã, entrávamos em Port Said por entre os dois grandes molhes que se adiantam paralelamente pelo mar, feitos de poderosos blocos de pedra solta. Port Said é uma cidade improvisada no deserto. É uma cidade de indústria e de operários: isto dá-lhe uma especialidade de fisionomia: estaleiros, forjas, serralharias, armazéns de materiais, aparelhos destilatórios. Tal é Port Said. A sua construção foi determinada pela necessidade de haver um vasto porto, que fosse uma estação de navios, à entrada do canal, e primitivamente, para que engenheiros, maquinistas, diretores de obras, tivessem um centro. Isto dá-lhe um aspeto de cidade provisória. Como havia espaço, as ruas são largas como praças e compridas como avenidas: as casas são baixas, de materiais ligeiros: sente-se a construção rápida e a incerteza da duração. Ali em Port Said, apesar dos seus doze mil habitantes, não há ainda um viver definitivo e regular. Não há estabelecimentos feitos na esperança da duração, não há comércios fixamente estabelecidos: tem tudo o aspeto de uma feira, que hoje ganha e prospera e amanhã se levanta e se dispersa. E isto porque, apesar da confiança de toda a população na prosperidade do canal, nenhuma profissão, nenhum comércio se quer arriscar a estabelecer-se de um modo definitivo, correndo o perigo de ver aquele começo de cidade estiolar-se e morrer miseravelmente. Pois tal seria a sorte de Port Said, bem como de Ismailia, se o canal fosse uma inutilidade, abandonada do comércio e da navegação.

A sua construção ressente-se pois destas circunstâncias: nem edifícios, nem monumentos, nem construções sólidas e sérias: tudo é ligeiro, barato, provisório. A igreja católica é como uma grande barraca: vê-se o céu azul através do seu teto feito de grandes traves mal unidas. Tudo isto dá a Port Said um aspeto triste. No fim das festas, tempo depois, quando ali tornei a passar, em viagem para Jerusalém, pareceu-me pela apatia da vida, pelo silêncio, que o deserto começava de novo a aparecer por entre aquela fraca aparência de cidade.

Mas naquele dia 17, da inauguração, Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos tiros dos canhões e dos hurras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspeto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia das festas. Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os iates dos príncipes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a Aigle, com a imperatriz, o Mamondeh com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José até ao quediva árabe Abd el-Kader. As salvas faziam o ar sonoro. Em todos os navios, empavesados e cheios de pavilhões, a marinhagem, perfilada nas vergas, saudava com vastos hurras. De todos os tombadilhos vinha o vivo ruído das músicas militares. O azul da baía era riscado em todos os sentidos pelos escaleres, a remos, a vapor, à vela: almirantes com os seus pavilhões, oficialidades todas resplandecentes de uniformes, gordos funcionários turcos afadigados e apopléticos, viajantes com os chapéus cobertos de véus e couffins, cruzavam-se ruidosamente por entre os grandes navios ancorados; as barcas decrépitas dos árabes, apinhadas de turbantes, abriam as suas largas velas riscadas de azul. Sobre tudo isto o céu do Egito, de uma cor, de uma profundidade infinita. À noite a cidade iluminava-se, enchia-se de músicas, de festas populares. As esquadras tinham as suas armações e cordagens cobertas de fios de luz. Durante toda a noite os fogos-de-artifício, numa grande linha de terra, faziam, sobre o céu escuro, grande bordado luminoso.

Na baía havia um viver completo, como numa cidade: bailes a bordo dos navios, jantares, visitas trocadas, receções, passeios a remo, serenatas nos escaleres. De tudo isto saía uma luz, um ruído, um fluido de vida poderosamente original. Havia em Port Said um café-cantante, memorável pela excentricidade da sua alegria: estava tão cheio de gente, que era necessário fumar, beber, ouvir, de pé, sufocado, hirto. Quando no palco aparecia a atriz para dizer a sua canção, as mil vozes daquela imensa multidão, acompanhadas do tinir cadenciado dos copos, do bater dos pés, dos assobios, dos uivos, dos gritos, começavam repetindo, com estrondo assombroso, a canção conhecida da atriz. Era bestial e extraordinário.

No dia seguinte ao da chegada, descemos todos a terra para a cerimónia da inauguração. Do lado oposto aos molhes, para além da cidade, tinham-se construído três pavilhões, estrados tapetados e blasonados, sobre a areia húmida da espuma do mar. Era nesse lugar a celebração religiosa: os ulemás e os padres cristãos deviam abençoar e consagrar nos seus ritos o canal de Suez. Um grande cortejo de convidados precedido dos príncipes, entre os quais sobressaía a pensativa e bela figura de Abd el-Kader, dirigiu-se para esse lugar, entre duas fileiras de soldados egípcios, de arcos, de bandeiras, e de árabes que abriam grandes olhos. No pavilhão principal, de cores triunfantes, colocavam-se os convidados reais e imperiais e os mais que podiam caber; no outro pavilhão estavam os ulemás maometanos; no terceiro os padres latinos, gregos, arménios e coptas.

Quando tudo estava colocado e o grande rumor da chegada e da confusão se acalmou, os ulemás prostraram-se, voltados para o lado de Meca, os padres cristãos começaram a missa, a artilharia salvou nas esquadras. Entretanto a multidão apinhava-se sobre a areia húmida em volta dos estrados; a grossa figura vermelha do quediva estava radiosa, a imperatriz tinha um ar de compunção discreta, Mr. De Lesseps tinha o seu belo e inteligente sorriso; em redor e até ao fundo horizonte, o mar sereno reluzia. Quando a artilharia findou, Mr. Bauer adiantou-se à beira do estrado e falou. Mr. Bauer é um homem baixo, pálido, de cara feminina e larga, cabelos pendentes em anéis sobre os ombros, asseado, bordado, perfumado, delicado, e com uma voz assombrosa. O que ele dizia eram palavras de fraternidade entre o Oriente e o Ocidente, esperanças de humanidade mais profunda, unida por aquela ligação marítima, palavras afáveis aos convidados reais, e recordações piedosas pelos corajosos trabalhadores, que durante aquela obra de luta morreram obscuramente. Quando ele disse o nome de Mr. De Lesseps, toda a imensa multidão bateu as palmas. Mr. Bauer findou, e o cortejo voltou à praia e dispersou-se pelos navios. Durante toda a noite os fogos-de-artifício, os clamores alegres da cidade, o ruído dos escaleres, as músicas, encheram a baía de vida.

Ao outro dia os navios começaram a mover-se lentamente, voltando a proa para um ponto da baía de Port Said, onde se erguiam, como os dois umbrais de uma porta, dois obeliscos de madeira vermelhos. Era a entrada do canal de Suez. Entretanto corriam por todos os navios estranhos boatos.

Segundo dia. 19 de janeiro de 1870

Dizia-se que o Latife, pequeno vapor que na véspera tinha partido como explorador, encalhara; que os navios reais e imperais, os vapores egípcios com os convidados, não podiam passar na estreiteza do canal, e que apesar de alijados da sua artilharia, e sem lastro, pediam mais água do que o canal tinha de profundidade; que o vice-rei e Mr. De Lesseps tinham partido para ver o Latife; que se resolvera, em último caso, fazê-lo saltar; que as festas cessavam, e que tudo regressava a Alexandria, como no tempo das derrotas de Actium.

Em Port Said e a bordo dos navios havia inquietações: os comissários, as oficialidades, os engenheiros, interrogados, calavam-se discretamente, esperavam ordens de Ismailia - e receavam. Com efeito o Latife estava encalhado. Isto, em primeiro lugar, demonstrava a impraticabilidade do canal - o Latife é um pequeno vapor, estreito, calando pouco, quase um rebocador; além disso, era um obstáculo material, brutal, a que os outros navios fizessem uma tentativa corajosa.

