Santos Silva: "É legítimo pensar" que restrições sejam concorrência por turistas
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, considera "legítimo pensar-se" que a imposição de restrições aos voos entre países da União Europeia se deva a uma concorrência por mercados turísticos, dada a grave crise do setor em toda a UE.
Em entrevista à Lusa, o ministro diz que "é um erro encarar" a pandemia de covid-19 "como um campeonato" e "um erro pensar que isto já passou".
Refutando as restrições impostas por vários países da UE a voos provenientes de Portugal -- como quarentena, confinamento ou realização de testes -, o ministro insiste que elas se baseiam em dados que não refletem a complexidade da situação epidemiológica.
Questionado sobre se é legítimo pensar que essa "lógica de campeonato" é uma concorrência para ver quem atrai mais turistas, o ministro respondeu: "É legítimo pensar-se isso".
"Eu, que costumo sempre dizer que a ingenuidade não me parece ser um bom princípio em política externa [...], compreendo perfeitamente esse raciocínio", diz.
"Os turistas podem parecer hoje um bem escasso, mas, como é típico aliás da ingenuidade, é um raciocínio errado", acrescenta, explicando que "uma pessoa minimamente informada" vai optar pelo que lhe parecer "mais credível".
"O que é que é mais credível? Um país que já teve mais de 500 casos por dia e de um momento para o outro parece que deixou de ter, ou um país como a Alemanha, que teve sempre muitos casos, sempre conseguiu responder bem do ponto de vista do seu sistema de saúde, como aliás Portugal também, e que, volta meia volta, encontra novos surtos?", questiona.
Santos Silva insiste que o critério usado, por exemplo, pela Dinamarca - um número de infeções inferior a 20 por cada 100 mil habitantes -, é apenas um de vários indicadores e Portugal "contesta que se utilize só um indicador" e que, "a utilizar um indicador, seja este".
"Porque a situação epidemiológica é complexa, portanto, não conta apenas o número de novos casos registados, conta também a taxa de incidência, isto é, a comparação entre os testes realizados e os casos positivos verificados", que em Portugal é "bastante baixa", apesar de o país ser, segundo dados de quinta-feira, "o sexto país da UE que mais testes realiza por milhão de habitantes".
"E conta sobretudo a capacidade de um país de tratar. Portugal tem indicadores de letalidade, isto é, mortos por infetados, dos mais baixos da UE, [e] tem taxas de hospitalização e de internamento em unidades de cuidados intensivos bastante baixas, [o] que mostra que o nosso sistema hospitalar, o nosso Serviço Nacional de Saúde, nunca esteve com resposta insuficiente. Pelo contrário, nós nunca ultrapassámos os dois terços da nossa capacidade de resposta, mesmo no pico da pandemia", afirma.
Ainda sobre a questão da credibilidade dos países em matéria de combate à pandemia, o ministro assegura que o tal turista "minimamente informado" vai também ter em atenção os comportamentos, salientando que em Portugal "as normas são cumpridas e as regras de segurança são respeitadas", o que não deve ser posto em causa por "alguém ter ganho um campeonato, ou por se realizar uma manifestação ou por se realizar uma festa".
Augusto Santos Silva frisa que o combate à pandemia "não é um campeonato" nem "uma luta entre países" e que "é um erro pensar que isto já passou", até porque com o desconfinamento é sabido "que o risco de contágio sobe".
"E por isso é que é tão importante termos medidas muito férreas para diminuir esse risco", diz, mas frisa que "é preciso perceber que o essencial para combater a pandemia não é impedir a mobilidade das pessoas ou obrigar a economia continuar fechada", mas que "todos tenham consciência" das regras.
O ministro assegura compreender que a reabertura de fronteiras na Europa "não é incondicional" e "que cada Estado-membro possa tomar as medidas que entender para garantir a máxima segurança em matéria sanitária dos seus cidadãos, residentes e visitantes"
"Não contestamos que países como a Dinamarca ou a República Checa tenham essa preocupação, o que contestamos é que utilizem apenas um indicador e um indicador inadequado", explica.
