"A Marinha deve assumir as funções operativas do Estado no mar, como forma de racionalizar os recursos nacionais, desempenhando as funções tradicionais das Marinhas de Guerra e das Guardas Costeiras, de acordo com um modelo pós-moderno de utilização do poder naval e marítimo"..Foi com esta ideia, uma das muitas ambições que o Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Gouveia e Melo, apresentou como visão para o futuro na Diretiva Estratégica da Marinha, que arrancou o debate no podcast Soberania desta semana - uma parceria DN / Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), com o seu presidente, Jorge Bacelar Gouveia, a co-moderar..Ouça o podcast aqui:.Convidados: o subdiretor-geral da Autoridade Marítima Nacional (AMN) e 2º comandante da Polícia Marítima, contra-almirante José Vizinha Mirones; o coronel da GNR, na reforma, Francisco Rodrigues; e o especialista em Direito do Mar, Duarte Lynce de Faria (ver perfis mais em baixo)..DestaquedestaqueA Marinha a assumir funções de guarda costeira será uma provocação à GNR, a força de segurança que tem ocupado esse espaço, ou um desígnio realista, de racionalização de meios?.A Marinha a assumir funções de guarda costeira será uma provocação à GNR, a força de segurança que tem ocupado esse espaço, ou um desígnio realista, de racionalização de meios?.Lynce de Faria opta pela segunda hipótese. "Um país com a dimensão de Portugal tem de racionalizar os seus meios. (...) Há matérias que, eventualmente, para outros tipos de países, são desenvolvidas por guardas costeiras autónomas, mas aquilo que é dito na diretiva não é isso. Muitas das competências que efetivamente essa guarda costeira pode ter quando é autónoma, são claramente possíveis serem desempenhadas pela Marinha de guerra. Isto não significa que não exista também outro tipo de ações e outro tipo de embarcações que podem complementar em áreas mais próximas da costa"..José Vizinha Mirones desenvolve a ideia, recordando que a União Europeia (EU) "adotou um quadro em 2018, no âmbito do Plano de Ação Revisto da Estratégia de Segurança Marítima, em que definia e uniformizava conceitos e competências no âmbito das funções atribuídas às guardas costeiras".."Não quero ser fastidioso", salvaguarda, "mas iam desde a segurança marítima e controle da navegação, passando pela busca e salvamento marítimo, controle aduaneiro, controlo da efetividade de pesca, controlo de fronteiras, etc. São ao todo 10 funções típicas de guarda costeira. Ora, analisando este quadro e as entidades envolvidas, em que no nosso enquadramento jurídico nacional têm competências específicas, podemos dizer, sem qualquer dúvida, que é na AMN, sustentada e apoiada pela Marinha em termos de recursos humanos, materiais, financeiros e de informação, que reside a parte mais significativa das funções típicas das guardas costeiras"..Este oficial da Armada, que é o subdiretor-geral da AMN e 2º comandante da PM, revela que "neste contexto, muito recentemente, foi proposto ao Almirante CEMA, em abril deste ano, que deu o seu acordo, que outros meios passíveis de serem empregos em apoio direto à AMNl serão, naquilo que diz respeito à Marinha, duas fragatas, dois helicópteros, destacamentos de veículos aéreos não tripulados, os chamados UAVs, submarinos, nomeadamente um no âmbito da vigilância e combate ao narcotráfico - não esquecendo que a competência de investigação criminal do combate ao narcotráfico reside na Polícia Judiciária - navios patrulha oceânica e corvetas, até quatro, lanchas de fiscalização costeira e navio patrulha, até três"..Se havia dúvidas sobre o empenho da Marinha em afirmar-se como guarda costeira, esta informação do contra-almirante atesta bem o esforço que tem vindo a ser feito na vigilância marítima com provas dadas, por exemplo, no combate a narcotráfico..DestaquedestaqueNos primeiros três meses deste ano, a PM, que é uma força de segurança e órgão de polícia criminal, já apreendeu, com apoio da Marinha, 15 lanchas de alta velocidade de narcotraficantes (três vezes mais que no total do ano passado), deteve o dobro dos suspeitos de tráfico a apreendeu mais do triplo de haxixe, num total de mais de cinco toneladas..Nos primeiros três meses deste ano, a PM, que é uma força de segurança e órgão de polícia criminal, já apreendeu, com apoio da Marinha, 15 lanchas de alta velocidade de narcotraficantes (três vezes mais que no total do ano passado), deteve o dobro dos suspeitos de tráfico a apreendeu mais do triplo de haxixe, num total de 22 toneladas..Da parte da GNR, não foi possível ter, como da AMN, uma perspetiva institucional, pois o comandante-geral desta polícia, que ainda é um Oficial General do Exército, Santos Correia, não autorizou que a Guarda fosse representada no programa..Vestiu essa "farda" o coronel Francisco Rodrigues, que foi comandante vários anos na Unidade de Intervenção da GNR e é atualmente presidente do Conselho Fiscal do OSCOT..Começa por concordar com José Mirones e Lynce de Faria: "Do ponto de vista conceptual, estou perfeitamente de acordo. Como país pequeno com poucos recursos deveríamos, acima de tudo, pensar na racionalização dos meios. Já há muito tempo também sou crítico relativamente daquilo que acontece em terra, isto é, a proliferação de autoridades com responsabilidade, quer em terra, quer no mar", assevera..No entanto, começa depois a divergir: "Defendo o conceito de uma guarda costeira, mas não no âmbito, porventura, daquele em que a Marinha se revê, ou nem, se calhar, no que é defendido pela GNR", sublinha Francisco Rodrigues..A sua ideia acaba por ser aquela que poderia equilibrar a disputa entre a Marinha e a Guarda, que com a sua Unidade de Controlo Costeiro (UCC) tem vindo a crescer e a adquirir embarcações que lhe permitem navegar em zonas onde apenas os navios da Marinha chegavam..