Um país aos solavancos - Como mudou Portugal em dez factos
Num tom menos ligeiro, em dez anos assistimos a uma escalada de protestos, à extinção de muitas profissões e aos ecos do movimento #metoo em Portugal. A sociedade mudou muito. A taxa de natalidade não passa da cepa torta, mas nunca tantas mulheres tiraram cursos superiores. Segue-se o balanço de alguns dos factos que mais contribuíram para dar outra orientação ao País.
A década foi marcada por uma escalada de protestos, traduzidos por surtos grevistas em erupção contínua. Os enfermeiros fizeram greves prolongadas, levando ao adiamento de centenas de cirurgias por dia, os técnicos de diagnóstico e terapêutica seguiram o mesmo rumo. Os ferroviários detiveram a circulação dos comboios, e os funcionários judiciais paralisaram, tal como os guardas prisionais e os professores e pessoal auxiliar. A par dos estivadores, que pararam o porto de Sines, afetando as exportações da Autoeuropa. Os camionistas, irritados com a subida do preço dos combustíveis, seguiram o exemplo dos franceses. Novos sindicatos como o S.T.O P. mudaram o perfil do sindicalismo clássico no ensino. Sucedeu o mesmo com o Sindicato dos Estivadores e da Atividade Logística. O segundo trimestre de 2019 foi particularmente conturbado, com 329 avisos prévios de greve, segundo dados da DGERT. O novo ano não se adivinha mais promissor. A Administração Pública vai paralisar a 31 de janeiro, não se descartando que a greve nacional seja alargada a mais dias.
Cinco anos após a saída da crise financeira, o turismo desempenhou um importante papel na recuperação do País. Em 2009, foram 880 milhões os estrangeiros que passearam pelas ruas portuguesas. Dez anos depois, os dados apontam para 1.323 milhões e a tendência é aumentar. Em 2009, Portugal tinha 273.804 camas em unidades turísticas. Hoje, são mais de 400 mil. Numa década, fomos invadidos pela chamada "economia de partilha", assente em plataformas digitais. Só na plataforma Airbnb, a capital tinha 10.681 propriedades listadas no final do primeiro trimestre de 2017, um salto de 41% em pouco de mais de um ano e meio. No Porto o crescimento foi ainda maior. O alojamento local tornou-se num dos temas quentes nas conversas dos portugueses e na agenda dos políticos. A sociedade assistiu também ao boom de novas formas de transporte e mobilidade urbana, como a Uber e a Glovo. Aliados aos epidémicos tuk tuks, que começaram a operar em Lisboa, e já compreendem mais de mil condutores só na capital, as cidades viram-se invadidas por trotinetes elétricas e bicicletas híbridas.
Da Ota, a Alcochete até acabar no Montijo. As discussões começaram no Governo de Sócrates e ainda se mantêm no de António Costa. Aclamado como um bom acordo para o Estado e para os portugueses, o futuro aeroporto do Montijo, complementar ao de Lisboa, promete trazer mais desenvolvimento para a capital e ao País. Mas acumularam-se críticas em vários tons ao ex-Executivo por parte dos parceiros da gerigonça, nomeadamente da parte das bancadas do BE, PCP e PEV. Falou-se num negócio à medida da empresa francesa Vinci e atropelos à avaliação de impacte ambiental. O acordo entre o Governo e a ANA - Aeroportos para um novo aeroporto no Montijo, a construir até 2028, foi assinado em janeiro de 2019, prevendo também a extensão da atual estrutura do Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. O processo não ata nem desata. A complicar a situação, um grupo de cidadãos interpôs um procedimento cautelar para suspender a Avaliação de Impacte Ambiental do aeroporto do Montijo. Incontornável ainda falar do aeroporto de Beja. Inaugurado em 2011, prometendo ser um foco de progresso no Alentejo, custou 35 milhões de euros e continua sem passageiros. Nem as companhias "low cost" o procuram.
Aumentaram as denúncias de assédio e a procura de ajuda profissional, sobretudo nos casos de assédio sexual no trabalho. As mulheres estão a procurar defender-se e defender o seu posto de trabalho. O movimento #metoo teve ecos em Portugal, dando uma voz coletiva às mulheres. O que está a acontecer agora com o assédio sexual é bastante parecido com o que aconteceu com a violência doméstica. Ninguém falava do assunto, as mulheres tinham medo e vergonha e preferiam ficar caladas a levantar a sua voz contra o abusador. Desde 2010 que o debate evoluiu muito, sobretudo com o empoderamento das vítimas. Mas os resultados estão ainda muito aquém do que seria desejável. A legislação ainda é muito frágil.
