Grupo Kering toma medida "extrema" e contrata CEO da Renault
Assim que Luca de Meo anunciou, na Reuters, de que estaria de saída da Renault, as informações não se fizeram esperar: a imprensa italiana deu como certa a sua ida para o grupo Kering, e a empresa confirmou a movimentação do executivo no final do dia, em comunicado publicado na sua página oficial. A contratação de Luca de Meo vai agora ser votada em Assembleia Geral de Acionistas, que acontecerá no dia 9 de setembro. A ser confirmada a decisão tomada pela administração da Kering, de Meo assumirá a presidência do grupo a 15 de setembro.
O atual CEO, François-Henri Pinault manterá o cargo de chairman, que hoje também lhe pertence.
Na reação, as ações da Renault deslizaram mais de 7%, enquanto as da Kering disparavam mais de 13% à hora que este texto foi escrito (um desempenho que ajuda a minimizar as perdas de mais de 17% que regista no acumulado de 2024).
“Do ponto de vista estratégico, parece-me uma reação mais extrema do que o esperado”, diz ao DN a especialista Helena Amaral Neto. A professora do ISEG e especialista em Luxo realça que Luca de Meo “é um perfil que faz o turn around, e é isso que os senhores da Kering e o sr. Pinault parecem querer. O seu percurso mostra que é um gestor que olha para os problema s e corta a direito, como se costuma dizer. E é disso que o grupo precisa neste momento”, explica.
“Estou a encarar este novo desafio profissional com entusiasmo, vontade e confiança, inspirado pela força das marcas do Grupo e pela experiência dos seus colaboradores. Estou convencido de que juntos continuaremos a fazer do Kering um ator essencial na indústria do luxo”, referiu Luca de Meo no comunicado publicado no site do grupo Kering.
A entrada de de Meo surge depois de uma dança das cadeiras, no início do ano, entre os diretores criativos de algumas marcas de luxo, também, numa altura em que o setor tenta responder a um abrandamento no consumo que se tem vindo a registar desde a Covid-19.
Um dos diretores criativos que foi substituído foi, precisamente, Luca De Sarno, que esteve menos de dois anos no cargo, e que não conseguiu inverter o ciclo de perdas da “jóia da coroa” do grupo.
“Esta dança das cadeiras é aquilo que é preciso a nível estratégico”, considera Helena Amaral Neto.“O facto de vir da indústria automóvel e de vir de uma área de mass market” mostra que o grupo Kering “não está a valorizar o conhecimento do setor do luxo mas muitíssimo mais uma visão estratégica de criação de valor, que é transversal em termos de setores. E acho que é uma excelente aposta”, continua a especialista, que acompanha o setor há cerca de três décadas.
Uma opção que é “radical, é diferenciadora, é arriscada, mas em termos de escolha, parece-me bem pensada”, nota ainda.
“Acho que sangue novo, em termos de posição de liderança e também uma visão diferente de quem vem de um mundo diferente do mundo da moda” é muito relevante nesta altura. “ Tudo o que sejam mudanças de visão e estratégia, mesmo que chocantes, são muitíssimo bem vindas. Acho que é uma medida radical, mas pode ser uma excelente aposta”, considera.
Quanto à estratégia usada pelo novo CEO, ainda é muito cedo para tentar adivinhar, mas Helena Amaral Neto admite que uma reformulação do portefólio estará, possivelmente, na calha. “Acho que Luca de Meo pode ter a estratégia de olhar para o portefólio das marcas e pensar em quais pode manter e reposicionar, e quais pode vender. Uma Bottega Veneta tem imenso potencial. Será que a Gucci ainda tem? Acho que essa é a visão estratégica, de quem vem de fora da indústria, e de quem consegue ver quais as marcas que têm potencial para serem desenvolvidas” que é uma mais-valia.
E avisa: “A própria Gucci pode ser uma das que poderá sofrer com isso – o grupo poderá trabalhar as mais pequenas de forma mais concertada. E vender a jóia da coroa... As marcas todas têm fases e é muito dificil garantir a consistência. E é isso que alguns grupos de luxo fazem melhor do que outros”, esclarece ainda.
