Ação legal na origem de suspensão de livro que denuncia Boaventura. Autora fala em "silenciamento"

Uma "queixa" relativa ao livro que acusa Boaventura de Sousa Santos de assédio sexual está na origem da decisão da editora Routledge de retirar a obra de venda. Facto foi adiantado ao DN por duas das autoras. Editora não confirma nem desmente; Boaventura não respondeu a perguntas do jornal.
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"Por muito tempo, as vítimas de abuso sexual foram forçadas ao silêncio. Agora, este livro ofereceu-lhes um espaço no qual partilhar as suas experiências."

Estas palavras foram escritas a 23 de março na rede social Twitter pela académica britânica Erin Pritchard, da Universidade de Hope, Liverpool, uma das duas responsáveis (a outra é Delyth Edwards, da Universidade de Leeds) pela coletânea Sexual Misconduct in Academia (Conduta Sexual Inapropriada na Academia), anunciando a respetiva publicação. Como é sabido, cerca de três meses depois a Routledge, a editora académica sediada no Reino Unido que publicou o livro, apagava a página respeitante ao mesmo, enquanto a Taylor & Francis, grupo editorial proprietário da Routledge, assinalava no seu site a indisponibilidade do livro com a frase "This content is temporarily unavailable as it"s currently under review" ("este conteúdo está temporariamente indisponível, por estar em revisão").

Até agora nenhuma explicação pública fora dada, quer pela Routledge/Taylor & Francis quer por Pritchard e Edwards, sobre o motivo concreto da retirada da obra, a qual também já não está disponível em sites livreiros nacionais como o da Wook e da Bertrand. E que, como o DN noticiou em abril, acusa no seu capítulo 12, sob a crisma de "Professor Estrela", sem o identificar nem ao centro académico (o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) onde os factos alegadamente ocorreram, o sociólogo Boaventura Sousa Santos de assédio sexual.
Mas duas das autoras das coletânea - são ao todo 23 -, contactadas pelo DN, vêm lançar luz sobre a decisão da editora: adiantam terem sido informadas pelas responsáveis da obra de que a Routledge foi alvo de uma "queixa" ou "demanda" (ou seja, algum tipo de ação legal).

"O que percebi é que o livro foi temporariamente retirado enquanto a editora lida com uma queixa", diz ao jornal a autora do posfácio, Anna Bull, docente (Senior Lecturer) de Educação e Justiça Social na Universidade de York (Reino Unido). "Desaponta muito que um livro que procura quebrar o silêncio existente sobre assédio sexual na academia seja ele próprio sujeito a um processo de silenciamento. Isto é prova das enormes dificuldades com que se deparam sobreviventes, ativistas e investigadores quando querem falar sobre o tema, mesmo quando desenvolvem trabalho que procura analisar e explicar o fenómeno sem nomear os abusadores e as instituições."

Bull, que é fundadora e co-presidente do The 1752 Group, organização de investigação, consultoria e ativismo fundada em 2016 com o objetivo de "acabar com o conduta sexual inapropriada de funcionários/professores na educação superior", e que no posfácio refere o capítulo 12 de forma elogiosa, diz esperar que a editora "faça a coisa certa, e recoloque o livro em circulação muito em breve".

Também outra das autoras de Sexual Misconduct in Academia, que pediu para não ser identificada, acede, após sugerir ao jornal que contacte Pritchard e Edwards para mais informações (e depois de ser informada de que, tendo feito isso mesmo, o DN não recebeu resposta), a fazer um comentário: "O livro foi feito com altos padrões de qualidade. Foi sujeito a várias revisões e avaliações antes de ser publicado. É um livro de alta qualidade. Mas alguém demandou as responsáveis ou a editora porque contém um artigo que denuncia um caso de assédio sexual, e essa pessoa não gostou."

Quando lhe é explicado que o interesse de um jornal português se deve ao facto de o capítulo 12 da obra se referir a um centro académico que, apesar de não nomeado nem localizado geograficamente, foi identificado, com base no percurso académico das autoras, como o Centro de Estudo Sociais da Universidade de Coimbra (CES), e a personagem principal - o "Professor Estrela" - como o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, esta autora revela estar a par: "Sim, sei disso tudo."

Ainda assim, nenhuma destas duas autoras quis revelar de quem proveio a queixa e de que tipo de ação legal se trata. Quanto às outras signatárias da coletânea, nenhuma respondeu aos contactos do DN - incluindo as três autoras do capítulo 12, a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a americana Myie Nadia Tom, e as responsáveis pela obra, Pritchard e Edwards.

Este comportamento parece indiciar que a ação legal em causa implicará uma espécie de "mordaça". Tratar-se-á de algo semelhante a uma providência cautelar, procedimento que no sistema jurídico britânico pode tomar várias formas, quer por via dos tribunais (como uma providência cautelar no nosso sistema) quer, numa primeira fase, através de uma carta de aviso/interpelação de quem se considera lesado, solicitando que a entidade interpelada, para evitar um processo, faça cessar o ato danoso. Esse tipo de ação pode, segundo juristas ouvidos pelo DN, incluir como condição que o alvo da interpelação não publicite o procedimento.

