10% dos docentes da Faculdade de Direito da ULisboa denunciados por assédio e discriminação

Escola abriu um canal para receção de denúncias de assédio: em 11 dias, recebeu 50, relativas a 31 docentes; sete concentram mais de metade das queixas. Associação académica fala de "sentimento de impunidade" e "clima de medo"; direção da faculdade afirma "tolerância zero" e concorda com a criação de um código de conduta.

29 casos de assédio moral e 22 de assédio sexual; oito práticas discriminatórias de sexismo, cinco de xenofobia/racismo e uma de homofobia. É o resultado de 11 dias de "canal aberto", de 14 a 25 março, na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), para envio de relatos de assédio/más práticas por parte do corpo docente.

(Por lapso, na manchete da edição impressa do jornal que está nas bancas esta segunda-feira identificámos a escola em causa como sendo a faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; por este facto, pedimos desculpa).

De acordo com o relatório desta experiência, ao qual o DN teve acesso, e que conclui pela existência de "problemas sérios e reiterados de assédio sexual e moral perpetrados por docentes da Faculdade", houve 70 denúncias, 50 das quais foram validadas como relevantes. Dizem respeito a 31 docentes, ou seja, cerca de 10% do total de professores e assistentes da escola. Sete deles concentram mais de metade (30) das denúncias, havendo um com nove e dois com cinco; 19 dos testemunhos referem "práticas reiteradas".

As situações relatadas ocorreram, na sua maioria, presencialmente, mas também através das redes sociais e por email. A vasta maioria dos relatos respeitante a ações presenciais, informa-se, "refere-se a atividades em aula ou na sequência da aula, embora também haja casos relativos a provas orais (cinco) e um relativo a uma prova escrita."

O documento, elaborado por uma comissão paritária de três docentes e três alunos criada por iniciativa do Conselho Pedagógico, comissão essa que decidiu abrir o referido "canal" para denúncias, não descreve qualquer situação concreta (os relatos foram anonimizados para a análise; apenas uma pessoa da comissão sabe a quem se referem) mas elenca o que foi considerado assédio sexual.

"Repetir sistematicamente observações sugestivas, piadas ou comentários sobre a aparência ou condição sexual; realizar telefonemas, enviar cartas, mensagens ou e-mails indesejados, com texto ou imagens, de caráter sexual, de forma expressa ou insinuada; promover o contacto físico intencional e não solicitado, ou excessivo, ou provocar abordagens físicas desnecessárias; enviar convites persistentes para participação em programas sociais ou lúdicos, quando a pessoa visada demonstrou que o convite é indesejado", exemplifica-se. E acrescenta-se: "Apresentar convites e pedidos de favores sexuais associados a promessa de obtenção de vantagens académicas ou profissionais, podendo esta relação ser expressa e direta ou insinuada)".

De acordo com o que o DN conseguiu saber, há nas denúncias referência a um professor da FDUL que praticará tal "lógica transacional".

Quanto ao assédio moral, é assim exemplificado: "Pela sua gravidade ou repetição, tentativas de intimidações ou represálias, atos provocatórios e humilhantes, comportamentos acintosos que demonstrem falta do respeito ou consideração devidos), que representam uma quebra na confiança própria da relação pedagógica e impedem a criação de um ambiente propício à aprendizagem."

"Clima de terror" e "atos degradantes"

Em metade dos relatos, as práticas descritas terão tido como destinatário uma pessoa ou, em caso de comportamento reincidente, várias separadamente; noutra metade, ter-se-ão dirigido aos alunos em geral, ou a "categorias" de alunos.

Os alvos de xenofobia/racismo terão sido alunos brasileiros, negros ou originários de países africanos de língua oficial portuguesa; no caso do sexismo, todos os casos se referem a discriminação de pessoas do género feminino. Não é identificado o alvo do único caso de homofobia referido.

