E se a amizade de um sultão do século XVIII contar mais para a geopolítica do que Trump?

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Não faltará quem queira ver no acordo de cooperação militar assinado em outubro entre o ministro da Defesa marroquino e o seu homólogo americano a explicação para o reconhecimento, dois meses depois, por Washington, da soberania de Rabat sobre o Sara Ocidental. Claro que a venda de armas é importante para a política externa americana, e Donald Trump começou logo a sua presidência com um gigantesco contrato assinado com a Arábia Saudita, assim como também serve os países compradores porque os coloca sob uma espécie de proteção dos Estados Unidos. Mas a estreiteza das relações entre os Estados Unidos e Marrocos não tem dois meses, nem sequer duas décadas (há quem note a cooperação com a CIA nos interrogatórios aos prisioneiros da Al-Qaeda capturados no Afeganistão e no Iraque), mas sim mais de dois séculos.

É que o primeiro país a reconhecer a independência americana foi Marrocos, em 1777, uma decisão do sultão Mohamed ben Abdellah quando ainda os britânicos tentavam derrotar os rebeldes comandados por George Washington. E para os americanos, que se sentem um país jovem quando comparados com as velhas nações europeias, tudo o que é história é sobrevalorizado, seja uma data, uma figura ou até um edifício.

Falando de edifícios, tive oportunidade de visitar a antiga legação americana em Tânger há dois anos. Foi inaugurada em 1821 e é a mais antiga propriedade pública americana no estrangeiro. Hoje funciona como museu, pois com a independência marroquina de 1956, pondo fim ao protetorado francês que vinha do início do século XX, os Estados Unidos instalaram uma embaixada em Rabat. E é quase impensável que um governante ou um diplomata americano visite Marrocos e não refira o reconhecimento de 1777, o Tratado de Paz e Amizade de 1786 (entre o sultão e o Congresso, pois ainda não havia um presidente eleito) ou a abertura da legação em Tânger.

Portugal tem obrigação de perceber perfeitamente o que está em causa. Foi o terceiro país a reconhecer a independência dos Estados Unidos, e isto apesar de a Grã-Bretanha ser o aliado tradicional, e ainda no ano passado viu o consulado americano nos Açores celebrar 225 anos, o mais antigo em funções dos Estados Unidos no mundo.

Agora que Marrocos estabeleceu relações diplomáticas com Israel, decisão que tal como o acordo militar de outubro contribui para explicar o sucedido nas províncias do sul (assim prefere Rabat designar o antigo Sara colonizado por Espanha até 1975), convém olhar sobretudo para a história pós-Segunda Guerra Mundial. E para o encontro, ainda durante o conflito, entre o presidente Franklin Roosevelt e o sultão Mohammed ben Youssef à margem da Conferência de Casablanca com Winston Churchill e Charles De Gaulle (José Estaline preferiu permanecer na União Soviética, pois decorria a Batalha de Estalinegrado contra os nazis). Naquele janeiro de 1943, contra a vontade de De Gaulle, líder da França Livre, o presidente americano declarou sentir simpatia pelos desejos de independência dos povos colonizados.

Demorou mais de uma década a independência de Marrocos, o suficiente para a Guerra Fria já se ter imposto nas relações internacionais. O sultão visitou os Estados Unidos logo em 1957 e o presidente Dwight Eisenhower devolveu a visita em 1959, sendo recebido por Mohammed V com todas as honras devidas a um velho aliado. Mas foi já com Hassan II no trono que a aliança marroquino-americana se desenvolveu ao longo dos anos 1960, em boa parte porque o reino se declarava desejoso de integrar o campo ocidental, enquanto a nova República da Argélia, nascida de uma sangrenta guerra com a França e revolucionária, simpatizava com o Bloco Comunista.

Hoje, assiste-se ao regresso de uma certa competição entre os Estados Unidos e a Rússia pós-soviética no Magrebe e no Sahel. E com a Argélia a fazer por seu lado contratos militares com a Rússia é natural que empurre ainda mais os Estados Unidos na direção de Marrocos. A Polisário, que defende uma república sarauí e conta com o apoio argelino, sai prejudicada da nova conjuntura, um pouco como Israel sai beneficiado, se bem que o triângulo América-Marrocos-Israel seja bastante mais complexo do que outros aqui referenciáveis (são centenas de milhares os judeus com raízes em Marrocos e o reino sempre conseguiu um equilíbrio entre o apoio aos palestinianos e a boa relação com Israel).

Com a tomada de posse de Biden, no dia 20, há risco de um retrocesso na posição americana em relação ao Sara Ocidental? Algum, mas mesmo Trump, embora por vezes parecesse agir só com base no seu ego, não foi assim tão mais ousado do que outros presidentes. Tirando Jimmy Carter, que nos anos 1970 chegou a pôr em causa a cooperação militar com Marrocos falando de direitos humanos, para de imediato ser-lhe chamada a atenção por congressistas vários, a regra de acarinhar um aliado estratégico que tanto é árabe como africano, e tanto é mediterrânico como atlântico, tem sido respeitada em Washington. Até foi o americano James Baker, enquanto enviado especial da ONU, que primeiro validou a proposta marroquina de vasta autonomia para o Sara.

Biden, quando serviu como vice-presidente de Barack Obama, esteve em Marrocos e encontrou-se com Mohammed VI, o monarca que sucedeu a Hassan II em 1999 e aproveitou bem a "guerra ao terror" de George W. Bush para realçar o islão tolerante do reino e apoiar a América. E Marrocos acabou mesmo por ser também alvo da Al-Qaeda tal como a América foi com os atentados contra as Torres Gémeas. Já o futuro secretário de Estado, Antony Blinken, numa ida a Marrocos em 2016, elogiou a visão do rei a favor do aprofundamento da democracia e em defesa do islão moderado.

Único país africano a ter um acordo de comércio livre com os Estados Unidos e, juntamente com Tunísia e Egito, também um dos três do continente com estatuto de aliado maior não membro da NATO, Marrocos continuará sob proteção americana num futuro previsível. O que tem óbvias vantagens, mande Trump ou Biden, mas não garante tudo: um exemplo é o CDC África, centro de controlo das doenças a nível continental, que os Estados Unidos queriam sediado em Marrocos, mas que a China já deu os passos mais do que seguros para que fique na sua aliada Etiópia.

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