Os “nómadas digitais” e a lenta transformação das nossas cidades em resorts de luxo

Há semanas, foi publicado no The Guardian um artigo escrito por Alex Holder, titular de “visto nómada” a viver em Lisboa. Ela perguntava se estava a chegar a hora de os expatriados, como ela, abandonarem Lisboa, pois poderiam estar a fazer mais mal que bem ao nosso país. É curioso como tal reflexão nasce de dentro da comunidade, ao invés de partir dos responsáveis em pensar políticas públicas.
Ana Rita Gil

Professora da Faculdade de Direito da Universidadede Lisboa. Investigadora do LisbonPublic Law

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imigrante em causa relatava que no seu prédio apenas viviam pessoas como ela: estrangeiros que escolheram o bom tempo e a paz da capital portuguesa para trabalhar à distância, receber salários do seu país e pagar zero impostos. Fazem parte de uma comunidade que se move numa quase “cidade paralela” – uma espécie de modelo assético, estruturado, que parece copiado ad infinitum de outros locais. E assinala: Lisboa está a perder identidade. Os cafés de bairro deram lugar a salões fancy do estilo industrial / cool, que servem matcha latte e granolas de fusão, abundam os labs de roupa a preços verdadeiramente extravagantes e os rooftops com bebidas de custo proibitivo. É raro ver portugueses a circular nestes ambientes. 

Até aqui podemos apenas discutir se a cidade está a perder a identidade cultural. Estávamos tão focados no problema de isso acontecer para os lados do Martim Moniz, que, entretanto, Lisboa se foi tornando num quase resort de luxo noutras áreas. O problema disto é que, contrariamente ao Martim Moniz, essas áreas deixaram de ser um espaço viável para os portugueses viverem. E mesmo alguns “nómadas digitais” se queixam do aumento dos preços das casas no centro da cidade.

Não é difícil tirar daqui ilações sobre quanto isso prejudica então os portugueses e outros residentes. É muito simples: eu, com um salário de professora universitária, não conseguiria pagar, sozinha, um apartamento no centro de Lisboa para mim e para o meu filho - e estou, obviamente, longe de integrar as camadas mais vulneráveis da população. Enfim, esta – e talvez outras cidades – parecem estar a tornar-se gigantes condomínios privados de luxo em que português não entra.

Mas há mais coisas preocupantes. É que ainda nem percebemos bem que interesse público se quis prosseguir com a atração ativa desta imigração. É claro que há alguns interesses privados. Mas, já agora, poderia ter-se tirado também daqui algum benefício para o país, nomeadamente fazendo uma coisa por demais evidente: exigir o pagamento de impostos a quem escolheu livremente viver cá. A própria Alex Holder partilha a perplexidade: como é possível os titulares de visto nómada digital beneficiarem de isenção de impostos, quando usufruem das mesmas infraestruturas públicas que os demais residentes? É irónico como é que, mais uma vez, a crítica parte da própria comunidade beneficiada, ao invés de quem deveria pensar o interesse público.

Felizmente, a lei foi alterada em 2024, mas quem beneficiava deste regime vai poder continuar a usufruir do mesmo durante dez anos. E também isto não se percebe: o Governo, tão preocupado em alterar normas em matéria de imigração e nacionalidade com restrições urgentes, e para ontem, prevê um regime transitório de dez anos para os estes imigrantes, que continuarão, em alguns casos, a não pagar impostos. 

Tenho insistido muito na necessidade de se pensar sobre as reais vantagens e prejuízos desta via de imigração para o nosso país. É tempo de deixar de a encarar como absolutamente positiva, como um puro íman de riqueza bruta, e perspetivá-la de forma mais abrangente, a curto e longo prazo, e exigir uma reflexão sobre a sua influência real no bem-estar de todos os residentes.

Nota: o título do artigo a que se faz referência é: “«There’s an arrogance to the way they move around the city»: is it time for digital nomads like me to leave Lisbon?”, e foi publicado no The Guardian a 27 de julho de 2025. 

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Investigadora do Lisbon Public Law

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