A imigrante em causa relatava que no seu prédio apenas viviam pessoas como ela: estrangeiros que escolheram o bom tempo e a paz da capital portuguesa para trabalhar à distância, receber salários do seu país e pagar zero impostos. Fazem parte de uma comunidade que se move numa quase “cidade paralela” – uma espécie de modelo assético, estruturado, que parece copiado ad infinitum de outros locais. E assinala: Lisboa está a perder identidade. Os cafés de bairro deram lugar a salões fancy do estilo industrial / cool, que servem matcha latte e granolas de fusão, abundam os labs de roupa a preços verdadeiramente extravagantes e os rooftops com bebidas de custo proibitivo. É raro ver portugueses a circular nestes ambientes. Até aqui podemos apenas discutir se a cidade está a perder a identidade cultural. Estávamos tão focados no problema de isso acontecer para os lados do Martim Moniz, que, entretanto, Lisboa se foi tornando num quase resort de luxo noutras áreas. O problema disto é que, contrariamente ao Martim Moniz, essas áreas deixaram de ser um espaço viável para os portugueses viverem. E mesmo alguns “nómadas digitais” se queixam do aumento dos preços das casas no centro da cidade.Não é difícil tirar daqui ilações sobre quanto isso prejudica então os portugueses e outros residentes. É muito simples: eu, com um salário de professora universitária, não conseguiria pagar, sozinha, um apartamento no centro de Lisboa para mim e para o meu filho - e estou, obviamente, longe de integrar as camadas mais vulneráveis da população. Enfim, esta – e talvez outras cidades – parecem estar a tornar-se gigantes condomínios privados de luxo em que português não entra.Mas há mais coisas preocupantes. É que ainda nem percebemos bem que interesse público se quis prosseguir com a atração ativa desta imigração. É claro que há alguns interesses privados. Mas, já agora, poderia ter-se tirado também daqui algum benefício para o país, nomeadamente fazendo uma coisa por demais evidente: exigir o pagamento de impostos a quem escolheu livremente viver cá. A própria Alex Holder partilha a perplexidade: como é possível os titulares de visto nómada digital beneficiarem de isenção de impostos, quando usufruem das mesmas infraestruturas públicas que os demais residentes? É irónico como é que, mais uma vez, a crítica parte da própria comunidade beneficiada, ao invés de quem deveria pensar o interesse público.Felizmente, a lei foi alterada em 2024, mas quem beneficiava deste regime vai poder continuar a usufruir do mesmo durante dez anos. E também isto não se percebe: o Governo, tão preocupado em alterar normas em matéria de imigração e nacionalidade com restrições urgentes, e para ontem, prevê um regime transitório de dez anos para os estes imigrantes, que continuarão, em alguns casos, a não pagar impostos. Tenho insistido muito na necessidade de se pensar sobre as reais vantagens e prejuízos desta via de imigração para o nosso país. É tempo de deixar de a encarar como absolutamente positiva, como um puro íman de riqueza bruta, e perspetivá-la de forma mais abrangente, a curto e longo prazo, e exigir uma reflexão sobre a sua influência real no bem-estar de todos os residentes. Nota: o título do artigo a que se faz referência é: “«There’s an arrogance to the way they move around the city»: is it time for digital nomads like me to leave Lisbon?”, e foi publicado no The Guardian a 27 de julho de 2025. Professora da Faculdade de Direito da Universidade de LisboaInvestigadora do Lisbon Public Law