Dizia-se que o vice-rei estava desolado, que Mr. De Lesseps perdera a sua habitual e impassível firmeza de espírito, e que se telegrafara para Paris anunciando o resultado desastroso. Realmente, depois de dez anos de tantos esforços e tantas lutas, tantos combates com o deserto e tantos combates com a intriga, depois de tantos milhões sorvidos pelas areias, de tantas vidas aniquiladas, de tantos créditos fundados, de tantas festas anunciadas, depois das bênçãos de Mr. Bauer e das ovações a Mr. De Lesseps, era doloroso ver tudo aquilo findar repentina e vergonhosamente, ver-se que num canal feito para a navegação não cabiam navios, que aquilo era uma obra ridiculamente grandiosa, e que em lugar de tudo terminar em triunfos, tudo terminava em gargalhadas! Estivemos nestas incertezas parte do dia. Esperava-se o vice-rei, que fora num pequeno escaler ao canal ver o desastre do Latife. Enfim, pelo começo da tarde, os navios começaram a mover-se, as inquietações findavam, o vice-rei voltava, o Latife estava desencalhado, a Aigle seguia, já a obra de Mr. De Lesseps começava a justificar-se.

O Fayoum, então, penetrou corajosamente no canal. O Fayoum era o maior navio do cortejo. Caminhava-se com grande cuidado; no meio do canal bandeiras brancas marcavam precisamente a linha que deviam seguir os navios, para acharem a necessária profundidade de água. Conservavam-se minuciosamente em distância; ia-se devagar, sondando; havia mais cuidados e escrúpulos receosos do que na navegação de um labirinto de rochas. Na realidade, o canal aparecia-nos estreito, baixo, e a cada momento receávamos ver a proa do navio ir atufar-se nas areias das margens elevadas. O canal, ao sair de Port Said, atravessa o Menzaleh, antigo lago lamacento. Nós víamos de ambos os lados do canal reluzir ao sol aquela água morta, pesada, esverdeada.

Foi esta a primeira grande dificuldade dos trabalhos. Era necessário, no meio daquele largo lodaçal, abrir um canal navegável e construir margens. As dificuldades cresciam com a insalubridade daqueles lugares miasmáticos. Felizmente, ao violento sol do Egito, o lodo extraído e deposto, a fim de formar as margens, secava rapidamente. Houve ali esforços heroicos. Os operários da Europa desertavam daquele trabalho perigoso. Era necessário empregar os habitantes das margens daquele lago de lamas: estes entravam até à cintura na água espessa, tiravam com as mãos a maior quantidade de lodo possível, apertavam-no ao calor do peito até secar, e iam-no enfileirando aos pequenos montículos, formando assim o começo primitivo das margens. As dragas vinham por fim, e aprofundavam e aperfeiçoavam aquele trabalho elementar.

Depois do lago Menzaleh o canal entra definitivamente no deserto, até ao lago Timsah, à beira do qual está Ismailia. A meio do caminho de Ismailia, o Fayoum encalhou na areia da margem direita, desembaraçou-se com grandes esforços, seguiu, mas, como a pouco espaço encontrasse o caminho obstruído por outro navio que estava encalhado, lançou âncoras durante a noite. Havia uma lua admirável, que iluminava de um lado e de outro a extensão branca do deserto. Aquele lugar onde estávamos parados tinha sido precisamente um dos mais difíceis do trabalho. Chamava-se El-Guisrh. Havia ali enormes dunas de areia, que era necessário remover. O vento do deserto incomodava e impedia os trabalhos. Viviam ali, em trabalho incessante, 18 mil operários. Da terra que se tirava para fazer o leito do canal formavam-se, de um lado e de outro, parapeitos enormes: à maneira que os parapeitos cresciam, mais difícil era conduzir-lhes acima a terra que se tirava; os árabes levavam-na, resvalando, rolando, caindo, em cestos chamados couffins; recusavam-se obstinadamente a empregar outro qualquer meio moderno e eficaz, para conduzir a terra, que não fosse o couffin. Calculou-se que todos os cestos empregados, sendo colocados em linha, dariam três vezes a volta ao globo. Todavia os parapeitos ainda não eram obstáculos bastantes contra o vento do deserto e contra a invasão crescente das areias: fixavam-se ali paliçadas, elevavam-se muralhas de lama seca, faziam-se plantações numerosas e vivazes para impedir a flutuação das areias. Naquela multidão de operários havia a mais absoluta ordem: ali, e em todo o percurso dos trabalhos, havia hospitais, ambulâncias, armazéns; incessantes caravanas percorriam o deserto trazendo víveres. Os europeus, logo ao princípio, esmagados pela imensidade e a estranheza do trabalho, desertavam. Vinham então gregos, dálmatas, arménios, árabes. Todas as raças, todas as línguas, todas as religiões ali se reuniam. Do interior do deserto corriam as tribos de beduínos a pedir trabalho. Havia enormes acampamentos.