Augusto Santos Silva recusa que as declarações que fez na sexta-feira de manhã sejam vistas como uma ameaça de "retaliação" aos países que excluíram Portugal dos países com quem reabrem as ligações aéreas, assegurando que fala de "reciprocidade", "um princípio básico das relações internacionais", que "é sempre bom lembrar".
Mas, assegura, Portugal responde a estas medidas "com informação".
"Naturalmente contestamos a legitimidade e eficiência destas medidas e apresentamos a informação, toda a informação, transparentemente", afirma.
A atuação do secretário-geral da ONU, António Guterres, durante a pandemia de covid-19, "tem sido exemplar", afirma o ministro dos Negócios Estrangeiros, que, pelo contrário, lamenta a inação do Conselho de Segurança.
"A atuação do secretário-geral tem sido exemplar", afirma Augusto Santos Silva em entrevista à Lusa, afastando para já pronunciar-se sobre uma recandidatura do português ao cargo, por considerar "demasiado cedo para falar disso".
António Guterres "foi muito vigoroso e muito tempestivo, oportuno, quando fez a proposta, que infelizmente nem todas as partes ainda aceitaram, de um cessar-fogo geral, para não acrescentar aos problemas da pandemia os problemas de conflitualidade militar", aponta.
Também "foi e tem sido muito oportuno no seu alerta sobre a gravidade da pandemia em si e das respetivas consequências" e "tem sido incansável na mobilização da comunidade internacional em favor das regiões e dos países mais vulneráveis aos efeitos da pandemia", acrescenta.
O ministro distingue esta ação do Conselho de Segurança da ONU, afirmando que "é triste constatar que ainda não conseguiu sequer uma posição comum sobre a pandemia".
Realça, contudo, que "a grande instância da concertação internacional possível na resposta à pandemia é uma organização das Nações Unidas chamada Organização Mundial de Saúde (OMS)", para frisar a importância da ONU no multilateralismo.
"Nós, sem Nações Unidas não vamos lá, é muito importante ter isso em conta", afirma.
"Não podemos desenvolver o comércio internacional sem a Organização Mundial do Comércio, não podemos cooperar entre nós no âmbito da cultura, da educação, da ciência, sem a UNESCO, não podemos acudir à fome no mundo sem o Programa Alimentar Mundial, não podemos amparar e apoiar os migrantes sem a Organização Internacional dos Migrantes", exemplifica.
Questionado sobre se o Governo português já trabalha para a reeleição de António Guterres, Santos Silva considera que "ainda é cedo para falar disso" e frisa que Portugal respeita "os direitos e a liberdade individual de cada um", uma alusão ao facto de o português não ter anunciado a intenção de voltar a concorrer ao cargo.
Mas acrescenta: "O secretário-geral tem mandato até o fim de 2021 [e] não é segredo para ninguém que nos revemos inteiramente quer no programa, quer na ação do atual secretário-geral das Nações Unidas".
O Governo português prevê que os instrumentos aprovados pelo Eurogrupo em abril vão ser suficientes para fazer face à crise provocada pela pandemia até ao final de 2020, enquanto não for desbloqueado o Fundo de Recuperação da União Europeia.
Em entrevista à Lusa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, diz esperar que um acordo sobre o Fundo de Recuperação seja possível "no princípio da presidência alemã" do Conselho Europeu (de 01 de julho a 31 de dezembro), permitindo que o fundo esteja "em pleno com o novo Quadro Financeiro Plurianual logo a partir de janeiro" de 2021.
"Por isso é que a Comissão [Europeia] propõe, e bem, que os Estados-membros, quando apresentarem as propostas de orçamento em outubro, apresentem já os seus planos de recuperação" a financiar com verbas do fundo.
Até 31 de dezembro de 2020, o Governo conta com os instrumentos aprovados pelo Eurogrupo, "de aplicação imediata": o programa SURE para financiamento das questões do emprego e formação, o Mecanismo Europeu de Estabilidade para financiamento adicional de Estados que necessitem e duplicação das linhas de crédito do Banco Europeu de Investimento (BEI) para as empresas".
