Pontos nos is. A quinzena em que Portugal teve 54 mortos e Espanha 1177
Em Portugal, o número de mortes diárias continua abaixo dos dois dígitos, embora as infeções rondem frequentemente as três centenas diariamente. As notícias destas duas últimas semanas dão conta de festas ilegais, ajuntamentos em praias ou parques de estacionamento, de norte a sul do país. Em pouco menos de um mês, o panorama mudou, Portugal passou de bom exemplo a um não tão bom e alguns países europeus começaram a barrar a entrada de portugueses. Mas, é o país realmente um mau exemplo? Pode dizer-se que está a piorar face à Europa?
Na última quinzena, morreram mais 54 pessoas em Portugal por covid-19, já somadas a um total de 1528 óbitos. A nível europeu, ocupa o 10.º lugar entre os países com mais mortes. A lista é liderada pelo Reino Unido (42 589), Itália (34 610), França (29 633), Espanha (28 322), Bélgica (9696), Alemanha (8883), Holanda (6089) e Suécia (5053). Antes de Portugal, aparece ainda a Irlanda (1715), que tem um população de quatro milhões de habitantes - menos de metade da população portuguesa (11 milhões). São sinais de que os dados não existem por si só.
Além disso, a taxa de letalidade [relação entre os casos confirmados de covid-19 e o número de mortes] em Portugal, a 21 de junho, estava em cerca de 4% por 100 mil habitantes, sendo por isso "inferior à da maioria dos países da Europa", de acordo com o Ministério da Saúde. Segundo o site Worldometer, é o 8.º melhor posicionado da UE, depois da Eslováquia, Chipre, Luxemburgo, Letónia, Noruega, República Checa e Estónia. Na Europa, França, Bélgica, Itália, Reino Unido e Hungria são os países com maior taxa de letalidade.
Ainda assim, em Portugal a taxa de letalidade diminui ainda mais quando se analisa os números da última quinzena (1,20%) ou da última semana (0,6%), em que os óbitos foram sempre inferiores a dois dígitos.
Em Espanha, por exemplo, medir a última quinzena é contar a história de um governo acusado de omitir números de infetados. No total, a pandemia em Espanha já fez mais de 28 mil mortos, segundo uma atualização feita na sexta-feira depois de ter sido noticiado que os dados do Ministério da Saúde não batiam certo com os que são registados pelas regiões autónomas. O país esteve duas semanas com o número estagnado em 27.136 óbitos. Os dados avançados na sexta-feira pelo ministro da Saúde, Salvador Illa, em conferência de imprensa, mostram que há mais 1177 mortes.
Ao nível das infeções, os dados do Centro Europeu de Controlo de Doenças (CECD) para o período entre 14 e 20 de junho mostram que Portugal teve o segundo pior rácio de novas infeções por cada 100 mil habitantes entre os dez países europeus com mais contágios, apenas atrás da Suécia. Nesta semana, o país reportou um total de 2378 novos casos, abaixo da incidência de Reino Unido (8823), Suécia (6359, dados entre 12 e 18 de junho), França (3280), Alemanha (3113). Por outro lado, é verdade que os números dos novos casos de infeção em Portugal nesta semana bateram os registos de países fortemente afetados pela pandemia, como Espanha (2.333), Itália (2.026), Bélgica (632) e Países Baixos (906).
Mas os números, sozinhos, não contam a história toda, lembrava Rowland Kao, professor de ciência de dados da Universidade de Edimburgo, na Escócia, em entrevista à BBC. Para fazer a leitura das estatísticas, é preciso olhar a duas questões: "Os dados subjacentes significam a mesma coisa? E faz sentido comparar dois conjuntos de números se a epidemiologia [todos os outros fatores que cercam a propagação da doença] for diferente?", disse. Cada país, o seu contexto. Na hora de ler as estatísticas e compará-las, devem contar informações como a densidade populacional, os critérios utilizados por cada país na forma de registar as mortes por covid-19 e a estratégia de testagem.
Existem diferenças na forma como os países registam os óbitos, por falta de um padrão internacional comum. Até há pouco tempo, o Reino Unido, por exemplo, só contabilizava as mortes de covid-19 ocorridas em hospitais. As críticas sobre a forma de contagem levaram o governo britânico a mudar a estratégia, divulgando uma linha de mortes em hospitais e outras para as mortes noutros contextos.
As divergências estendem-se à testagem pelo novo coronavírus: quanto mais se testa, maior a probabilidade de obter grandes números de infeções. E, aqui, Portugal é campeão. De acordo com o site Our World in Data, da Universidade de Oxford, foi o país que mais testes fez esta semana entre aqueles comparados e um dos que mais amostras analisa a nível europeu, com cerca de 100 testes efetuados por cada mil habitantes. Espanha, por exemplo, realiza 70 testes por cada mil habitantes e a Alemanha 60.
Olhando num espaço de tempo mais continuado, segundo o site Worldometer, com dados atualizados sobre a covid-19 no mundo, Portugal é o 6.º país da UE que mais testa por um milhão de habitantes. Em primeiro lugar surge Luxemburgo, seguido da Dinamarca, Lituânia, Chipre e Espanha. Considerando a percentagem de testes positivos no total dos realizados, está em 10.º lugar da UE, numa lista liderada pela Suécia, França, Países Baixos, Irlanda, Espanha, Bélgica, Itália, Roménia e Alemanha, antes de Portugal. Neste gráfico, a posição de Portugal depende do número de testes realizados pelos restantes países. A Dinamarca, em 22.º lugar, e a Lituânia, em último (e melhor) lugar, destacam-se, por serem dos países que mais testes realizam e que menos casos positivos registam.