Mr. De Lesseps andava sempre no caminho dos trabalhos, no seu belo dromedário branco, envolto no burnous árabe, aclamado dos operários. Aquelas pobres raças da planície e do deserto estavam fascinadas por duas coisas novas para elas - o ganho pelo trabalho e a água abundante!

Nada restava agora daquele grande movimento, senão, a grandes espaços, algum abarracamento colocado à beira do canal, donde os operários vinham saudar com grande ruído a passagem dos navios.

Ao outro dia pela manhã entrávamos, ao ruído das salvas, no lago Timsah. No fundo víamos a cidade de Ismailia. Era ali o centro das festas. Ismailia é a capital do canal.

É um porto admirável, inacessível às tempestades, à simples agitação da água; não porto de passagem como Port Said ou Suez, mas perfeita estação de descanso para a navegação do Oriente. Comunica com o Egito pelo caminho-de-ferro e pelo canal de água doce. Tem praças, largos, ruas de futura capital. Não é a cidade rude e trabalhadora como Port Said, cheia de oficinas e de operários. É uma cidade cheia de chalets, de esboços de palácios, de passeios arborizados, de cais largamente construídos. Tem já os refinamentos civilizados de uma capital; tem mesmo já uns pequenos ares de corrupção; as almées exiladas do Cairo, refugiadas em Esneh no Alto Egito, têm-se vindo aproximando de Ismailia. Tudo aquilo assenta, é verdade, sobre a areia, e para os lados do deserto vive uma população árabe em toda a sua pitoresca miséria. Mas a sua colocação é excelente: confinada entre um deserto e um lago, tem para se abastecer o baixo vale do Nilo, a seis horas de distância, e para comunicar com o mundo tem a navegação do canal. Pela sua posição é um porto forçado, e o melhor do Oriente. Todos os paxás do Egito têm tido, como os antigos tiranos, o desejo de ligar a sua memória à edificação de uma cidade: Mehmet Ali, Said Paxá, Abbas Paxá, todos. A cidade que este último original fundou, Abbaciade, ainda hoje está acabando de se desmoronar perto do Cairo, no caminho da antiga Heliópolis, numa vasta planície deserta.

Ismail Paxá será talvez mais feliz, e Ismailia poderá vir a ser a capital europeia do velho Egito, como Alexandria é a sua capital comercial, e o Cairo a sua capital histórica.

Terceiro dia. 20 de janeiro de 1870

Ismailia estava tomada por uma extraordinária multidão. Nos largos areais, para além dos cais, tinham-se construído acampamentos para os viajantes que não vinham de Alexandria nos navios. Tinham-se improvisado hotéis semelhantes a grandes dormitórios. Havia pequenos vapores ancorados para alojamento. O aspeto da cidade naquele dia era poderosamente vivo e original.

Os regimentos egípcios tinham acampado junto do lago. Ao centro, num largo espaço que há ao pé do canal de água doce, estavam as tendas para os xeques, que são ou chefes das aldeias árabes, ou chefes das tribos do deserto. As tendas abertas por diante deixavam ver os grandes lustres pendentes, os tapetes de Meca e de Damasco, onde se encruzavam as soberbas figuras dos xeques, fumando gravemente o narguilé.

Tinham-se estabelecido barracas enormes, onde, a todo o momento, se serviam a todos os convidados e a todos que entravam refrescos, vinhos, saladas e jantares. Havia toda a sorte de jogos, de danças, de músicas. As tribos beduínas tinham acampado perto. Eu vi uma caravana beduína em descanso no largo dos bazares: tinham cravado no chão duas lanças, e em volta os cavalos e os homens, figuras duramente esculpidas em bronze, altivamente enfaixadas nos burnous, faziam um grupo estranhamente pitoresco.