Questionado sobre se estes instrumentos são suficientes para fazer face à diminuição de receitas e aumento de despesas provocados pela pandemia em Portugal, Santos Silva admite que sim, desde que seja aprovado o orçamento suplementar.
"A nossa previsão é que sim, se a Assembleia da República aprovar o orçamento suplementar, como aliás foi aprovado na generalidade", na quarta-feira.
"Porque no Orçamento suplementar o que pedimos é que aumente o teto, o limite, de endividamento do Estado [...] que nos permite ir buscar mais aos mercados, mais o valor que estimamos receber sobretudo do programa SURE", explica.
Os ministros das Finanças da UE acordaram em abril um pacote de emergência num montante global de 500 mil milhões de euros, adotado dias mais tarde pelo Conselho Europeu.
Esse pacote de emergência é constituído por três "redes de segurança": uma linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade, através da quais os Estados-membros podem requerer até 2% do respetivo PIB para despesas direta ou indiretamente relacionadas com cuidados de saúde, tratamentos e prevenção da covid-19, um fundo de garantia pan-europeu do Banco Europeu de Investimento para empresas em dificuldades, e o programa «Sure» para salvaguardar postos de trabalho através de esquemas de desemprego temporário.
Já no final de maio, a Comissão Europeia apresentou a proposta de um Fundo de Recuperação da economia europeia no pós-pandemia, no montante global de 750 mil milhões de euros, e de um Quadro Financeiro Plurianual revisto para 2021-2027, no valor de 1,1 biliões de euros.
Daquele fundo, que a proposta prevê canalizar dois terços por subvenções e um terço por empréstimos, poderão caber a Portugal aproximadamente 26 mil milhões de euros, 15,5 mil milhões dos quais em subvenções e os restantes 10,8 milhões sob a forma de empréstimos (voluntários) em condições muito favoráveis.
Os líderes dos 27, reunidos em Cimeira na sexta-feira, não chegaram a acordo sobre estas propostas, manifestando contudo na generalidade a vontade de o alcançar em julho.
O que ainda separa os 27, segundo o ministro, "é basicamente a questão de saber qual é o equilíbrio entre subvenções e empréstimos no conjunto dos recursos, saber qual é a chave de repartição dos recursos pelos diferentes países e em que condições é que os diferentes países devem aceder aos recursos".
O modelo social europeu "é a melhor arma" dos cidadãos europeus, uma transição económica, ambiental e energética "bem-sucedida" e geradora de valor, defende o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, em entrevista à Lusa.
Na entrevista, o ministro fala também da Cimeira UE-África, prevista para a presidência alemã, mas dependente ainda de "desenvolvimentos importantes" que estão atrasados devido às limitações impostas pela pandemia, e da Cimeira UE-Índia, em que Portugal espera contribuir para desbloquear as negociações para um acordo económico, bloqueadas desde 2013.
Com o pilar social entre as prioridades da presidência portuguesa da União Europeia (UE), e uma Cimeira Social prevista para o Porto, Augusto Santos Silva frisa que o modelo social europeu é "o motor da economia, do emprego e da distribuição de rendimentos".
"É muito importante que os europeus compreendam que o seu modelo social é a melhor arma [...] que possuem para assegurar uma transição bem-sucedida em matéria de transformação digital da economia, do pacto verde, de transição energética", afirma.
Para Santos Silva, é essa Europa das "questões sociais, da coesão social, da luta contra as desigualdades, da igualdade de oportunidades, dos indicadores de bem estar, da qualidade dos sistemas de segurança" que "permite que as pessoas olhem para a digitalização da economia, não como uma ameaça ao seu emprego ou os seus rendimentos, mas como uma transformação muito importante que pode gerar ainda mais valor", sublinha.
Para o semestre em que exerce a presidência do Conselho Europeu, de janeiro a junho de 2021, o Governo português tem planeada para 07 e 08 de maio, no Porto, uma Cimeira Social e um Conselho Europeu informal que visa lançar a concretização do Pilar dos Direitos Sociais proclamado na última cimeira social, em novembro de 2017 em Gotemburgo (Suécia).