Catarina Preto, presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, faz parte da comissão paritária que analisou os relatos. E assume ao DN não ter ficado surpreendida.

"Veio ao encontro do que já sabia - aliás mesmo se não tive acesso ao nome dos professores consegui identificar alguns por conhecimento de casos - embora algumas peripécias específicas me tenham chocado. De acordo com as conversas que tenho com outras associações, isto acontece em todas as faculdades, numas mais e noutras menos", diz. "Há que haver um basta nestas situações, que são gravíssimas numa instituição de ensino. Ninguém quer este tipo de ambiente. Os alunos têm de perceber que se está a fazer alguma coisa, temos de tentar restaurar a confiança na faculdade. É preciso avançar agora para o manual de boas práticas e para o código de conduta."

Foi precisamente de Catarina que partiu, em reunião de 12 de janeiro do Conselho Pedagógico (cuja ata, como sucede com todas, é pública), o alerta para o problema do assédio na escola. Mencionando o caso de um professor em relação ao qual foram apresentadas várias queixas, sem que houvesse consequências, assegurou existir, da parte dos alunos, um medo de represálias que leva a que não denunciem as situações.

Foi coadjuvada por um dos professores, Miguel Prata Roque, que considerou não ser a FDUL"um free space" (querendo dizer que não é um espaço seguro), afirmando mesmo que impera na escola "um clima de terror" algo muito diferente, opina, do que "deve ser um culto de exigência".

Outro professor, João Miranda, mencionou a "relação especial de poder" que existe entre professores e alunos, apelando a que a faculdade seja "proativa na investigação destas situações", já que, reconhece, "muitas vezes estas não são relatadas pelos alunos por inexistir um quadro de liberdade para o fazer e por a comunidade estudantil não ter a expectativa de que possam vir a ter procedência". Concluiu confessando-se embaraçado por se saber "na mesma instituição que pessoas que praticam este tipo de atos que considera degradantes."

Estas afirmações foram feitas perante o aparente espanto do presidente do conselho pedagógico, António Barreto Menezes Cordeiro, o qual disse não ter conhecimento de nos vários mandatos anteriores do órgão terem sido apresentados casos de assédio, pelo menos com "contornos desta gravidade".

"Tolerância zero" versus "sentimento de impunidade"

Malgrado o reconhecimento da gravidade da situação, é apenas a 2 de março que surge uma proposta para lidar com ela. É protagonizada por outro professor, Miguel Lemos, que propõe, além da criação de um manual de boas práticas específico e de uma comissão paritária de professores e alunos para investigar a dimensão do problema, também de um sistema de queixas. A proposta é aprovada por unanimidade e criada a comissão, que avançou com o canal de recolha de denúncias a 14 de março.

Quatro dias depois, foi a vez de a direção da faculdade anunciar um endereço de email (queixas@fd.ulisboa.pt) para o mesmo efeito - "criação de um canal próprio para a apresentação de queixas sobre comportamentos que possam constituir assédio sexual, assédio relacionado com a orientação sexual e assédio moral" e "discriminação na base género, idade, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, situação económica, condição social ou condição física".

Na respetiva página assegura-se que a FDUL "tem tolerância-zero" relativamente a esse tipo de comportamentos, entendendo que "a apresentação de queixas - que devem ser factualmente circunstanciadas e fundamentadas - é um valioso instrumento de deteção, punição e prevenção de condutas impróprias".

Ainda não existe qualquer informação relativa às queixas que possam ter entretanto sido remetidas a este email, e que deverão seguir os trâmites existentes para inquéritos disciplinares (é a direção da faculdade que tem poder disciplinar).

Quanto ao que resultará das denúncias efetuadas através do outro canal e que deram origem ao relatório, depende, como frisa Catarina Preto, de se transformarem em queixas formais: "Vamos tentar que os alunos avancem com essas queixas. Mas há um sentimento de impunidade, até porque os casos de assédio sexual que surgem na faculdade normalmente são reincidentes. Daí que seja muito importante que os inquéritos não sejam dirigidos por professores da faculdade, como até aqui."