As largas ruas estavam cheias de uma multidão ruidosa, colorida, original. Tinham vindo almées do Fayoum (província) que debaixo das tendas celebravam as suas misteriosas e estranhas danças. O imperador da Áustria e a imperatriz tinham passeado por Ismailia, montados em dromedários; depois disso as ruas estavam cheias de viajantes, equilibrados sobre as excêntricas selas dos camelos e dos dromedários. Havia por toda a parte tocadores, cantadores, psilos, mágicos, devoradores de serpentes.

Os beduínos formavam danças e lutas e carreiras de cavalos. Alguns, de pé sobre os dromedários lançados a galope, faziam toda a sorte de destrezas e de equilíbrios, jogando a lança. Tudo isto era acompanhado pelas salvas constantes dos navios e pelos hurras das marinhagens. À noite, a cidade transformou-se em luz. Por todos os largos estavam acesos grandes fogos. Via-se ao fundo do lago, através dos navios alumiados, brilhar fantasticamente a cidade, feita de pontos de luz. Os acampamentos estavam flamejantes. Em todas as tendas dos xeques havia cantos de mulheres árabes acompanhados de darbuka. Os fogos-de-artifício estalavam por todo o ar. No meio dos grandes grupos, entre um círculo de fachos enormes, dançavam as almées. Em outros círculos alumiados, a multidão abria os olhos diante dos improvisadores árabes. A luz escorria por entre toda aquela multidão, tomada de alegria. Havia sobre a cidade e o lago aquele forte rumor das festas, que é composto dos cantos, das músicas, das vozes, dos aplausos, tudo harmonicamente confundido, e que pela força da sua originalidade arranca o homem para fora da vida vulgar, com irritantes atrações. Tudo isto víamos nós ao atravessar a cidade, nas enormes carruagens que nos levavam ao grande baile de Ismailia, no palácio novo de Ismail Paxá. O palácio, cercado de jardins, tinha neles uma iluminação cheia do gosto oriental. Havia luzes espalhadas por todos os ramos de árvores, entre as folhas das flores, na terra dos vasos. Sobre a erva estavam desenhados arabescos de luz de um aspeto original. O canal de água doce que corre ao pé estava cheio de barcos iluminados, onde havia cantoras árabes que passavam numa perpétua serenada. Ao começo da noite, as salas de baile estavam tomadas por uma multidão compacta. Os arquitetos do palácio não tinham terminado a tempo a decoração das salas do primeiro andar; o baile era apenas nas salas do rés-do-chão, espaçosas, mas insuficientes para a multidão. Havia milhares de pessoas e todos os uniformes, desde o estreito e esticado casaco egípcio, até ao veludo feudal dos magiares.

Nós esperávamos uma festa oriental, como hoje apenas se veem nas histórias legendárias dos califas. As salas em arcarias como a Alhambra, as colunas de alabastro, a chuva feérica de água de rosa, a tenda de seda nos jardins, as ruas areadas do pó de coral, as músicas invisíveis, os sobrados de sândalo, cobertos de uma multidão fantástica. Em lugar disso víamos grandes salas europeias, quadradas, onde uma multidão conhecida circulava como uma massa mal derretida. Nem sequer se dançava, tal era a cohue. O mais belo era ver passar, entre a multidão europeia, gravemente, as severas e enfastiadas figuras dos xeques envoltos nos seus burnous de caxemira bordados a ouro baço. A vasta sala da ceia e dos bufetes nem estava terminada na sua decoração. Em algumas partes não estava soalhada, tinham simplesmente sobreposto as tábuas: eu ainda via a um canto as escadas que tinham servido para a pintura dos tetos. Uma ceia colossalmente profusa em volta das mesas durante toda a noite; ao fundo da sala detrás de uma sebe de arbustos e flores dos trópicos, estava a ceia dos convidados reais. Os xeques andavam de pé lentamente, entre as mesas, os árabes estendiam às vezes a mão, metiam os dedos nos pratos, e afastavam-se comendo desdenhosamente. Nas salas, o baile era apenas uma oscilação sufocada de corpos. O ouro bordado das fardas arranhava os ombros nus, e os enormes sapatos dos xeques do deserto rasgavam os longos vestidos das lorettes. Não havia ordem, nem espaço, nem ar, nem alegria. Era brutal e pesado: fatigava. A maior parte da gente dispersou-se pela cidade, a ver as iluminações e as festas populares.

