"Retirar artigo sobre assédio sexual no CES é um escândalo internacional"

A deputada brasileira Isabella Gonçalves, que acusa Boaventura de Sousa Santos de a ter assediado quando foi sua orientanda, diz que a editora Routledge se vergou à censura. E revela que o sociólogo tentou, em maio, chegar a acordo com ela - e que o texto de "mea culpa" publicado no <em>Expresso</em> em junho era parte do acordo.
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"Estou bastante revoltada com a Routledge. Uma editora tão grande, que fez um processo de seleção de artigos tão criterioso, aceitar ser censurada após uma evidente pressão judicial... A retirada desse artigo é censura e um escândalo internacional."

Estas palavras, referindo a decisão da editora Routledge, tornada pública esta quinta-feira pelo DN, de retirar de um livro sobre assédio sexual na academia (Sexual Misconduct in Academia) o capítulo sobre o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) e Boaventura de Sousa Santos, são de Isabella Gonçalves, deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) que em abril assumiu ser uma das vítimas de assédio referidas nesse capítulo (no qual nem o centro académico nem os intervenientes são identificados). É ela a "estudante internacional de doutoramento" que, como ali é narrado, foi alvo de uma proposta do seu orientador, o "Professor Estrela", de troca de "apoio académico" por intimidade.

"Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação". É isto, narrado ao site jornalístico brasileiro Pública, que Isabella diz ter-se passado em 2013 com o então diretor do CES.

Seria o próprio Boaventura de Sousa Santos a assumir ao DN em abril, ao ser confrontado com o conteúdo do capítulo, que é ele o "Professor Estrela", reputando tudo o que nele é dito sobre si como "insultuoso" e "difamação vil" e anunciando avançar com processos contra as autoras do capítulo - a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a americana Myie Nadia Tom. Processos que, afinal, admitiu em julho ao DN não ter ainda desencadeado, garantindo também não ter tomado qualquer iniciativa junto da Routledge para que esta retirasse o capítulo nem "conhecer os detalhes da decisão da editora" de suspender a venda da obra em junho.

Já esta quinta-feira, quando o DN o quis ouvir sobre o facto de a Routledge ter, na sequência de várias queixas e de pelo menos uma carta de "cease-and-desist" (cessar e desistir), decidido "despublicar" o capítulo que considera difamá-lo, o sociólogo não respondeu.

Destaquedestaque"Boaventura mandou uma pessoa, uma advogada, para tentar chegar a um acordo comigo. Ela estava todo o tempo tentando conduzir a coisa para que eu assinasse uma declaração de que nada aconteceu, e que se alguma coisa aconteceu foi porque o Boaventura se apaixonou e não tem culpa de se ter apaixonado."

Haverá porém poucas hipóteses de que Boaventura de Sousa Santos não seja um dos queixosos que enviaram cartas à Routledge - aliás, o sociólogo assumiu perante o DN que escreveu à editora britânica apresentando as sua "críticas". Quanto à carta de cease-and-desist (procedimento legal existente no sistema jurídico anglo-saxónico através do qual alguém que se considera lesado "avisa" o autor/responsável dessa alegada lesão, requerendo que cesse a ação em causa) apenas poderá ser ou dele ou do investigador designado no capítulo como "O Aprendiz", o antropólogo Bruno Sena Martins. Isto porque a editora disse às coordenadoras da obra que essa carta, enviada em junho, é de alguém que no capítulo é acusado de assédio, e as únicas "personagens" acusadas de assédio ou abuso sexual são "O Aprendiz" e "O Professor Estrela". Sendo que também "O Aprendiz", Sena Martins, afiançou em agosto ao DN não ter tomado qualquer iniciativa junto da editora.

Garantias que Isabella Gonçalves refuta: "Decidi falar agora para contradizer isso que eles dizem, de não terem feito qualquer ação, porque eles começaram desde cedo a movimentar-se no campo jurídico. A estratégia de Boaventura foi tentar mobilizar o seu campo de apoio académico para tentar descredibilizar as mulheres que o acusavam, como por exemplo com a afirmação de que a Lieselotte [a autora principal do capítulo] tinha sido expulsa do CES, o que o DN já mostrou que não é verdade. Passou também por essa ação junto da Routledge que acredito que foi extrajudicial, e por uma outra coisa que aconteceu: o Boaventura mandou uma pessoa para tentar chegar a um acordo comigo."