"Espera-se que o conselho informal seja uma ocasião para validar esforços de concretização do Pilar Europeu dos Direitos Sociais", afirma.
"Estamos a falar de encontrar formas de apoio europeu aos Estados-membros em matéria de subsídios de desemprego, a Comissão Europeia está a trabalhar no chamado mecanismo de resseguro europeu do subsídio de emprego, num certo sentido o programa SURE já antecipou, porque já construiu um esquema de apoio aos Estados membros no subsídio de desemprego, nas despesas em que incorrem com o subsídio de emprego ou despesas associadas por exemplo com o 'lay-off'", explica.
Em agenda, também, vai estar a "declinação dos direitos sociais por gerações", "a garantia jovem", que já existe, "a garantia criança", em que a Comissão está a trabalhar e o "Livro Verde sobre o envelhecimento" da UE.
Há depois uma terceira dimensão "relativa às questões de género, igualdade salarial entre homens e mulheres, conciliação entre a vida profissional e a vida familiar e a importância do teletrabalho", entre outros.
Finalmente, as questões de rendimentos: "Nós discutimos muito na Europa hoje, e discutiremos cada vez mais, questões como o salário mínimo, se deve haver ou não compromissos europeus em matéria de salário mínimo, se deve haver ou não um compromisso europeu em matéria de rendimentos mínimos, etc", afirma.
"Portanto há todo um conjunto de dimensões sociais que estão bem proclamadas no chamado Pilar Europeu dos Direitos Sociais e, portanto, que importa concretizar. E o que queremos é que a cimeira social da nossa presidência seja o ponto da situação do que já está concretizado e o lançamento do que falta", diz.
Quanto à Cimeira UE-África, prevista para a presidência alemã, para outubro, Santos Silva admite que faltam "desenvolvimentos importantes" que estão atrasados devido às limitações impostas pela pandemia.
Trata-se, explica, da "conclusão da negociação do acordo de cooperação pela União Europeia os países da África Caraíbas e Pacífico" (ACP), da "definição de uma estratégia conjunta de cooperação de parceria Europa África" e da expetativa de que "possa haver ainda uma reunião entre ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia e da União Africana", que esteve prevista para Kigali, em maio, mas foi adiada.
"Agora, nós preparamos a nossa presidência partindo do princípio de que tudo isto se realiza e, portanto, teremos a responsabilidade muito importante de começar a implementação da estratégia. Mas estamos preparados para qualquer cenário", declara.
Além de metas como a aprovação da estratégia conjunta UE-UA, para que entre em vigor na presidência portuguesa, a implementação do acordo UE-ACP e a aplicação do novo Instrumento de Vizinhança Desenvolvimento e Cooperação Internacional, que financiará a Ação Externa da UE, Portugal "tem alguma esperança" de que "se possam iniciar as primeiras conversas entre europeus e africanos sobre o que, se tudo correr bem, daqui a uns anos será um acordo comercial entre os dois continentes".
"Porque, neste momento, África já está a construir zona de comércio livre à escala continental, e portanto nós vamos passar a poder pôr em cima da mesa um acordo entre um bloco comercial que vale 450 milhões de pessoas e um continente que hoje valerá 1200 ou 400 milhões pessoas", explica.
Já quanto à Cimeira UE-Índia, segundo o ministro, "a ambição" de Portugal é "tentar desbloquear negociações que estão muito cristalizadas estão muito pouco dinâmicas desde 2013", quando ficaram bloqueadas "as negociações para um acordo económico, seja de comércio, seja de investimento, seja misto".
Para isso, Portugal conta com "o tipo de relacionamento que tem com a Índia" e "o tipo de facilidade de contacto que Portugal, país europeu, tem com todos os países não europeus", como "um elemento positivo para esse desbloqueamento".
Trata-se, afirma, de "uma questão de equilíbrio na relação geoestratégica da Europa", em que importa juntar a Índia ao conjunto de encontros de alto nível que a UE realiza com outros "grandes atores", tal como a América Latina, com a qual a presidência portuguesa quer "relançar a dinâmica".