"Chocou-me este coro unânime na morte de Eduardo Lourenço"
O Meu País não é resultado do confinamento devido à pandemia, garante a investigadora Maria Filomena Mónica. Explica as razões deste livro gémeo do anterior numa entrevista em que se a ouviu rir mais do que é habitual e em que se lhe escutaram sucessivas referências a Eça de Queiroz como lhe são normais: "Não tem que ver com o confinamento e até começou a ser escrito antes de O Olhar do Outro. A minha intenção era escrever um livro sobre o que é ser português e a relação com a pátria. Então, comecei a ler uns vinte livros de autores portugueses, mas eram tão maus que nem valia a pena perder tempo com eles. Estou farta do Boaventura Sousa Santos, do Eduardo Lourenço e do José Gil, mesmo que entre os lidos fossem dos melhores, e deu-me para os atacar em vez de ao peixe miúdo. Então, optei por ir ver o que diziam os que passaram por cá e como nos olharam."
O método de trabalho foi diferente deste livro gémeo: "Naquele, decidi pegar em frases e colocá-las fora do contexto de onde estão, e da cabeça do autor, e ver o que dizem sobre Portugal. O que me deu muito trabalho e despesa, pois acho que comprei uns duzentos livros e pela certa gastei mais dinheiro do que receberei em direitos de autor. Queria ler as biografias sobre esses visitantes e tentar ver de que forma enviesavam o que tinham escrito sobre Portugal. O Olhar do Outro era para sair depois deste, mas como não fui capaz de avançar mudei a ordem em que os fiz."
Nestas duas centenas de páginas faz e desfaz muitos dos mitos sobre a identidade e a história portuguesas. É o caso da palavra "saudade", alegadamente portuguesíssima: "É uma ideia que faz parte do que se transmite em gerações sucessivas e ninguém quer contestar. Não é só nossa e existem palavras que designam o mesmo fenómeno noutras línguas. O que é explicável em povos que tenham muita emigração, como é o nosso caso e o do país basco, que também tem um termo com o mesmo significado." No entanto, no que respeita à "melancolia" própria dos portugueses, confirma que existe e, mais, não foi capaz de perder tal sentimento: "Não consigo libertar-me da melancolia. Temos um olhar triste e vamos para a cama muito cedo, basta que nos comparemos aos espanhóis, cuja alegria é chocante para quem vai de Portugal. Há qualquer coisa nobre [na melancolia] que é a perceção de a vida ser curta e não necessariamente fácil, portanto é o olhar para uma vida finita."
Maria Filomena Mónica é bastante cáustica em certas análises apresentadas em O Meu País, mas não se importa com a reação, o que já não é de agora, como se sabe: "Sou uma pessoa de natureza impetuosa e, estranhamente, muito sentimental. Desde jovem que me armei de uma carapaça que me fará parecer gélida e arrogante. Curiosamente, quando me veem na televisão surpreendem-se e dizem 'afinal, não é arrogante!' Isso é para me esconder, além de que o facto de ter mais idade e estar tão doente faz que não me importe." Uma coisa é certa, o confinamento alterou-lhe o próximo Natal: "Pus o menino Jesus, que era da minha mãe, na varanda para não apanhar covid..."
Comecemos pela conclusão: "Foi ao escrever este livro que compreendi serem o nacionalismo e o patriotismo coisas diferentes: o primeiro é inseparável do desejo de poder, enquanto o segundo é meramente defensivo. O facto de a minha pátria ser Portugal não me leva a pensar que seja a melhor do mundo." Uma opinião que já tinha à partida ou só se firmou após as 200 páginas?
Estava no meu espírito, mas de uma forma ainda pouco organizada. Sempre tive dúvidas, pois muitos dos meus colegas achavam-me antipatriótica por estar sempre a dizer mal do povo português. Daí a pergunta de como era a minha relação com o sítio onde tinha nascido. E se preferia ter origem noutro país ou se eu fiz mal em voltar de Inglaterra. Eu sentia que ao criticar o que era criticável era um sinal de amor pelo meu país, ninguém me ouvia a comentar a Turquia... A coisa ficou no ar e só quando li o ensaio Notas sobre o Nacionalismo, de George Orwell - que pus em subtítulo do meu livro -, foi muito claro que precisava de reorganizar ideias difusas. Percebi que estava tudo muito nebuloso na minha cabeça, tanto que ao iniciar este livro percebi logo que o que eu gostava quando vinha de Oxford era de me sentir em casa. Por isso digo nele que a minha pátria é Lisboa.
Exatamente, aliás percebo muito bem essa ideia de que a pátria e o patriotismo é o amor àquilo que se tem e o desejo de o melhorar. Daí a tristeza de viver num país atrasado, que não fez a revolução industrial e em muito devido as políticas da I República - e aí o Afonso Costa sai muito mal - e do papão do Salazar. Este livro foi uma espécie de reencontro com a terra onde nasci e quis rever um pouco da história de Portugal, de forma acessível em vez de ser uma chatice.
Voltando atrás, sublinha que "nos falta um Orwell". Porque não tivemos "isso" ainda?
Talvez por um complexo de inferioridade... chocou-me este coro unânime a propósito da morte de Eduardo Lourenço... é sempre assim quando morre alguém em Portugal - mesmo pessoas honrosas, dignas e inteligentes - e em vida pouco lhes ligaram nem lhes publicaram os livros - veja-se o Eça - e, no entanto, quando morrem, como em relação a Eduardo Lourenço, é uma espécie de hino concertado; que era um génio nacional, que nunca tinha existido alguém tão esplendoroso... E eu não concordo, pois existe uma espécie de vergonha em dizer quais são os seus defeitos. Porque as pessoas têm defeitos e, mesmo que sejam no seu carácter essencialmente boas - o Eça também tinha muitos defeitos de carácter mas era um grande escritor. Recentemente, morreu um amigo, o José Cutileiro - ainda por cima com covid - e tentei escrever um pequeno artigo, "Cutileiro, meu amigo", em que digo bem dele e ao mesmo tempo noto que tinha defeitos.
O "coro" em redor de Eduardo Lourenço conhecia a obra ou alguma "coisinha" dela?
Não, a maior parte desconhecia quase tudo. Tinham-no visto num ou noutro colóquio, provavelmente na televisão. A respeito da obra, lembrei-me de um artigo do Eça, que toda a gente considerava ter uma grande influência francesa - e teve no início da sua carreira literária -, mas em 1887 escreveu um artigo chamado "Francesismo", publicado na revista Renascença, em que critica os portugueses por serem dominados pela cultura francesa e desconhecerem a do resto da Europa como se esta "fosse uma vasta charneca, muda sobre a bruma". O Eça refere que a literatura inglesa é mais rica e é patético que em Portugal só se imite as coisas francesas. Creio que essa situação se manteve até há vinte anos e o Eduardo Lourenço é exemplo dessa influência francesa em Portugal, especialmente na versão que abomino, a psicanalítica.
Que é o método de O Labirinto da Saudade!
Sim. Digamos que a elite culta terá lido O Labirinto da Saudade; eu li e não gostei. Ainda tive vontade de escrever algo diferente de tudo o que surgiu aquando da morte dele mas não o fiz. Até porque, psicologicamente, me custa um bocadinho, pois era um senhor muito amável. Encontrei-o várias vezes na Feira do Livro e tenho livros dedicados por ele, vimo-nos na Gulbenkian, já muito velhinho e sempre sorridente. Portanto, é uma pessoa sobre quem me custa dizer o que penso dele. Mas penso mal. Ele diz que éramos bipolares - era essa a sua tese psicanalítica. Como não acho que exista uma coisa chamada Portugal, afirmar que Portugal é assim ou assado é disparate. Não há Portugal, existem pessoas e algumas tendências do povo português, que nem são de toda a gente. Dizer que Portugal tem complexos de superioridade e de inferioridade é errado para mim. Portugal não é uma entidade a que isso se possa aplicar.
Orwell... porque não temos um Orwell?
Orwell era um outsider, não pertencia a nenhum grupo. Era de esquerda, mas desligou-se bastante cedo da ala esquerdista-trotskista da esquerda inglesa depois do que viu acontecer na Guerra Civil de Espanha, onde percebeu o que era o estalinismo e assistiu à morte de guerrilheiros de esquerda pelas mãos e ordens de Estaline. Quando regressou a Inglaterra, houve muita gente nos meios de esquerda que não gostaram do que ele disse e teve dificuldade em editar alguns dos seus livros. Desterrou-se para uma ilha da Escócia, deixou de estar ligado a qualquer tipo de grupo, o que lhe deu uma enorme vantagem - e sofrimento - para exprimir exatamente o que pensava. Tinha uma educação muito boa, fruto de uma bolsa de estudo para filhos de militares ingleses a servir na Índia, e não fazia parte daquelas escolas posh - o governo de Boris Johnson está cheio de posh por todo o lado e vê-se o resultado. Orwell poderia sofrer, mas tinha liberdade de pensar de outra maneira. Em Portugal, as pessoas temem comprometer-se - já dizia o Eça em As Farpas: "tomar posições diferentes da manada". A dificuldade das pessoas que vivem cá é que se criticamos Portugal, somos logo rotulados de estrangeirados ou que amamos pouco a pátria.
Isso ainda a incomoda?
Enquanto estive na universidade em Oxford incomodava porque não me sentia a fazer parte das pessoas que estavam ao meu lado por ver as coisas doutra maneira. Também era outsider, porque loura e bonita, o que às vezes é bom mas tem efeitos perversos. Eu própria me achava analfabeta - e era - quando fui para lá.
Termina com o 25 de Abril e repete o discurso de Salgueiro Maia: "Como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos." A frase está atual?
Ri-me quando li a frase dele, que se adequa à população para quem estava a falar, soldados rasos, em vez de se pôr com discursos de "vamos salvar a pátria". Disse o que sentia: aquela guerra não tinha um fim político e estavam a massacrar os jovens. Era o "estado a que chegámos ao fim de 13 anos de guerra em África, em que morriam pessoas sem se saber para quê. O último império a cair foi o nosso! Quanto ao estado a que chegámos atualmente, não sou pessimista. Creio que a maior parte das pessoas da minha geração que dizem que dantes é que era bom estão erradas. Não era melhor do que o que existe e o bom exemplo é o Serviço Nacional de Saúde; cerca de 80% da população não ia ao médico por não ter dinheiro e morria. Nem me venham com tretas a dizer que os jovens são todos umas bestas porque não é verdade, a escolaridade hoje é muito diversificada e, em percentagem, há muito mais jovens cultos hoje do que no meu tempo.
Refere que "durante a adolescência percebi que Salazar havia transformado o meu país num local infeto". Mantém a opinião, e foi por essa razão que ele tem das fotos mais pequenas no encarte, uma vingançazinha?
Não, foi um acaso. Escolhi quem queria que aparecesse - as pessoas têm menos tempo para ler e fica sempre bem uns bonecos - mas não o tamanho das imagens.
Este livro está muito focado no século XIX e no início do XX. É preciso perceber essa época para compreender a atualidade?
Acho que sim, porque o Portugal contemporâneo tem de ser visto à luz do que se passou depois da Revolução de 1820. Como é que fomos parar a uma Constituição e depois a uma Carta Constitucional, fruto das invasões francesas e da influência inglesa que levou o rei a sair de Portugal - e bem, senão seria prisioneiro como o de Espanha - e que nos disseram que teríamos de fazer uma Constituição. Depois, durante a segunda metade do século XIX, ao contrário do que considera a Geração de 70, foi um período agradável - até gostaria de ter vivido nessa altura - porque houve uma regeneração, fizeram-se caminhos-de-ferro, a riqueza aumentou e havia uma grande liberdade de imprensa. Temos de ver a história num contínuo e as dificuldades que tivemos depois com a I República, que foi de facto uma ditadura da rua, seguida de 40 anos de uma ditadura que não é fascista mas clerical, reacionária e não reconhece nenhum dos direitos fundamentais, antes a querer voltar a uma paz idílica própria do século XII, por exemplo. Tudo desemboca no 25 de Abril, um país pobre que se tinha desgastado com uma guerra após uma expansão económica devido à entrada para a EFTA [Associação Europeia de Comércio Livre] nos anos 1960. A maior proeza foi integrar 700 mil retornados sem uma guerra civil.
A certa altura questiona-se sobre se teria aderido à Resistência e pegado em armas caso os nazis tivessem ocupado Portugal...
Isso é o que eu chamo de patriotismo, não nacionalismo. Querer defender o que era meu. Se os nazis nos tivessem ocupado eu questionaria o que estavam a fazer na minha terra. Não há maneira de saber se teria entrado para a Resistência, mas como não gosto que mandem em mim e os nazis eram danados para mandar em toda a gente... Tal como nas invasões francesas, quando os camponeses tinham um ódio aos franceses que lhes roubavam o milho, o trigo e o gado. Eu defenderia o que é meu, portanto acho que teria entrado para a Resistência.
Recupera do jantar do Hotel Central a afirmação de João da Ega "o que Portugal precisa é da invasão espanhola"...
O Eça queria que Portugal fosse melhor mas não via como com as forças internas. Só o Eça era capaz disso! Ele escreveu um guião com quatro folhas de um conto que viria a escrever, A Batalha do Caia, no qual Espanha invadia Portugal mas os portugueses ficavam passivos e não se revoltavam. Depois escreveu outro, Civilização, em que há também uma invasão, mas o conto não foi publicado em vida nem analisado criticamente até hoje e desconhece-se se o final é dele. É diferente do anterior pois há a invasão de uma potência estrangeira, mas desta vez existe um surto rebelde nacionalista contra o invasor. O conto não é para ser levado muito a sério, mas a ideia estava lá, de que Portugal só poderia redimir-se através de uma invasão!
Ouvir Eça de si é normal, mas desta vez é Pessoa que está muito presente. Porquê?
O Fernando Pessoa é alguém que não entendo bem ao nível de pensamento e de percurso. Gosto de ler alguns heterónimos, outros não. Prefiro o Cesário Verde - foi Pessoa que chamou a atenção para o grande poeta que ele era - por ser visual e com emoções, enquanto Pessoa é muito intelectual e cerebral. O itinerário dele também me interessa no que diz respeito ao nacionalismo porque, no fundo, não era português. Até aos 18 anos viveu na África do Sul e a sua língua materna era o inglês. Quando chegou a Portugal também não se sentiu bem aqui e olhava o país de formas muito diversas. Cada heterónimo diz uma coisa sobre ter ou não pátria e a sua relação não é linear; tão depressa Álvaro de Campos diz ter saudades de Portugal como ser apátrida.
Reencontra o papel do seu pai e da sua mãe, que saem ambos mais valorizados do que em Bilhete de Identidade. O que se passou?
Principalmente, o meu pai. Ele era muito silencioso quando comparado com a minha mãe, omnipotente e omnipresente. Tínhamos uma casa muito grande e eu só o via às refeições. Ele só interveio na minha vida em momentos muito decisivos e sempre do meu lado - foi quem me deixou ir para Londres -, mas realmente dei-lhe agora mais importância do que na altura.
Estrutura o livro assim: primeiro, radiografa-se, depois vem a história dos últimos 200 anos e volta a si. Só poderia ser deste modo?
É a minha maneira de ser, o que é outra das coisas de que se gosta pouco em Portugal. Raramente se usa a primeira pessoa do singular ou se citam nomes, antes "é aquela corrente de pensamento", representada por três gatos-pingados, de um modo muito abstrato e sem substância. Se estiver preocupada com a reação ao livro só o estrago. Eu vejo assim, mas os outros não precisam de observar o país do mesmo modo.
Foi a Barcelona reencontrar Orwell depois de ler Homage to Catalonia. Em Portugal, teve interesse em visitar algum lugar?
Não. Eu gostaria de ter ido a locais em que os escritores viveram e imaginar como era. Uma das autoras que teve muita influência na minha vida foi a Emily Brontë e fui a York de propósito ver a casa dela e das irmãs. Está impecável, com os móveis todos na mesma disposição, os desenhos que fizeram em pequenas. Em Portugal, as pessoas deitam tudo fora, é o caso de quem eu me sinto perto intelectualmente, o Eça, e em Tormes não há nada dele que valha a pena ir procurar. Foi tudo para o fundo do mar.
Editora Relógio d"Água
214 páginas