Essa pessoa, prossegue Isabella, é "uma mulher, brasileira, advogada, que disse que era amiga dele e que, ao ver que eu e ele estávamos a sofrer, queria ajudar a procurar um acordo na perspetiva da justiça restaurativa."

A deputada informa que chegou a reunir com a advogada (o DN contactou a causídica por email, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo). E que aceitou fazê-lo porque acreditou "ser de facto uma possibilidade de construir um processo de justiça restaurativa".

"Me dispus a conversar com ela, porque fui muito pressionada por várias pessoas que falavam o quanto o Boaventura estava mal, e o quanto outras pessoas estavam mal, e que era preciso que eu ajudasse a redimi-lo e não sei quê, e eu me dispus a conversar com essa mulher, porque achei que era mediadora", explica Isabella. Mas a reunião, que teve lugar a 16 de maio, não correu bem.

"Foi uma reunião bastante violenta, não da parte dela, mas para mim, por estar a reviver tudo o que sucedeu e porque todas as condições que eu colocava eram desconsideradas. Ela estava todo o tempo tentando conduzir a coisa para que eu firmasse um termo [assinasse uma declaração] de que nada aconteceu comigo, e que se alguma coisa aconteceu foi porque o Boaventura se apaixonou e não tem culpa de se ter apaixonado."

A proposta da advogada era então de que a deputada assinasse uma declaração "aceitando as desculpas dele, e aceitando que não fez por mal". Isabella recusou. "Disse que não ia aceitar, não concordava com isso, assim como não concordava com a ameaça de processo contra as outras mulheres. Não iria fazer qualquer processo de justiça restaurativa individualmente, mas apenas se estivessem incluídas todas as mulheres que o estão denunciando."

Uma das condições de Isabella para que um processo desse tipo pudesse prosseguir era de que o sociólogo fizesse uma retratação pública. "Aí ele fez uma carta num jornal [trata-se de um texto publicado a 4 de junho no Expresso], falando que era uma espécie de reconhecimento, que como homem podia ter cometido erros. Mas essa carta é absolutamente insatisfatória, não reconhece nada. E interrompi o processo."

Perguntada sobre qual acha que será o motivo pelo qual Boaventura nunca tentou até agora desmentir publicamente o relato que ela faz, e porque terá tentado convencê-la a aceitar as suas desculpas, a política não hesita. "Há vários fatores. Primeiro, porque tenho muitas testemunhas do meu caso de assédio, porque foi muito conhecido no CES. Outro é que um dos espaços em que ele é mais conhecido publicamente é no Brasil, é talvez até mais lido no Brasil que em Portugal. E aqui no Brasil sou uma pessoa importante, sou deputada do PSOL. E o terceiro é que eu fui uma voz pública, que decidiu colocar a cara nas denúncias. Porque no coletivo de mulheres do qual faço parte, e que vão apresentar as suas denúncias à Comissão do CES nomeada para investigar o relatado no capítulo, há muitas que ainda não se expuseram, porque é um processo muito violento."

Destaquedestaque"Decidi falar, contar isso tudo, porque eu não tenho o tempo, o dinheiro que o Boaventura tem para acionar a Routledge para a levar a suspender um artigo que passou por uma revisão científica. Esse cara goza de tanto privilégio para acionar uma rede judicial, académica, para defendê-lo que por amor de Deus. É vergonhoso."

Referindo o ataque de Boaventura à ativista indígena Moira Millán, que igualmente o acusou de assédio, Isabella assume esperar que o sociólogo lhe tente fazer o mesmo - como, de resto ameaçou numa entrevista que deu em julho, e na qual afirmou ter também "emails" relativos a Isabella para apresentar. Mas, acrescenta a deputada com uma gargalhada, "é só um a mais. Estou aqui hoje no Brasil escoltada pela polícia militar, num contexto de ameaças de morte, tenho polícias 24 horas por dia atrás de mim, porque tem minerador querendo me pegar, bolsonarista querendo me pegar. Boaventura seria só um a mais."

E conclui: "Decidi falar, contar isso tudo, porque eu não tenho o tempo, o dinheiro que o Boaventura tem para acionar a Routledge para a levar a suspender um artigo que passou por uma revisão científica. Esse cara goza de tanto privilégio para acionar uma rede judicial, académica, para defendê-lo que por amor de Deus. É vergonhoso."

Em julho, o DN confrontou Boaventura de Sousa Santos com a informação de que uma das suas alegadas vítimas dizia ter sido contactada por um advogado em seu nome. O sociólogo disse que tem apenas um advogado português a representá-lo, e que este não contactou ninguém.

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