"Espero que finalmente a direção admita o problema"

Isso mesmo diz ao DN Dejanira Vidal, presidente do recém-formado núcleo feminista da FDUL. "É inadmissível as faculdades abafarem estes casos para manter 'o bom nome dos professores'. Desde que entrei na faculdade - estou no segundo ano - que se fala do assédio moral (humilhação, comentários) e da pressão, e de casos de assédio sexual", afirma a jovem de 19 anos. "Mas toda a gente tem medo, toda a gente diz "não quero falar, não quero ser associada a isso". Espero que finalmente a a direção admita que há um problema dentro da faculdade. Tem de haver uma comissão centralizada específica para o assédio na Universidade, tem de haver pessoas de fora a avaliar, com formação específica. E tem de haver apoio psicológico."

Ao ser abordada pelo DN este domingo, a diretora da FDUL, Paula Vaz Freire, garantiu não ter ainda conhecimento do relatório sobre assédio e discriminação que irá ser esta terça-feira analisado pelo conselho pedagógico, sendo também apresentado à direção. Mas, para já, apoia a proposta de formulação de um código de conduta: "Parece-me bem. As figuras de assédio são difíceis de caracterizar. A criação de um código de conduta permite-nos valorar determinadas condutas como infrações."

Quanto ao panorama desenhado pelo relatório da comissão paritária, de cujo conteúdo diz saber pelo DN, considera-o "muito oportuno e útil para saber o que se passa na escola; temos de ter a melhor atenção a estas situações". É prudente nas conclusões, porém: "Objetivamente são muitas queixas em muito pouco tempo. Mas há a necessidade de saber o horizonte temporal - se são casos presentes ou se respeitam a um período mais longo de tempo."

Em relação ao clima de medo descrito quer por alunos quer por professores, recusa-o. "Não tenho noção de que exista um clima de terror generalizado na faculdade. A ideia é de que há cada vez mais proximidade, por exemplo em relação a quando fui aluna. Mas que num universo de 5000 alunos e 300 docentes não possa existir alguma situação? Com certeza que sim, não sou ingénua. Façam-nos chegar essas informações."

As queixas de corporativismo por parte dos alunos e a exigência de que os inquéritos sejam dirigidos por pessoas exteriores à escola e com formação adequada merece um talvez: "Não descarto que possamos ter o auxílio e participação de pessoas externas neste processo e a criação de mecanismos específicos para lidar com isto, mas tem de haver funcional de sigilo, porque os inquéritos são sigilosos."

Sendo o apoio psicológico neste momento assegurado por uma única profissional contratada diretamente pela associação académica com, garante, apoio financeiro da direção, anuncia que "até ao final do ano letivo essa função vai ser reforçada com a contratação de mais um psicólogo."

Miguel Lemos, o autor da proposta apresentada ao conselho pedagógico e que se consubstanciou no relatório, congratula-se com o facto de ver a situação "a ser tratada com o envolvimento de todos os órgãos da faculdade e colaboração dos alunos numa política de tolerância zero", embora veja o processo ainda no início: "Há ainda muito a melhorar".

Nomeadamente, exemplifica, a nível do mecanismo de queixas, "hoje um mero endereço de email que remete para uma sub-diretora."

Há, prossegue este professor, "que ir ao encontro daquilo que os alunos têm pedido e também das melhores práticas produzidas por entidades que se dedicam ao estudo e implementação destes mecanismos, salvaguardando, pelo menos num primeiro momento, o anonimato das vítimas; a recolha de testemunhos com auxílio a psicólogos; a criação de um procedimento que permita acompanhar a tramitação; definição de prazos; o envolvimento dos representantes dos alunos para que se assegure a publicidade da existência das queixas e do seu tratamento pelos órgãos da Faculdade e, nos casos em que se aplique, o Ministério Público".

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