#metoo em Portugal. "Os homens têm muito a aprender"
A verdade é que em Portugal não se conhecem muitos casos de assédio com famosos. Para Maria José Machado, presidente da organização não governamental UMAR, nada disto é novidade. Há anos que a UMAR lutas contra a desigualdade de género e procura ajudar as mulheres que, de alguma forma, sofrem essa desigualdade. O que está a acontecer agora com o assédio sexual é bastante parecido com o que aconteceu com a violência doméstica: ninguém falava do assunto, as mulheres tinham medo e vergonha e preferiam ficar caladas a levantar a sua voz contra o abusador. "É um processo", explica Maria José Machado.
Em 2010 quando a UMAR fez a Rota dos Feminismos contra o assédio sexual encontraram muitas pessoas que defendiam a cultura latina e o piropo. Não foi há assim tanto tempo. "Penso que esse debate evoluiu imenso. Esta mediatização do assédio vai mostrando que mesmo as mulheres com poder passam por situações destas e portanto as outras mulheres percebem que 'isto não é só comigo'. Isto não aconteceu porque eu atendi o telefone ou porque eu aceitei ir tomar um copo com aquela pessoa ou porque me vesti de determinada forma. As vítimas hoje já não se sentem tão culpabilizadas e esse é o princípio do empoderamento das vítimas. Isto não teve a ver com o que eu fiz, a culpa é dele. E isso leva-as a pedir ajuda."
Maria José Machado garante que neste último ano "aumentaram as denúncias de assédio e a procura de ajuda profissional, sobretudo nos casos de assédio sexual no trabalho. As mulheres estão a procurar defender-se e defender o seu posto de trabalho". Mas os resultados estão ainda muito aquém do que seria desejável: "A nossa legislação ainda é muito frágil. Está criminalizada a importunação sexual mas não o assédio sexual. Não há ainda uma legislação capaz de defender as vítimas."
Apesar disso, não há dúvidas de que em Portugal, os ecos do #metoo também se fizeram sentir. A deputada Isabel Moreira não tem dúvidas de que o movimento "teve a virtude de dar uma voz coletiva às mulheres. Empoderá-las. Esse foi o seu grande feito. Há uma lógica de empatia, de identificação: mulheres de todo o mundo deixaram de se sentir sós, a partir de relatos de mulheres que foram abusadas num determinado momento da sua vida, quando não eram poderosas, e que, por terem agora uma voz, através do seu testemunho multiplicam milhares de vozes que estão silenciadas. As mulheres sentem-se menos sós e mais fortalecidas."
"Ainda não é uma perceção prática, das mulheres fazerem denúncias ou contarem as suas histórias, e certamente que elas existem, porque as coisas têm um tempo e o nosso tempo ainda não é esse aqui em Portugal", explica Rita Ferro Rodrigues, que gere a plataforma feminista Capazes. "Uma denúncia é uma coisa muito séria e muito íntima, cada pessoa é que sabe quando tem de a fazer. Em Portugal ainda não chegámos a esse tempo. As mulheres ainda não se sentem seguras para avançar."
O jornalista Miguel Somsen, que acompanha estes temas com grande atenção na sua página de Facebook, concorda que há de facto, uma maior "consciência sobre a existência de um tema, o abuso sexual, que antes era considerado tabu e que agora não é", mas considera que isso não chega.
Quando no início do ano surgiu a história de que a Catarina Furtado teria sofrido assédio sexual a determinada altura da sua carreira, ele elogiou publicamente a sua coragem e acreditou que, depois dela, outras denúncias iriam aparecer. "Porque não há tempo certo para isto, porque nunca é tarde nem é cedo para falar sobre estas coisas; porque este é, infelizmente para as mulheres, o tempo certo para o fazer, o único em que o discurso finalmente se proporciona", escreveu na altura no Facebook.
Mas hoje reconhece que estava enganado: "O facto de não terem surgido apenas comprova que ainda não estão criadas as condições para as mulheres em Portugal fazerem o seu #metoo. E isto diz tudo sobre este assunto, e também sobre a forma como muitas pessoas censuram e continuam a descartar as denúncias tardias: em Portugal ainda está tudo por fazer; e o facto de a maioria das pessoas achar que estes assuntos têm o seu tempo e depois deveriam prescrever acaba por contribuir para que o silêncio das vítimas se prolongue."
No entanto, a ativista Rita Ferro Rodrigues está otimista, porque há de facto mudanças: "As mulheres estão a familiarizar-se com os seus direitos e com determinados conceitos que, por ignorância e por vivemos numa cultua de silenciamento, antes desconheciam." Isabel Moreira concorda: "Em Portugal fala-se mais hoje no assédio sexual do que se falava, não há duvida nenhuma. Escreve-se mais, discute-se mais, quer na academia, quer ao nível político, quer na sociedade civil. As pessoas estão mais despertas para essa questão, estando mais despertas para a questão do assédio estão mais despertas para a igualdade de género, que é a base que está por detrás do assédio, é o sexismo."
Se as mulheres têm agora mais consciência do que é o assédio sexual, também os homens têm muito a aprender. Como explica Miguel Somsem: "O assédio é uma consequência de um abuso de poder, que será uma consequência de uma sociedade laboral assimétrica, que é o resultado da desigualdade de oportunidades, que é o resultado de um mundo dominado por homens e determinado pelas decisões de homens. Esta é a realidade. Portanto os homens estão, mais do que nunca, aterrorizados pelo #metoo, que descartam como se fosse uma erva daninha surgida do politicamente correto, e permanecem agarrados ao poder nas suas casas dos segredos ou torres de marfim. Aqueles que não têm poder continuam agarrados a modelos patriarcais machistas tolerados diariamente pelas nossas instituições. Portanto quando os homens hoje vêm dizer que "agora já não se pode dizer nada", eu rio-me. Desde quando se assumiu antes que eles podiam dizer ou fazer tudo?"
Rita Ferro Rodrigues acredita que neste momento já ninguém pode dar a desculpa de que não sabia que isto não era permitido. "Já há uma censura moral, que tem de existir, sobre determinados comportamentos que antes eram considerados perfeitamente aceites. Eu acredito que isso faz com que, de forma preventiva, alguns desses comportamentos estejam agora mais controlados. Isso é um resultado deste debate", explica.
"Agora compete às instituições - como a polícia e os tribunais - não defraudar as vítimas", avisa Maria José Machado. E nem vamos falar da questão do sexismo nas sentenças judiciais, que isso daria todo um outro artigo.
Leia mais sobre o movimento #metoo e os direitos das mulheres no caderno 1864, na edição de Domingo do Diário de Notícias