A estratégia é assumida em Portugal pelas autoridades de saúde: o que importa é "testar, testar, testar". Se a ideia é trabalhar para números estagnados de infeção, Donald Trump disse ter a solução: este domingo, durante o comício republicano em Tulsa, o presidente dos EUA admitiu ter reduzido o número de testes feitos para diminuir também o número de casos. Entretanto, a assessora de imprensa da Casa Branca confirmou tratar-se apenas de uma brincadeira.
Portugal evidenciou um rácio de 23,2 novos casos por cada 100 mil habitantes nos últimos sete dias, um desempenho apenas superado pelos 62,47 verificados na Suécia. Estes números estão acima da fasquia de 20 novos casos por 100 mil habitantes, um limite adotado por alguns países e que ditou restrições ou proibições impostas por vários estados à entrada de cidadãos provenientes destas duas nações. Um critério considerado injusto pelo ministros dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.
Em entrevista à Lusa, o governante considerou "legítimo pensar-se" que a imposição de restrições aos voos entre países da União Europeia (UE) se deva a uma concorrência por mercados turísticos, dada a grave crise do setor em toda a UE. Mas alerta ser "um erro encarar" a pandemia de covid-19 "como um campeonato" e "um erro pensar que isto já passou". "Os turistas podem parecer hoje um bem escasso, mas, como é típico aliás da ingenuidade, é um raciocínio errado", acrescenta, explicando que "uma pessoa minimamente informada" vai optar pelo que lhe parecer "mais credível".
E, afinal, "o que é que é mais credível?". "Um país que já teve mais de 500 casos por dia e de um momento para o outro parece que deixou de ter, ou um país como a Alemanha, que teve sempre muitos casos, sempre conseguiu responder bem do ponto de vista do seu sistema de saúde, como aliás Portugal também, e que, volta meia volta, encontra novos surtos?", questiona.
Entre os países europeus que estão a condicionar ou mesmo proibir a entrada de portugueses figuram Áustria, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Estónia, Grécia, Letónia, Lituânia e República Checa. A este lote somam-se também outras nações que não reabriram ainda as suas fronteiras, como, por exemplo, Noruega ou Finlândia.
Não será preciso recuar muito no tempo para lembrar a altura em que se discutia, em parlamento e na esfera pública, a necessidade de dotar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) de material suficiente para responder à pandemia. Prevendo um cenário drástico e prevenindo mortes na ordem de países como China e Itália, já devastados diariamente por milhares de óbitos, o governo português capacitou o país com hospitais de campanha. Passados quase quatro meses desde que foi reportado o primeiro caso, muitos deles continuam de camas vazias.
Contas feitas, importa "sobretudo a capacidade de um país de tratar", lembrou Augusto Santos Silva, na mesma entrevista.
O ministro dos Negócios Estrangeiros lembra que "Portugal tem indicadores de letalidade, isto é, mortos por infetados, dos mais baixos da UE, [e] tem taxas de hospitalização e de internamento em unidades de cuidados intensivos bastante baixas, [o] que mostra que o nosso sistema hospitalar, o nosso Serviço Nacional de Saúde, nunca esteve com resposta insuficiente". "Pelo contrário, nós nunca ultrapassámos os dois terços da nossa capacidade de resposta, mesmo no pico da pandemia", acrescentou.
Há semana que a região e Lisboa e Vale do Tejo alberga a maioria dos casos registados em Portugal, indicando que ainda há muito caminho a percorrer no combate à pandemia no país. Nas últimas 24 horas, são mais 292 casos, segundo o último balanço oficial - 77% deles na região de Lisboa e Vale do Tejo. Como foco de preocupação, a região estará no centro da discussão do governo, esta segunda-feira, que se irá juntar aos autarcas da zona mais afetada para discutir o próximo passo em direção à contenção.
O Presidente da República já alertou: esta é a fase de dissuadir e apelar, mas se for necessário serão tomadas medidas para determinadas localidades ou "mais duras" para impedir ajuntamentos. Marcelo Rebelo de Sousa falava este domingo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, à entrada para o concerto comemorativo do 28º aniversário da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Questionado sobre o que será preciso fazer para sensibilizar os jovens para não adotarem comportamentos de risco, como as recentes festas, o Presidente da República é perentório. "Se houver casos pontuais, específicos, em que haja necessidade de tomar medidas para determinadas localidades ou áreas de freguesias ou haja necessidade de tomar medidas mais duras em termos de intervenção das autoridades para impedir ajuntamentos e para responsabilizar por ajuntamentos, multiplicam-se as participações ao Ministério Público e as pessoas percebem - os jovens e não jovens - que começam a ter um problema grave em cima dos seus ombros", disse.
Ainda no dia anterior, também o primeiro-ministro António Costa deixava uma mensagem aos mais novos, alertando que o facto de serem menos suscetíveis aos riscos da doença de covid-19 não significa que não possam contagiar outros mais suscetíveis, como idosos e doentes de risco. Além disso, os mais recentes dados mostram que os mais novos não estão completamente fora de perigo: o número de jovens internados com covid-19 está a aumentar no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Ainda assim, Portugal continua longe de atingir a mortalidade que grande parte dos países europeus atingem diariamente. Numa visita recente ao Algarve, Christina Lamb, correspondente internacional do The Sunday Times, falava de um país vazio de turistas, onde há sinais de testes grátis ao novo vírus por todo o lado. "Todo o Algarve só registou 15 mortes - apesar de 69 novos casos terem sido identificados após uma festa ilegal em Lagos", escreveu. "Quer seja pela sua história, a sua beleza, a sua cozinha ou a forma como lidou com o coronavírus, Portugal merece ter os turistas de volta. Mas, por enquanto, vou pôr a minha máscara e aproveitar."