É para algo desse tipo que aponta a resposta dada pelas responsáveis da coletânea, Pritchard e Edwards, quando contactadas, a 5 de julho, por um académico português, o docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) Miguel de Lemos.

"Infelizmente estamos impedidas de comentar neste momento, o que espero que compreenda. Estamos 100% ao lado do livro e de todas as nossas autoras. Escrever é ativismo. Assim que pudermos, explicaremos a situação", respondeu Delyth Edwards ao jurista, que pediu licença para, caso escrevesse um artigo de opinião sobre o assunto, citar a resposta (acabaria por não publicar o dito artigo, tendo permitido ao DN usar a citação).

Na mesma ocasião, Edwards, socióloga especialista em questões de infância, juventude e inclusão, e que além de ter co-dirigido a obra é autora de um dos capítulos do livro (tanto ela como Pritchard assumem ter sido vítimas de condutas sexuais inapropriadas na academia), agradeceu ao jurista o facto de ter contactado a Routledge a inquirir sobre a respetiva retirada.

Essa outra démarche de Miguel de Lemos (cujo papel na denúncia do assédio sexual de docentes a alunos FDUL, em abril de 2022, teve como consequência ser sujeito a um processo disciplinar pela reitoria da UL, o qual acabaria arquivado) resultou num email muito pouco informativo do chefe de vendas da editora para a Europa: "Nesta altura, o livro foi retirado de venda... Isto pode ter sucedido por várias razões (questões de produção, legais, etc) mas ninguém me confirmou o motivo."

Também ao DN, já em agosto, a Taylor & Francis/Routledge recusou qualquer esclarecimento adicional. Mesmo quando o jornal confrontou este grupo editorial com as afirmações públicas de Boaventura de Sousa Santos - tanto numa entrevista tornada pública a 11 de julho no Youtube como em declarações ao DN - que associam categoricamente a suspensão do livro ao capítulo 12 e às acusações nele efetuadas ao sociólogo, e perguntou se a Routledge foi alvo de alguma queixa ou procedimento legal atinentes ao livro e a esse capítulo em particular.

"Posso confirmar, como indicado no website, que o título Sexual Misconduct in Academia está em revisão. Lamento não poder dizer mais nada enquanto o livro está em revisão", respondeu Mark Robinson, Corporate Media Relations Manager da Taylor & Francis, não confirmando mas também não negando as afirmações de BSS e a existência de uma ação legal.

Esta quinta-feira, informado de que o DN obteve essa confirmação por via de duas das autoras, e questionado sobre que tipo de ação se trata e apresentada por quem, que tipo de "revisão" do livro está a ser efetuada e se não era suposto que toda a revisão necessária tivesse sido feita antes da publicação, Robinson volta a não responder às questões - e a não negar a existência da ação legal: "Penso que é improvável que neste momento possa dar mais detalhes. Mas vou informar-me junto dos meus colegas sobre se há algumas novidades sobre a revisão de que lhe possa dar conhecimento."

Recorde-se que tanto BSS como o antropólogo e investigador do CES Bruno Sena Martins, que no capítulo 12 do livro, como o próprio reconheceu ao DN, é denominado de "O Aprendiz", reagiram em abril à publicação do livro ameaçando com ações legais. BSS anunciou que iria avançar com "uma queixa-crime por difamação" contra Viaene, Laranjeiro e Tom, enquanto Sena Martins garantiu ter a intenção de "procurar justiça nas instâncias competentes".

Este último asseverou no entanto ao DN não ter até ao momento tomado qualquer iniciativa do género: "Não desencadeei qualquer ação legal junto da editora. Só soube da suspensão [da venda do livro] pelas notícias dos jornais." Também quanto às autoras do capítulo, esclarece, não avançou com processo. "A Comissão Independente [criada pelo CES para analisar o caso, e cuja composição foi anunciada a 1 de agosto] foi constituída e aguardo pelo seu trabalho."

Boaventura de Sousa Santos - em relação a quem, recorde-se, uma das acusações de assédio sexual constantes no capítulo 12 foi confirmada de viva voz em abril pela alegada vítima, a hoje deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade Isabella Gonçalves, sem que o sociólogo até agora a desmentisse - foi bem menos claro. Se, na já referida entrevista de 11 de julho, no Youtube, foi taxativo na certificação de que a decisão da Routledge - editora na qual, frisa, tem várias obras publicadas, uma das quais, From the Pandemic to Utopia, the Future Begins Now já após o rebentar do escândalo - tem a ver com o capítulo 12 e consigo, diria a seguir ao DN não conhecer "os detalhes da decisão". Ao mesmo tempo, porém, que reforçava a ideia de que esta está relacionada com as acusações que lhe são feitas no dito capítulo.