É recordar o "estado de sítio" em que ficou a Armada e a críticas de personalidades como Adriano Moreira, quando a GNR adquiriu a "mega-lancha" Bojador..O coronel da GNR vê "uma solução de premeio. Isto é, em tempo de paz, uma guarda costeira com um conjunto de tarefas e missões naturalmente direcionadas para aquilo que é a segurança interna do Estado e naquilo que depois pode acontecer em estados de exceção ou em guerra, passar à dependência do Sr. Almirante CEMA para reforçar as missões da Marinha. (...) Criar uma nova força. Não devia fazer parte nem da Marinha, nem da GNR. Seria uma guarda costeira, naturalmente na decorrência da Marinha e desempenhava funções de segurança interna, para proteção dos interesses nacionais territoriais, e seria colocada na defesa externa em tempo de guerra"..Mas enquanto as soluções não aparecem - por responsabilidade dos decisores políticos - Portugal terá de demonstrar à União Europeia (UE) que estas duas entidades com poderes de autoridade no mar se articulam - e ambas com a Força Aérea, PJ e PSP, que também têm competências específicas - para permitir que se tenha um quadro único daquilo de se passa nesta fronteira marítima que abarca praticamente metade da águas marinhas da UE..Este "quadro situacional" que é a forma de saber quem anda a circular, quem entra e quem sai pelas fronteiras marítimas e ter uma visão daquilo que são as ameaças e os riscos como a imigração ilegal, contrabando, narcotráfico, ameaças ambientais, além das questões da segurança militar, estava incompleto porque cada um tinha o seu próprio quadro, dentro das suas atribuições e competências..Já foi depois da visita dos peritos da UE a Portugal para a designada "avaliação Schengen", que o secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, Paulo Vizeu Pinheiro, conseguiu que todas esta entidades assinassem um "acordo de cooperação" para todos colocarem as suas informações numa plataforma única, através da qual o "quadro situacional" será gerado, conforme disse o próprio no episódio 5 do podcast Soberania..O problema é que continuam a replicar-se organismos e entidades com competências no mar, incluindo coordenadoras..Uma das mais recentes, de 2013, é o Centro Nacional de Coordenação (CNC) Eurosur (Sistema Europeu de Vigilância de Fronteiras), com representantes de todas as entidades atrás referidas, que foi instalado na GNR..Porém, foi mantido o Centro Nacional Coordenador Marítimo (CNCM), criado desde 2007, que abarca também essas entidades e ainda outras com responsabilidades no sistema da autoridade marítima..Para Lynce de Faria "o problema todo reside na articulação de sistemas diferentes e ela não é a mesma de há 20 anos, porque necessita de um conjunto de instrumentos para ser efetiva. E para haver esta articulação, tem de haver uma troca efetiva de informação"..Vizinha Mirones lembra que "a última reunião do CNCM ocorreu em junho de 2020" e na sua opinião "tão cedo quanto possível deve ser dada continuidade à missão deste centro, que é extremamente relevante para efetuar, a um nível estratégico, a coordenação entre as várias entidades, porque o sistema que temos acho que funciona, as competências são as que são e têm de ser articuladas e reforçadas"..Conclui Francisco Rodrigues que destaca três palavras-chave: "cooperação, coordenação, interoperabilidade. Enquanto não virmos as nossas forças, sejam elas militares, sejam elas policiais, a colaborarem desta forma, acho que não chegamos a ponto absolutamente nenhum e vamos continuar com estas guerras indistintas entre forças e serviços de segurança"..Contra-almirante José Vizinha Mirones. Subdiretor-geral da Autoridade Marítima e o 2.º comandante da Polícia Marítima. Foi chefe de gabinete do ex-CEMGFA, Silva Ribeiro. Especializado em armas submarinas, foi oficial de ação tática em fragatas classes João Belo e Vasco da Gama e 1.º comandante da fragata Bartolomeu Dias. Mais recentemente foi comandante da Força Aeronaval da União Europeia, na Operação ATALANTA, no Oceano Índico e comandou o Grupo Marítimo Permanente n.º 1 da OTAN no Atlântico Norte, Mar Ártico e Mar Báltico..Coronel Francisco Rodrigues. Coronel da GNR na reforma, foi vários anos comandante na Unidade de Intervenção, um grupo de elite da Guarda. Por duas vezes desempenhou funções no Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP). Foi comandante da Unidade de Reação Rápida das Nações Unidas em Timor. Auditor de Defesa Nacional, é atualmente presidente do Conselho Fiscal do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT). Duarte Lynce de Faria.Doutorado em Direito Internacional Privado e em Direito Empresarial (com uma tese em Direito Marítimo) é professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, na Escola Naval e na Escola Superior Náutica Infante D. Henrique. Foi administrador do Instituto Marítimo-Portuário; Diretor do Gabinete Jurídico e de Projetos Estratégicos na Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra; e Administrador dos Portos de Sines e do Algarve. Foi oficial da Marinha, onde desempenhou funções na área das operações navais e no Estado-Maior da Armada. É autor de diversos artigos e publicações nas áreas do Direito do Mar..Ouça o podcast aqui: