"A covid é uma forma de terramoto de 1755 a nível mundial"
Há 265 anos a população de Lisboa fazia a sua vida normal, mas quando acordou na manhã seguinte, pelas 09.30, confrontou-se com uma das maiores catástrofes que atingiram a capital portuguesa: um terramoto de magnitude próxima dos 9 graus na escala de Richter, a que se seguiu um maremoto com uma vaga de 20 metros de altura. A combinação desses dois acontecimentos em 1755 resultou na destruição da maior parte das construções de Lisboa, soterrou milhares de pessoas debaixo dos escombros e provocou incêndios generalizados. As contas oficiais dão como vítimas mortais um número superior às dez mil.
A historiadora brasileira Mary del Priore voltou a esse passado e descreve a tragédia no seu livro O Mal sobre a Terra. Um tema que nunca esgota, como refere: "Enquanto houver arquivos e bibliotecas haverá sempre a possibilidade descobrir novas fontes históricas e dar novos sentidos e interpretações aos factos. A história está sempre a ser feita; livros definitivos só os sagrados, já dizia Borges. De resto, tudo é rascunho."
Em O Mal sobre a Terra une uma investigação quase detetivesca a par da histórica. É a melhor forma de captar a atenção dos leitores atuais?
Alguém já disse que a história é um romance que aconteceu. No caso do terramoto, um facto físico permitiu a centenas de personagens escapar ao anonimato para dar a sua versão do acontecido. Vidas e vozes dos sobreviventes contam a história e, mais, interpretam-na. Castigo de Deus? O fim dos tempos? Enfim, são os próprios protagonistas que deram ritmo
à investigação. Nada mais fiz do que ouvi-los no seu desespero, medo ou esperança.
Como avalia a historiografia portuguesa sobre o terramoto?
Ela é excelente pois a história de Portugal é apaixonante embora pouco conhecida no Brasil. Na época, os textos de Ana Cristina Araújo, Rui Bebiano, José-Augusto França, Teresa Bernardino ou os clássicos como Joaquim Serrão e Lúcio Azevedo foram os meus companheiros na reconstituição de Lisboa e dos seus moradores. Mas para entendê-los dei as mãos a Miguel Torga, Agustina Bessa-Luís e Eduardo Lourenço. Sem literatura, não se conhece Portugal.
Qual a motivação para fazer um livro sobre um acontecimento tão distante de si?
Como digo no prefácio, um "terramoto pessoal" levou-me ao vosso. Os historiadores sabem que não são critérios objetivos os que empurram na direção dos velhos documentos para nos fazer conversar com os mortos. São as nossas próprias mortes em vida que nos convidam a debruçar-nos sobre determinado tema.
Como foi a receção ao livro no Brasil e o que espera da publicação em Portugal?
O livro foi publicado no Brasil em 2003, o que justifica a ausência de trabalhos que surgiram desde então. Foi muito bem acolhido na academia. O texto deveria ter sido apresentado como tese de livre-docência na Universidade de São Paulo, onde então lecionava. Mas decidi abandonar a carreira académica e escrever para o grande público. O Brasil tem uma carência enorme de história. O povo não conhece o próprio passado e muito menos a história de Portugal. Nem sabem que tiveram uma rainha de Portugal e do Brasil! Em Portugal, só desejo que os leitores tenham tanto prazer em ler quanto tive ao escrever.
Porque escolheu o francês Jacome Ratton como "guia" para esta história?
Ratton é um personagem que atravessa a história do reino e, por isso mesmo, foi um excelente fio condutor. Deixou-nos o relato de sua vida e as suas memórias. Tinha 19 anos quando sobreviveu ao terremoto e terminou a vida no cemitério Père-Lachaise, em Paris. Foi um comerciante e fabricante de chapéus bem-sucedido, envolveu-se com as altas instâncias do poder até ser denunciado como pedreiro-livre e jacobino, sendo por isso deportado. Morreu aos 75 anos jurando a sua fidelidade a Portugal.
Qual foi a maior dificuldade nesta investigação?
Graças à extrema gentileza e eficiência dos funcionários da Fundação Gulbenkian, em Paris - onde morava à época -, sentia-me todo o tempo em Portugal. O acervo da casa é belíssimo e a única dificuldade foi colocar fim à pesquisa que, por apaixonante, já se tornava infinita.
Visitou Lisboa? Sentiu-se como Henry Fielding nesse Portugal joanino?