O passe único veio acabar com com as centenas de títulos combinados que existiam para a utilização dos transportes coletivos, permitindo circular sem restrições. O Navegante Municipal (30 euros) permite agora viagens dentro de cada concelho, e com o Navegante Metropolitano (40 euros) pode-se utilizar todos os meios de transporte públicos na Área Metropolitana de Lisboa. Com esta medida, vaticinou o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, será possível gastar menos 75 milhões de litros de combustível por ano, importar menos seis mil viaturas e emitir menos 175 mil toneladas de CO2 anualmente. A redução do preço dos passes levou a um aumento considerável da procura nos transportes públicos, que já vinham a somar contestação. Apesar de satisfeitos com os novos preços, os utentes viram reforçados os seus receios: os operadores não estão preparados para responder ao aumento de procura, reportando-se constantes atrasos e a sobrelotação de autocarros, metros, comboios e barcos. Inscrita no OE2020 está a promessa do Governo de reforçar a rede de transportes públicos em 15 milhões de euros. Resta-nos esperar para ver.
A 13 de maio de 2017, centenário das "aparições" em Fátima, a visita do Papa Francisco à cidade-santuário projetou Portugal no turismo religioso a nível mundial, trazendo peregrinos de todo o mundo. Os números foram impressionantes, destacando-se o impacto económico de 20 milhões de euros para Ourém-Fátima. A estada do Sumo Pontífice, durante a qual canonizou os pastorinhos Francisco e Jacinta, gerou 21.733 notícias em todo o mundo. Nas redes sociais, a deslocação do pontífice ao santuário mariano português obteve um 'share of voice' (SOV, nível de partilha entre pessoas) de 39%, um valor apenas ultrapassado pela conquista do Benfica do tetracampeonato de futebol. Francisco, o quarto papa a visitar Fátima, regressará a Portugal em 2022, por ocasião da XXXIII Jornada Mundial da Juventude (JMJ), desta vez a título oficial.
A Assembleia da República aprovou a 8 de janeiro de 2010, com 126 votos a favor, 97 contra e 7 abstenções, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Passámos a ser o oitavo País do mundo a realizar em todo o território nacional casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo, juntamente com os Países Baixos, Espanha, Bélgica, África do Sul, Canadá, Noruega e Suécia. A Islândia e a Argentina seguiram o exemplo no mesmo ano. A adoção, excluída à época, viria a ser aprovada em dezembro de 2015. Até 2018, celebraram-se em Portugal 3.429 casamentos entre pessoas do mesmo sexo, segundo o INE. Lideram os matrimónios no masculino.
Menos nascimentos, menos crianças e jovens nas escolas. Há dez anos havia 498.327 alunos a frequentar o ensino secundário e mais de 90 mil professores, também no secundário. O panorama é agora bem diferente: o número de alunos não chega aos 400 mil e há menos 15 mil docentes. Nos restantes ciclos, o cenário é idêntico. Pela positiva, a taxa de alfabetização nos adultos situa-se nos 95% e as matrículas para a escola primária estão próximas dos 100%. Os chumbos e a existência de "uma escola nitidamente muito feminina", onde os rapazes têm menos sucesso, são dois dos fenómenos descritos no relatório "Estado da Educação 2018". O estudo indica, por exemplo, que o abandono escolar precoce em Portugal atinge atualmente 11,8% dos alunos, enquanto a média dos 28 países da União Europeia é de 10,6%. Noutro indicador, verifica-se que a percentagem de adultos com formação superior é muito diferente. As mulheres ultrapassaram a meta dos 42,5%, enquanto apenas um em cada quatro homens (24,1%) tem um curso superior.