Quando eu saía para ir a um café italiano, em companhia de alguns oficiais ingleses, ver as almées de Beni-Ironef dançarem a dança da abelha, encontrei Mr. De Lesseps, no peristilo, que procurava ansiosamente o seu paletó.

Mr. De Lesseps é uma figura delgada e nervosa, bigode curto e branco, e dois olhos que faíscam em negro, cheios de inteligência e sinceridade. Tem uma fisionomia e, sobretudo, um sorriso que revelam tendência para as conceções abstratas, mas firmeza nas dificuldades da vida.

Mr. De Lesseps é diplomata, orador, engenheiro, financeiro e soldado. Tem tudo isto, e esta harmonia de qualidades é o segredo da sua inquebrantável força, e do seu constante triunfo nesta obra do Suez. Foi andando a visitar o deserto líbico, em companhia de Said Paxá, então vice-rei, que ele resolveu, com apoio de Said, encetar a sua obra: desde então quantas lutas, já com a Inglaterra que intriga contra ele e que o difama, já com a Turquia que lhe tira os seus trabalhadores, já com os capitais que se retraem diante dos seus planos, já com o deserto que contradiz a ciência das suas teorias, já com a cólera que lhe destrói os seus operários, quantas lutas, até que pudesse tranquilamente procurar o seu paletó, numa festa que celebrava o fim de tantos ásperos trabalhos!

Ao meio da noite, quando eu vinha para bordo, as luzes morriam miseravelmente por toda Ismailia e a sombra cobria o lago. Ao outro dia, a grande procissão dos navios saía do lago Timsah, em direção a Suez. Começava então já a ver-se, ao lado do canal marítimo, o canal de água doce - que vai indo quase paralelamente com ele até Suez. De resto a paisagem começa a ser de uma uniformidade monótona: a fulva vastidão do deserto de ambos os lados do canal. O canal de água doce é uma das maiores obras de Mr. De Lesseps e um dos episódios mais notáveis da perfuração do istmo. Os operários do canal tinham de trabalhar no deserto. A primeira necessidade era a água: um exército de operários não podia subsistir durante muitos anos apenas com água trazida pelas caravanas. Ao princípio, quando as obras estavam junto do lago Menzaleh, tirava-se a água de alguns poços isolados, fazia-se vir da próxima cidade de Damieta, ou destilava-se a água do mar. Mas, à maneira que os trabalhos caminhavam para o centro do istmo, as dificuldades apareciam. Não havia poços nem água do mar. Damieta estava longe. O tonel de água começava a custar vinte e cinco francos. Demais, como vinha em caravanas, qualquer demora, qualquer transtorno lançava a sede entre os operários, e começavam as confusões de trabalho. As inquietações sobre a água cresciam. Então Mr. De Lesseps resolveu ir ao Nilo, a trinta e cinco léguas, buscar água doce e trazê-la ao deserto por um canal que seguisse uma linha quase paralela ao canal marítimo, costeasse os lagos Amargos, passasse ao pé das montanhas de Djebel, e fosse ter a Suez. O canal seria, assim, para uso dos operários, para a irrigação daqueles terrenos áridos, e para a navegação de pequenos barcos. Nós víamos, com efeito, o canal doce, cheio de velas, cujas pontas aguçadas e brancas saíam acima das margens. Um dos episódios épicos do canal de água doce foi a passagem das dragas. Foi necessário levar aquelas monstruosas máquinas até ao pé dos lagos Amargos, para atacarem as areias do Serapeum. Foram transportadas pelo canal de água doce.

Centenares de homens iam-nas levando à corda, das margens. Mas aquelas enormes máquinas a cada momento encalhavam, voltavam-se ou, quando o vento era violentamente contrário, faziam força para trás. Para as tirar do lodo, para as impelir, para as equilibrar, eram necessários esforços sobre-humanos, em que sucumbiam muitos valorosos operários. Foi ao anoitecer que chegámos aos lagos Amargos.