Uma coisa é certa: “Não há muito tempo para tomar medidas. Aquilo já caiu muito desde o início do ano”.
Um novo normal
O setor do luxo viveu, durante a pandemia da Covid-19 e, sobretudo, durante oGrande Confinamento, uma grande explosão. As pessoas, impedidas de viajar e de ir a restaurantes, alocaram muito do seu orçamento a bens mais onerosos, o que fez crescer todo um novo grupo de consumidores.
“Depois disso, é normal que os níveis de crescimento voltem a ser mais baixos”, nota Amaral Neto. Recordando que, após a Covid-19, tivemos ainda “as crises do petróleo, do Médio Oriente e esta gigantesca incerteza” em que vivemos atualmente, que tem “impacto direto em termos da confiança do cliente e do consumidor. O crescimento do setor do luxo estava baseado no cliente aspiracional – e esse cliente desapareceu. O luxo perdeu, segundo estimativas de consultoras cerca de 50 milhões de clientes num universo de 300 milhões”.
Quando fala de consumidor aspiracional, Helena Amaral Neto refere-se àquele que, durante muito tempo, guardou as suas poupanças para conseguir adquirir um bem ou serviço que é, para si, praticamente inatingível. Algo que foi resultado de uma espera e de uma preparação aadequadas. No entanto, recorda, houve muitas marcas que, no início desta década decidiram focar o negócio no cliente do chamado “luxo acessível”. São disso exemplo marcas como a Gucci ou a Louis Vuitton. O problema, nota a especialista, é que que este segmento está a ter um desempenho muito abaixo do esperado e, em casos como os da Kering, onde a marca bandeira se focou neste segmento, isto tem um impacto perigoso para as finanças.
Nós queremos entrar no clube que não permite a nossa entrada. É essa a base do desejo
Helena Amaral Neto
“Por isso é que vemos uma distinção muito grande entre as marcas focadas no super nicho, que estão a ter desempenhos excelentes e as marcas de entrada, focadas num luxo mais acessível, que são aquelas que estão a sofrer mais. Temos uma diferença muito grande entre o topo e a base da pirâmide”, explica. “Em termos do setor acho que vamos ter um desfasamento ainda maior”, vaticina. “O topo da pirâmide vai ficar mais forte, com as marcas que trabalham esse vértice a ficarem ainda mais fortes – ou seja, quem trabalha bem o vértice vai crescer”, e quem está na base vai, possivelmente, passar por processos muito dolorosos.
“O grande desafio está na base destas pirâmides que estão a ter enormes dificuldades e desafios. Agora, o que vai acontecer no setor? Aquilo que acontece sempre e não é nada de novo para quem acompanha o mercado há tantaos anos como eu: as empresas vencedoras são aquelas que combinam as duas coisas principais: a criação de desejo e a inovação. E isso, atualmente, passa muito pela área da tecnologia. Acho que há uma tendência que está a começar e que creio que vai tornar-se forte” que é a área do smart luxury, avança ainda Helena Amaral Neto.
“Isto é uma solução para aquilo que banalizou o acesso ao luxo. O facto de serem bens e serviços inacessíveis é que os tornavam aspiracionais. E nós queremos entrar no clube que não permite a nossa entrada. É essa a base do desejo”, salienta ainda. Que é como quem diz: foi precisamente o processo de democratização levado a cabo por algumas marcas de luxo que estão a ameaçar os resultados do setor.
Se toda a gente pode andar de avião, voar deixa de ser aspiracional; se toda a gente pode ir passar férias a uma ilha paradisíaca, deixa de ser desejável fazê-lo; se toda a gente pode ter uma mala Louis Vuitton, os verdadeiros amantes do luxo deixam de a querer adquirir.
Daí que seja preciso alterar o paradgima e o modelo de negócio, acredita a especialista. E o novo modelo está à porta, garante. Ainda está no início e ainda “não há exemplos que lhe possa dar”, mas a utilização da inteligência, artificial e humana, aliada à tecnologia, vai fazer toda a diferença. Marcas que oferecem produtos ou serviços totalmente personalizados, o que pode personalizar também os preços...esse é o novo modelo de negócio”, garante.