Não só visitei várias vezes Lisboa, como me instalei na York House, na Rua das Janelas Verdes, para pesquisar na Biblioteca Nacional para outro livro - Ao Sul do Corpo, Condição Feminina e Mentalidades no Brasil Colonial - mas sempre soube discernir o Portugal joanino do Portugal que, sob auspícios da União Europeia, mudava aceleradamente. Porém, nas ruas e nas igrejas encontrei a mesma mentalidade religiosa que é o sal da cultura portuguesa, assim como a coragem, não apenas de lutar pela vida, mas de dar-lhe um sentido. Essa é uma característica do povo português, esteja onde estiver.
Entre as particularidades deste tempo estavam os autos-de-fé, que descreve como "uma forma de romper com os ritmos diários da cidade". Até que ponto a destruição de Lisboa alterou a relação com o divino?
Como demonstrei, era impossível separar a religião do quotidiano dos lisboetas no século XVIII. Na Europa do Antigo Regime, o reino português atuava como uma espécie de cidade de Deus sobre a Terra. Daí o choque da punição não esperada sob a forma do terramoto. Era como se Deus se tivesse esquecido dos seus, abandonando-os ao mal sobre a Terra. Nesse momento, as interpretações sobrenaturais expuseram mais o sofrimento de um povo do que explicações racionais advindas da revolução científica. Para os portugueses, a natureza não cometia erros e tudo estava inscrito nos planos da Providência Divina.
Como foi o seu confronto com o marquês de Pombal no antes e no depois?
Pombal é um protagonista histórico que divide opiniões entre detratores e admiradores. Acredito que o livro recente de Pedro Sena-Lino vá dirimir muitas dúvidas. Percebi que a correspondência diplomática já trazia informações sobre o político sulfuroso e arrivista. A minha atenção, porém, foi realçar a atuação do rei, D. José, normalmente discreta até então. Ele foi o grande herói no pós-terramoto. O historiador Borges de Macedo já havia apontado nessa direção e os vários documentos que transcrevi confirmam que D. José percorria as ruas, ajudando a enterrar os mortos e a socorrer os maltratados das ruínas.
Sem o poema de Voltaire o terramoto teria tido a mesma repercussão mundial?
Sem dúvida, já existiam muitos canais de informação e o reino não era tão insignificante que não merecesse a solidariedade dos vizinhos: França, Espanha e Inglaterra. Vale lembrar que as academias de Ciências, espalhadas por toda a Europa, vão tentar explicar o "fenómeno" fora do eixo religioso. Voltaire, sob forte emoção, homenageia as vítimas numa descrição realista do evento, além de denunciar que, mal maior do que a fúria da natureza, era a inação e o fatalismo.
Os historiadores brasileiros nem sempre são imparciais com o "colonizador". Como é o seu caso?
Penso que isso se deu em função das interpretações marxistas que, nos anos 1960 e 1970, colocavam a história em "caixinhas" fazendo de Portugal o explorador de uma colónia vulnerável. Isso acabou, mas é preciso que a historiografia portuguesa circule mais livremente na nossa terra. Há excelentes historiadores que nos são desconhecidos, no entanto se falamos a mesma língua, temos um longo passado em comum, ainda nos conhecemos pouco. Os 200 anos da independência do Brasil, efeméride a ser comemorada em 2022, permitirá que laços se renovem e que possamos dar-nos as mãos num entendimento mais fino de quem somos.
Durante a escrita pensou alguma vez que uma repetição daqueles sete minutos poderá voltar a verificar-se?
Como disse Albert Camus, "os flagelos voltam sempre". A covid é uma forma de terramoto de 1755 a nível mundial. E para provar que a mentalidade religiosa é algo que se nos cola à pele, não faltam em várias partes do mundo interpretações do tipo "é o fim dos tempos"!
Publicou outra investigação que tem que ver com Portugal, dessa vez sobre D. Maria I. Este trabalho deve-se a um interesse especial sobre a história de Portugal?
Venho publicando muito sobre a família de D. Pedro II e nada sabia sobre D. Maria. Eis que dei início a um livro sobre "as mulheres do imperador" e, de filha em mãe, cheguei à matriarca. Fiquei impressionada com a sua bagagem de perdas. Quanto sofrimento! Sem contar as conspirações para lhe tirar o trono. Facilmente percebi que D. Maria sofria mais de dor do que de loucura.
O que a surpreendeu mais nessa busca sobre a monarca que governou 38 anos?
A maior surpresa? A mulher notável de coragem e simpatia, adorada pelo seu povo e pelo seu marido; honesta soberana e rainha do Brasil, era para nós uma total desconhecida. Fiz-lhe um livro cheio de afeto, compartilhando as suas amarguras que são aquelas de muitas mulheres nos dias de hoje.
Editora Objectiva