Ninguém imaginava, há dez anos, que a justiça pudesse vir a tocar nos mais poderosos. Mas o cenário mudou e casos como a Operação Marquês, os vistos gold, o BPN e o BES vieram devolver alguma confiança, ao mostrar que políticos, banqueiros e empresários não estão acima da lei. Medalha de honra para o "superjuiz" Carlos Alexandre, o principal rosto da luta contra a corrupção em Portugal. Só falta melhorar a eficácia numa justiça que continua lenta. Entre os casos mais mediáticos - e caricatos - está o de Tancos. O principal suspeito do roubo de material militar, João Paulino, vai ser libertado a 28 de janeiro, quando expira o prazo máximo de prisão preventiva sem uma decisão instrutora. Segundo o calendário definido pelo juiz Carlos Alexandre, a fase de instrução começará a 8 de janeiro e vai durar, pelo menos, até 13 de fevereiro, estando previstas 30 inquirições. João Paulino foi o líder do grupo que, a 27 de junho de 2017, entrou tranquilamente na zona militar dos paióis de Tancos, roubando vário material militar. Quatro meses mais tarde, algum desse material viria a aparecer num descampado, na Chamusca. Outro caso que promete dar muito que falar: o caso Rosalina Ribeiro. Em 2011, Duarte Lima foi acusado pela justiça brasileira pelo homicídio da milionária. Foi também alvo de um mandado de captura internacional que ditava que, se o antigo deputado saísse de Portugal, seria preso e extraditado para o Brasil. O ex-líder parlamentar do PSD, que insiste em não ser julgado em Portugal, perdeu o derradeiro recurso no caso da morte de Rosalina Ribeiro. Segundo a acusação, apropriou-se de cinco milhões de euros da vítima, considerando o Ministério Público brasileiro que este é o motivo do crime.
Os fogos de junho de 2017 em Pedrógão Grande e de outubro na região centro foram a maior tragédia a atingir o País desde as cheias de 1967: 115 mortos, mais de 300 feridos, duas mil casas e 550 empresas destruídas e mais de 250 mil hectares de área ardida. Ficou gravada na memória coletiva as imagens do troço da EN 256 com carros calcinados. Em 500 metros de estrada morreram 47 pessoas (cinco delas crianças entre os 2 e 6 anos) - 30 encurraladas nos carros, 17 a tentarem fugir das chamas. Nunca a fragilidade do mecanismo de combate a incêndios ficou tão evidente. Na Provedoria de Justiça continuam pendentes cinco processos relativos a indemnizações a feridos graves. Dos 12 diplomas aprovados no âmbito da reforma da floresta, o banco nacional de terras foi chumbado no Parlamento. A reconstrução de casas também só deve estar concluída em 2020, apesar de 96% das intervenções planeadas estarem terminadas. A 5 de dezembro, o Governo anunciou que iria destinar 554 milhões de euros anuais para reduzir a metade a área ardida nos fogos florestais até 2030.
Sintetizar todas as grandes mudanças numa década em dez pontos é tarefa inglória. Daí a adenda que se segue, e mesmo assim ficando muito aquém de tudo o que havia para destacar. Difícil esquecer o dia 7 de setembro de 2012, quando Pedro Passos Coelho anunciou ao País novas medidas de austeridade, fazendo saber que os portugueses iriam receber menos e descontar mais. Logo de seguida, foi festejar os 50 anos de carreira de Paulo de Carvalho, no concerto que o cantor deu no Tivoli nessa mesma noite.
A década que agora termina marcou o início da "guerra" ao plástico. Em 2015, o Governo deu um sinal ao setor pela via fiscal. Os supermercados tinham de pagar 10 cêntimos por cada saco de plástico distribuído na caixa. Apesar do encaixe inicialmente previsto, de 34 milhões de euros, ter ficado muito aquém, a medida teve o efeito desejado de redução da quantidade de sacos plásticos leves produzidos e consumidos em Portugal, e a preferência dos consumidores por soluções ambientalmente sustentáveis, como a utilização de sacos reutilizáveis, contribuindo para o combate à acumulação de resíduos de plástico nos ecossistemas, nomeadamente do meio marinho. A cruzada irá continuar em 2020. É intenção do Governo acabar com copos e talheres de plástico, assim como palhinhas, um ano antes de a proibição entrar em vigor nos restantes países da União Europeia. Dados do Eurostat (Novembro de 2011) indicam que Portugal produziu em 2017 mais de 400 toneladas de plástico, dos quais apenas 139,6 toneladas foram para reciclagem. Em 2010, os valores eram de 361 toneladas para 88,5 reciclados.