Toda a esquadra do cortejo ancorou aqui durante a noite. Havia uma lua esplêndida, que enchia o lago de luz, e desenhava vagamente até ao horizonte as ondulações do deserto.

Quarto dia. 21 de janeiro de 1870

Os lagos Amargos são os restos do antigo golfo Helisopolete, águas do mar Vermelho que vinham até aqui. Foi neste lugar que passaram os hebreus, guiados por Moisés; foi aqui que ficaram sepultadas as legiões dos faraós, quinze mil homens e mil e duzentos carros. Para o lado do Egito, a lua branqueava uma vasta planície: era Gessen, a terra dos Patriarcas. Os faraós tinham dado aquele lugar aos hebreus, lugar então cheio de culturas e de searas, hoje coberto de areias. Foi dali que eles partiram em demanda de Canaã. Dali tomaram para o sul, para os desertos da Arábia e do Sinai, para evitar o encontro dos exércitos egípcios. Moisés conhecia bem aqueles lugares. A sua mocidade tinha-se passado no istmo. Demais, aquele lugar era tradicionalmente a passagem dos que vinham da Síria, pela Caldeia e pela Idumeia. Abraão, José, Jacob, tinham ali passado nas suas viagens ao Egito. Foi por ali também, mas um pouco mais ao norte, a pouca distância do lago Timsah, que muitos séculos depois o descendente de tantos patriarcas, e de tantos profetas, Jesus, passou levado por sua mãe que fugia para o vale do Nilo. Os árabes mostram ainda hoje este lugar. Enquanto olhávamos aqueles lugares bíblicos, os fogos-de-artifício estalavam por todo o ar.

Ao outro dia pela manhã íamo-nos aproximando de Suez. Saímos devagar, porque a maré do mar Vermelho já vinha contra nós. Foi esta questão de marés, e de desigualdade de níveis entre o mar Vermelho e o Mediterrâneo, a origem de uma das grandes oposições que se fizeram ao canal.

Dizia-se que, segundo as sondagens feitas sob direção de Lepère em 1799, o mar Vermelho era nove metros mais alto que o Mediterrâneo; dizia-se também que a obra era impraticável, por causa das areias movediças e dos ventos do deserto; dizia-se, por fim, que a navegação do mar Vermelho não podia, pela sua dificuldade, pelo seu perigo, constituir nunca um verdadeiro caminho marítimo. Uma comissão internacional foi sobre o istmo estudar estas dúvidas. Era uma legião de sábios, de arqueólogos, de engenheiros, de geólogos.

Said Paxá fez-lhes receções reais. Atravessaram o istmo, nos seus estudos, de Suez a Peluse. Sondadas todas as enseadas, todos os lagos, estudaram todos os terrenos. Acamparam grandiosamente, e seguia-os uma caravana de cento e setenta camelos.

Os árabes vinham de todos os pontos para ver passar aquele estranho cortejo. A comissão dissipou todas as objeções.

O nível dos dois mares foi declarado igual, por novas e mais perfeitas sondagens; reconheceu-se que as areias não eram um obstáculo: se as areias trazidas pelo vento deviam sepultar o futuro canal, porque não tinham sepultado já os lagos Amargos, porque não tinham coberto as antigas ruínas, porque não tinham, ao menos, apagado os vestígios das caravanas da última peregrinação a Meca? Por último, o mar Vermelho foi, contra os impugnadores do canal, declarado bom, como via marítima. O que tem de mais o mar Vermelho? Alguns rochedos. Não os tem o Adriático? Não os tem a Mancha? Não os tem o Arquipélago? O mar Vermelho tem ventos regulares; o mar Vermelho tem enchentes conhecidas; o mar Vermelho tem a admirável claridade das suas noites: impede isto a navegação? Se o mar Vermelho foi de uma navegação fácil para as frotas de Salomão; se venezianos e portugueses se puderam ali bater, o que se dirá hoje, com os meios científicos de navegação e com o vapor? Todas as objeções caíam de per se. Nas margens do canal começávamos nós a ver muitos acampamentos de operários: vinham até quase à água bater as palmas aos navios que passavam, acenando com lenços e véus entre grandes hurras. Dos navios respondiam. Havia um forte sol: o deserto luzia até ao horizonte. Víamos à nossa esquerda o caminho das caravanas, que vão a Meca, a Medina, a Bagdad e a Damasco, na lata Síria. A Arábia, a Ásia, ficavam para além daquele deserto. Do lado do Egito, ao fundo do areal coberto de salinas, estava a escura e triste cidade de Suez. Para além estende-se o monte de Djebel Attaka, chamado do libertamento, porque, quando as caravanas que vêm do deserto o avistam, é que estão fora de perigo. Ao fundo, abatida na pulverização de luz do horizonte, entrevia-se a cordilheira do Sinai. Ao meio entrávamos em Suez, no meio das salvas.