"Posso informar que o livro está suspenso, por a acusação ser tão grave. Porque é na verdade uma acusação criminal sob o disfarce de um trabalho científico", declarou BSS na entrevista publicada no Youtube, na qual também disse esperar "que a editora reconsidere. Porque publicou cinco livros da minha autoria, dois singulares e três coletivos."

O sociólogo chega até a revelar a opinião da Routledge sobre o capítulo 12: "Eles próprios estão um pouco perplexos com a qualidade deste capítulo." Tal pressupõe que existiu uma "conversa" com a editora sobre o capítulo - aliás Boaventura de Sousa Santos assumiu ao DN que ao tomar conhecimento do conteúdo do livro contactou a editora, para, explica, "expor diretamente as minhas críticas, críticas essas que mantenho, tratando-se de um texto que faz acusações sem fundamento à minha pessoa".

Mencionando também as "críticas bastante contundentes" que o capítulo 12 terá sofrido "no meio académico em relação ao seu caráter pouco ou nada científico" (entre as quais uma "Carta aberta de destacadas personalidades de vários países em solidariedade com o professor Boaventura de Sousa Santos", cujo primeiro signatário é o Prémio Nobel da Paz de 1980, o argentino Adolfo Perez Esquivel), BSS disse ao jornal ver a decisão da Routledge como "natural" e como "um reconhecimento, ainda que tardio, de que o artigo não devia ter sido publicado." É pena, comenta, "que se tenham apercebido disso meses depois de destruírem a minha imagem e depois de me causarem irrecuperáveis prejuízos a nível pessoal e profissional."

A expectativa de BSS em relação ao resultado da "revisão" anunciada pela editora é, pois, o exato contrário do que esperam a autora do posfácio, Anna Bull, e as responsáveis pela obra, Erin Pritchard e Delyth Edwards: ele que o capítulo seja retirado, elas que a Routledge volte a colocar o livro à venda com o conteúdo original.

Para já, a suspensão da obra e o silêncio de quase todas as autoras, assim como da generalidade dos meios académicos e feministas internacionais (e, não despiciendo, dos media anglo-saxónicos) em relação a essa suspensão - só em Portugal e na América Latina esta foi matéria noticiosa e de debate público, contando com vários artigos de opinião e uma carta aberta, exigindo explicações, dirigida à Routledge e publicada a 10 de julho no site Buala - não parece um bom presságio no que respeita à esperança de Bull, Pritchard e Edwards.
Afinal, nem sequer a organização de combate ao assédio sexual na academia de que Bull faz parte - The 1752 Group - e da qual as duas responsáveis pela obra parecem próximas, tendo-a inclusive referido no anúncio, efetuado em 2020, de "chamada de capítulos" para o livro, tinha, até ao contacto do DN, feito qualquer comentário ou protesto públicos sobre a suspensão da obra.

Um silêncio com o qual Marta Lança, editora do Buala e uma das redatoras do manifesto Todas Sabemos (de solidariedade com as autoras do capítulo 12) não se conforma.

"Não percebo como é que as comunidades académicas e feministas não se insurgem junto da Routledge contra esta censura. Também não entendo o silêncio das diversas autoras do livro. Nem das editoras [Prichard e Edwards], para quem escrevi e que disseram que não podem dar nenhuma explicação. Imagino que haverá razões de natureza legal, eventualmente ameaça de processo judicial. Não acredito que seja por razões editoriais, uma vez que a Routledge tem uma qualidade certificada e o volume significa dois anos de trabalho e envolve várias autoras. Portanto é uma questão de medo", diz ao DN esta doutoranda em Estudos Artísticos.

Que se choca igualmente com a ausência de reação da sociedade em geral: "O livro foi suspenso em meados de junho, e desde então esse facto suscitou quase zero indignação nas redes sociais. Relembro a indignação quando, em 2014, o nº 212 da Revista Análise Social foi retirado de circulação por causa de um artigo ilustrado com graffiti críticos do governo de Passos Coelho..." O contraste entre uma situação e outra, crê, pode dever-se "também a questões instrumentais ideológicas - haverá uma certa esquerda que não se quer comprometer num processo que envolve figuras de referência, que estão "do nosso lado da barricada". Em relação a estes, para não prejudicar "a causa", "o partido", etc, podem-se suspender os princípios de esquerda."

Em causa poderá estar também o receio que a comunidade académica, por mais ativista que seja, terá de se incompatibilizar com um grupo editorial tão poderoso e prestigiado. Certo é que a existência da ação legal, que será há dois meses do conhecimento de mais de 20 autoras de várias nacionalidades e instituições académicas, foi até agora mantida fora da discussão pública - silenciada, portanto.

fernandacanciodn@gmail.com

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