O trabalho, tal como o conhecemos, sofreu uma grande mudança. Tendo em conta a evolução da sociedade, do ambiente e, consequentemente, das necessidades, as organizações tiveram de se adaptar. No seguimento dessa adaptação, surgiram novas funções e talentos. Ofícios praticados nos tempos dos nossos pais, avós e bisavós, que faziam parte integrante do quotidiano citadino ou suburbano, desapareceram de vez. Enquanto algumas tarefas profissionais foram extintas, outras surgiram de forma quase imprevista, dirigindo-se a consumidores cada vez mais variados. Muitas estão associadas ao desenvolvimento da tecnologia, outras a novas tendências sociais: analista de sistemas informáticos, animador cultural, barista, bloguista, consultor de imagem, engenheiro ambiental, especialista em criptomoedas, gerontólogo, gestor de redes sociais, piloto e controlador aéreo de drones, nanocientista, programador de robótica, politólogo, vídeo-árbitro, webdesigner, motorista-TVDE, responsável de proteção de dados, intérprete de Big Data ou especialista em tráfego automatizado.
A "guerra" entre privados e a ADSE ainda não está fechada e não se vislumbra um consenso para breve. Os prestadores de saúde privados romperam com a ADSE por atrasos nos pagamentos, afetando funcionários e pensionistas. O conflito tornou-se mais severo devido ao mecanismo de regularizações retroativas introduzido em 2014 e que obrigou os privados a pagarem 38 milhões de euros em "cobranças excessivas", algo que estes operadores de saúde contestam. Os privados queixam-se dos prazos de pagamento da ADSE (atrasos de 160 dias a mais do que o estipulado) e da fixação de preços dos atos médicos desajustados da realidade.
As portagens na Ponte 25 de Abril voltaram a a ser pagas em agosto de 2011. Desde 1996 que os automobilistas estavam isentos neste mês, em resultado da renegociação do contrato de concessão entre o Estado e a Lusoponte, depois do bloqueio na ponte sobre o Tejo que ficou conhecido como "buzinão". Segundo o antigo secretário de Estado das Obras Públicas, Transportes e Comunicações Sérgio Monteiro, a isenção na cobrança de portagens gerou uma dívida de 110 milhões de euros. A medida deverá vigorar todos os anos até ao termo da concessão da ponte, em 2030.
Muitos ainda se lembrarão dos pequenos portáteis de cor azul tantas vezes destacados nos telejornais da época, sob o olhar complacente do antigo primeiro-ministro José Sócrates, ou da sua ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues. O Magalhães, computador de baixo custo, integralmente montado em Portugal desde 2008 na fábrica de Matosinhos da J.P. Sá Couto, foi a estrela da iniciativa "e-escolinha", estendendo-se, posteriormente, aos alunos do 12.º ano, com a designação "e-escola", sob a gestão da Fundação para as Comunicações Móveis (FCM). O sucesso da iniciativa projetou de forma inédita a J.P. Sá Couto. E ampliou-se além -fronteiras. O Magalhães atravessou o oceano e passou a chamar-se Canaima, na Venezuela. Em 2010, a oposição parlamentar promoveu um inquérito à FCM, por a adjudicação ter sido feita sem concurso público. A queda do Executivo, no ano seguinte, e a intervenção da troika em Portugal congelou os programas de distribuição de computadores escolares. Em junho de 2012, a coligação CDS-PP anunciou a rescisão contratual de 10,9 milhões com a J.P. Sá Couto. A FCM, por sua vez, foi declarada oficialmente extinta em outubro de 2015. Uma estratégia malograda, que representou avultadas perdas para o nosso país.
No panorama europeu somos dos piores países em termos de taxa de natalidade. Dados do INE indicam que perdemos um terço da população infantil e jovem nos últimos 30 anos. Talvez muito devido à falta de programas que o incentivem. Até os prometidos nunca chegaram a sair da gaveta. Caso disso é o cheque-bebé. «Apoiar as famílias e a natalidade». Assim prometia o programa eleitoral durante o consulado de José Sócrates. Os jornais de 1 de fevereiro de 2010 deram eco à proposta governamental na sequência de um Conselho de Ministros extraordinário. O incentivo à natalidade consistia no Estado abrir uma conta-poupança num banco à escolha dos pais em nome do recém-nascido com valor inicial de 200 euros. Previa-se um gasto global entre 20 e 25 milhões de euros por ano. Poderia ter sido um bom incentivo a novos partos? Nunca saberemos. A medida não passou do papel.