Suez é uma cidade escura, miserável, decrépita; é o começo de novas regiões; é já quase a Ásia e a Índia.

Tem um aspeto mortuário: a cólera e a peste aparecem, com efeito, ali frequentes vezes.

Em alguns bairros arruinados, quase desabitados, conserva, porém, nas suas construções desmoronadas um notável caráter da velha e pura arquitetura árabe.

De resto, a civilização europeia começa a representar-se em Suez por cafés-cantantes e gourgandines de Marselha.

Suez tem tido, até há pouco, um viver incompleto pela falta de água. Em Suez a água era conservada em caixas de ferro, trazidas do Cairo. A água da fonte de Moisés, que está a três léguas, só a podem beber os camelos. No tempo da chuva havia, além da do Cairo, água potável a seis léguas de distância. No tempo de calma a sede era uma doença: havia mercados de água, os preços eram fabulosos, horríveis. Os ricos bebiam uma água meio salubre. Os pobres bebiam a água dos camelos ou morriam de sede. Em Suez não havia (e ainda não há hoje) uma árvore, uma flor, uma erva. Havia gente que, tendo sempre ali vivido, não fazia ideia da vegetação. Contava-se de árabes de Suez que, vindo ao Cairo pela primeira vez, fugiam das árvores como de monstros desconhecidos. Isto fez a raça dura, áspera, hostil. O canal de água doce mudou esta face das coisas. A água é gratuita e abundante. No dia em que a água chegou a Suez, foi uma vertigem. Os pobres árabes não podiam crer: mergulhavam-se nela, bebiam até lhes fazer mal, estendidos sobre as margens do canal, davam gritos loucos. Alguns estavam aterrados e pasmavam da perda de tanta riqueza. A população gritava cheia de amor em volta de Mr. De Lesseps, prostrando-se e beijando-lhe as mãos. E, desde então, a cidade tende a reviver e a criar-se.

Quando chegámos a Suez, separou-se aquela caravana de convidados que havia seis dias saíra de Alexandria.

Uns ficaram em Suez, outros foram para o Cairo. Nós fomos para as costas da Arábia, para os lados do deserto do Sinai ver o oásis de Moisés. No Êxodo diz-se; "E os filhos de Israel vieram depois a Elim, onde havia doze nascentes e setenta palmeiras." Eram estas doze fontes e estas setenta palmeiras que nós íamos ver, passando o mar Vermelho numa barca árabe. Tínhamos feito a nossa peregrinação através do canal; a esquadra da Europa tinha as suas âncoras no mar Vermelho; a obra de Mr. De Lesseps estava completa. Havia dez anos que um grupo de trabalhadores, numa segunda-feira de Páscoa, estava reunido na praia do mar, no lugar que depois foi Port Said; não havia nada nesse lugar, senão a bandeira egípcia plantada sobre a areia. Um homem saiu do grupo, descobriu-se e disse: "Em nome da companhia de Suez, eu dou a primeira pancada de alvião neste terreno que abrirá às raças do Oriente a civilização do Ocidente." E cavou a areia com o alvião. O homem que disse aquelas palavras era Mr. De Lesseps: e, como se vê, a pobre pancada de alvião tem fe ito largamente o seu caminho!

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