A Cidade da Luz sempre teve um certo encanto, eternizada em filmes icónicos (de Casablanca a Amélie Poulin), por nomes incontornáveis da moda – Christian Dior e Coco Chanel não se tornaram mestres por acaso – pela música ou simplesmente pela visão da Torre Eiffel. Paris poderá ter muitos defeitos, mas a capital da moda é, desde há muito também, a capital do luxo. E é, no fundo, o cartão postal de um país para o qual este setor é incontornável. Segundo dados da consultora Accuracy, que agrega os números oficiais do Governo francês, o setor do luxo representa 3% do Produto Interno Bruto (PIB) deste país, gerando receitas de mais de 150 mil milhões de euros ao ano e empregando mais de 600 mil pessoas. Quem passeia por Paris, sobretudo após os Jogos Olímpicos do ano passado, vê como o passado, o presente e o futuro se vão cruzando numa capital que soube preservar as memórias sem esquecer a inovação. É por isso que o Museu d'Orsay, anteriormente a mais importante estação de comboios da cidade, que ligava Paris a Orléans, é um dos mais visitados do mundo – porque soube preservar a monumentalidade da construção com as exposições contemporâneas que hoje levam milhares de visitantes às suas salas; é também por isso que a cozinha francesa continua a ser das mais apreciadas do mundo – porque os cozinheiros aliam as receitas clássicas a técnicas modernas, sem perder o cuidado com os produtos e a certeza de que o caminho certo não é o que reinventa tudo, mas o que sabe aproveitar o melhor de cada tempo; é por isso que a Catedral de Notre Damme é exemplo de uma recuperação magistral em apenas cinco anos, com a ajuda de toda uma comunidade de mecenas sem os quais não seria possível recuperar o monumento que, com 700 anos, é um símbolo da cidade. .Mas afinal, o que é isto do luxo e porque é que França e, sobretudo, Paris, parece conseguir tê-lo entranhado na pele? O conceito foi mudando ao longo dos tempos e, recentemente, Helena Amaral Neto falou precisamente sobre essas alterações ao Diário de Notícias. “O crescimento do setor do luxo estava, durante décadas, baseado no cliente aspiracional – e esse cliente desapareceu. O luxo perdeu, segundo estimativas de consultoras cerca de 50 milhões de clientes num universo de 300 milhões”, recordava. A especialista conversava, na altura, com o DN a propósito das sucessivas mudanças na liderança de muitas casas de luxo. E esclarecia, então, que a pandemia tinha vindo alterar profundamente os padrões de comportamento e de consumo. O luxo acessível passou a ser uma realidade e obrigou a um reposicionamento de muitas casas que se recusam a democratizar o acesso aos seus produtos – ou seja, começaram a focar-se cada vez mais num super nicho, que a faz continuar a ter desempenhos excelentes. Muitas dessas têm lojas físicas na mítica Place Vândome, conhecida por ser a mais cara de Paris: Van Cleef & Arpels, Vacheron Constantin, Dior, Chaumet, Louis Vuitton...“Temos uma diferença muito grande entre o topo e a base da pirâmide”, explicava na mesma ocasião. “Em termos do setor acho que vamos ter um desfasamento ainda maior”, vaticina. “O topo da pirâmide vai ficar mais forte, com as marcas que trabalham esse vértice a ficarem ainda mais fortes – ou seja, quem trabalha bem o vértice vai crescer”, garante. “As empresas vencedoras são aquelas que combinam as duas coisas principais: a criação de desejo e a inovação. E isso, atualmente, passa muito pela área da tecnologia. Acho que há uma tendência que está a começar e que creio que vai tornar-se forte” que é a área do smart luxury, avançava ainda a especialista. Porque “nós queremos entrar no clube que não permite a nossa entrada. É essa a base do desejo”. Logo, se toda a gente pode andar de avião, voar deixa de ser aspiracional; se toda a gente pode ir passar férias a uma ilha paradisíaca, deixa de ser desejável fazê-lo; se toda a gente pode ter uma mala Louis Vuitton, os verdadeiros amantes do luxo (e os detentores das grandes fortunas do ocidente) deixam de a querer adquirir..Não é por isso, de estranhar, que seja em Paris que ainda se vêem muitas lojas com seguranças à porta a controlar e a selecionar quem pode entrar num mundo que se quer longe de democrático. Mas ao contrário do que acontece em muitas outras culturas e países, este não é o luxo que clama por ostentação. Bem pelo contrário. Ao contrário do que acontece em mercados como África e Ásia, quanto mais discreto for o produto que se vai comprar. É por isso que a Dior convive paredes meias com a Giorgio Armani ou com a Ermenegildo Zegna: porque são marca como estas que têm conseguido manter os consumidores do chamado ultra-nicho. O mesmo acontece com referências da joalharia como a Van Cleef&Arpel ou a Tiffany, reconhecíveis por algumas coleções, mas sem marcas em destaque.É claro que, passeando em Paris, a cidade que mais turistas recebe por metro quadrado, vai encontrar um pouco de tudo, até porque um país que tem no setor 3% do seu PIB não se pode dar ao luxo de rejeitar clientes. Mas também é muito claro, ao olhar com mais atenção, quem são aqueles que o consomem porque têm real noção e interesse no investimento que estão a fazer, e quem o fazem somente para dizer que podem gastar o dinheiro. E se há cidade que os vai tratar de forma diferente, será mesmo Paris..Grupo Kering toma medida "extrema" e contrata CEO da Renault.Paris, A.J.O e D.J.OPara quem gosta de visitar a capital francesa, as diferenças que se verificam entre o antes Jogos Olímpicos de 2024 e depois de Jogos Olímpicos de 2024 são notórias. A começar pela eficiência e e renovação de algum software dos transportes públicos, essenciais para a vida escorreita do dia-a-dia de uma cidade por onde passam, todos os dias, milhões de pessoas – tem mais de 2 milhões de habitantes, para além de todos os visitantes, que são aos milhares, diariamente. Foi somente desde junho do ano passado que passou a ser possível, por exemplo, comprar bilhetes para viajar no metro e nos autocarros da cidade, através de uma aplicação – o sistema de uso de cartões sem contacto ainda não é uma realidade. Antes disso, tudo era feito em papel, o que dificultava a logística e atrapalhava os visitantes, muitas vezes confusos com máquinas que têm disponíveis poucos idiomas para além do francês. No mesmo sentido, os esforços para cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, foram reforçados a partir da mesma altura. Foi implementado um musculado plano que visa retirar cada vez mais carros do centro da cidade, e foram expandidas as áreas verdes na capital, para fazer face ao cada vez mais preocupante aumento da temperatura média, graças às alterações climáticas. A cidade está também, significativamente mais limpa do que muitas das suas congéneres europeias, como Madrid ou Lisboa, sendo claro o esforço das equipas de manutenção que podem ser vistas a várias horas do dia a cuidar dos espaços comuns – seja em bairros mais ou menos endinheirados.No mesmo sentido, a segurança é uma preocupação comunitária, que permite que sejam tomadas medidas como o desligar das luzes em muitas vias públicas a partir de certa hora da noite, por motivos de poupança de energia. E se perguntar aos habitantes se não se sentem inseguros, a resposta é quase sempre a mesma: “porque me sentiria? Devemos poupar luz”..É certo que continua a ser complexo visitar espaços como o Museu do Louvre ou a Torre Eiffel, que sofrem das intermináveis filas que agora parecem ser o normal em qualquer lugar que seja minimamente 'instagramável'. Mas se se afastar desses pontos mais turísticos, Paris continua a ser uma cidade muito agradável para conhecer e viver, onde ainda é possível fazer refeições sem precisar de reservar uma mesa com duas semanas de antecedências, a preços equivalentes aos de Lisboa, e onde não se tropeça em visitantes a cada esquina. Uma rede de transportes públicos funcional, segura e económica permite que muitas pessoas vivam fora da capital, com qualidade de vida e acesso a bons serviços públicos, o que ajuda, naturalmente à organização diária da metrópole. Perdeu, como tantas outras, muitas das lojas e marcas únicas que faziam dela uma cidade diferente, porque a globalização agora trouxe-nos isso: a impossibilidade de nos surpreendermos com o que só encontrávamos fora. Mas o surgimento de alguns projetos mais pequenos pode adivinhar um futuro mais risonho para uma cidade que continua a ser muito especial, porque ainda é casa das maiores obras de arte, da música à escultura; do teatro à opera, da pintura à arquitetura.O facto de os protestos contra o excesso de Turismo terem subido de tom nos últimos meses – à semelhança do que aconteceu noutras cidades europeias –, aliada à determinação de reduzir para 90 dias o limite annual de dias em que se pode arrendar casas a turistas também estará a ajudar a uma espécie de recuperação da cidade para os parisienses. E ainda que em bairros como Montmartre – onde está a famosa basílica do Sacré-Coeur – o excesso de turismo seja um problema, facto é que na maior parte dos outros bairros, ainda é possível encontrar Paris a cada canto. Talvez, no final, Rick Blaine tenha razão. Talvez tenhamos sempre Paris. .Condomínio de luxo nasce nas margens do Sado em investimento de 16 milhões de euros .Os “nómadas digitais” e a lenta transformação das nossas cidades em resorts de luxo