A "vontade de vingança" da investigadora belga Lieselotte Viaene por ter sido "expulsa" do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra tem sido apontada por Boaventura de Sousa Santos como o "móbil" daquilo que o sociólogo português designa de "difamação anónima, vergonhosa e vil" e "tentativa de cancelamento" - as acusações de assédio sexual e de "extrativismo intelectual" que lhe são feitas no capítulo 12º do livro Sexual Misconduct in Academia, The walls spoke when nobody would (As paredes falaram quando ninguém se atrevia)..O livro, como foi noticiado pelo DN, tem a venda suspensa desde junho pela editora britânica Routledge devido a uma ação legal de efeito semelhante a uma providência cautelar e que incluirá uma condição de "mordaça" - implicando que nem a editora nem as coordenadoras da obra tenham até agora esclarecido os motivos da suspensão e, sobretudo, quem é o autor (ou autores) da ação..Entretanto, Boaventura de Sousa Santos (BSS), que não deu resposta à pergunta do DN sobre se a ação legal em causa é uma iniciativa sua, concedeu uma entrevista - a primeira "ao vivo" desde que o escândalo rebentou, em abril - na qual assevera que Viaene jurou vingança devido à dita expulsão, que teria ocorrido na sequência de um processo disciplinar que lhe foi instaurado no CES.."Vou dizer simplesmente factos. A principal autora do capítulo é uma investigadora belga que expulsámos do nosso centro. Tivemos de abrir um processo disciplinar contra essa mulher por má conduta - e ela prometeu vingança", diz BSS aos 1:23:51 minutos da entrevista, disponível no Youtube desde 11 de julho..O sociólogo e ex-diretor do CES também garantiu que uma das duas outras autoras do capítulo (a portuguesa Catarina Laranjeiro e a americana Myie Nadia Rom), teria comentado com alguém "que o capítulo não era para ser contra o Professor Sousa Santos, porque o admiramos, mas foi a investigadora belga que fez a versão final, e então culpou-o de tudo, porque se queria vingar.".O facto de que Viaene, a autora principal do capítulo (sendo assinado por três investigadoras, é o seu nome que surge em primeiro lugar), teria sido mesmo despedida do CES parecia de resto "comprovado" na carta enviada por BSS aos media a 12 de abril..Nesta, intitulada "Diário de uma difamação", o sociólogo anunciava que ia apresentar uma queixa contra as três autoras por, precisamente, difamação (questionado em julho pelo DN sobre se já apresentou essa queixa, disse que não) e escrevia: "Na minha opinião, que obviamente não compromete a Direção do CES, de que sou agora apenas Director Emérito, este artigo, no que respeita à sua principal autora, Lieselotte Viaene, é um ato miserável de vingança institucional e pessoal. (...) O seu comportamento [de Viaene] foi de tal ordem insolente e incorreto que o CES acabou por lhe abrir um processo disciplinar e não aceitou que ela indicasse o CES como instituição de acolhimento num projeto de candidatura ao European Research Council. Esta recusa teve como fundamento o comportamento anterior dela no CES. Em suma, esta investigadora foi expulsa do CES". A seguir, reproduzia "o texto da nota de culpa [do processo disciplinar] datado de 6 de junho de 2018": "Tendo sido objeto de um processo disciplinar pelo Centro de Estudos Sociais (CES), é notificada do processo de despedimento que lhe foi levantado (anexo). Comprovados os factos indicados na nota de acusação, entende o CES despedi-la com justa causa (...).".A veracidade desta expulsão/despedimento nunca foi publicamente refutada pelo CES. No entanto, questionado pelo DN sobre se a investigadora belga foi, como diz BSS, "expulsa" por aquele centro académico, o centro, através da sua direção, nega: "O contrato entre o CES e a Doutora Lieselotte Viaene caducou na data do seu termo, 31 de agosto de 2018. Não foi aplicada qualquer sanção disciplinar.".Foi efetivamente instaurado a Viaene um processo disciplinar, em junho de 2018, esclarece o CES. Mas, adverte, este "não foi concluído". O motivo, prossegue a resposta enviada ao jornal, é que entretanto o contrato de trabalho da investigadora belga extinguiu-se "por caducidade, dado ter atingido o seu termo" (era um contrato de dois anos e terminava a 31 de agosto de 2018)..Assim, "não tendo havido uma conclusão definitiva do processo disciplinar, não foram concluídas diligências instrutórias e probatórias próprias de tal procedimento, pelo que não houve apuramento final sobre a veracidade ou não de nenhuma da factualidade imputada à Investigadora nem das suas eventuais responsabilidades", informa o CES..Parece pois que afirmar, como fez Boaventura de Sousa Santos, que a investigadora foi "expulsa do CES por má conduta" ou sequer que houve "má conduta" não será correto. Como nos processos judiciais, se há arquivamento não há certificação de culpa; afirmá-lo pode, ironicamente, ser considerado difamação..BSS - que na entrevista citada admite que tenham existido "irregularidades no CES, que devem ser investigadas", recusando porém ter alguma coisa a ver com elas ("Mas não comigo") -, nunca explicou em que consistiu a "má conduta" que imputa a Viaene..Já esta narra, em As paredes falaram quando ninguém se atrevia, a sua versão da história. Em abril/maio de 2018 - o último ano do seu contrato com o CES - estava na América do Sul em trabalho de campo quando recebeu uma ordem para voltar para Coimbra. "A pressão foi efetuada por uma das figuras-chave de poder no CES [segundo o que é narrado no capítulo, essas "figuras-chave" serão dois homens, amigos do BSS], que lhe disse para ela voltar do trabalho de campo no prazo de sete dias, sob pena de enfrentar um processo disciplinar com vista ao despedimento com justa causa." Tendo feito isso, e cumprido "a obrigação de "ir ao escritório" todos os dias", e mesmo se faltavam três meses para terminar o seu contrato de trabalho, foi-lhe ainda assim instaurado um processo disciplinar "com uma nota de culpa de 59 páginas"..Foi a primeira vez, assevera-se no capítulo, que nos quase 40 anos de existência do centro (o CES celebraria o seu quadragésimo aniversário em novembro 2018) o Código de Trabalho foi usado contra uma investigadora - a qual teria entrado pouco depois, informa-se, em "burnout"; durante a decorrente baixa psiquiátrica, foi, ainda de acordo com o relato, submetida a fiscalização pela Segurança Social, a pedido do CES..Descrevendo um clima de perseguição e assédio moral, o 12º capítulo de Sexual Misconduct in Academia não desvenda o teor da nota de culpa, ou seja, as acusações em causa no processo disciplinar, apresentando este como reação ao relatório que Viaene estaria a fazer para o organismo europeu financiador da sua bolsa Marie Curie, no qual "descrevia supervisão e apoio institucional inadequados para desenvolver a sua investigação"..O CES tê-la-ia, garante-se no capítulo, pressionado para mudar o relatório, mas ela "recusou, por considerar que não podia alcançar os objetivos essenciais da investigação sem esse apoio institucional, que fazia parte do acordo de financiamento"..Entre as queixas de Lieselotte Viaene, ainda de acordo com o capítulo de que é autora principal, contava-se nunca ter sido "convidada para reuniões com o grupo de investigação do Professor Estrela [BSS] com o qual era suposto colaborar", e não terem sido "partilhados quaisquer contactos ou redes de investigação", nem criadas "as oportunidades de treino estabelecidas na bolsa"..Na entrevista citada, BSS informa que Viaene queria que lhe dessem "nomes de pessoas, informadores, na Guatemala, na América Latina, etc, para a sua investigação, e não podemos fazer isso, os investigadores têm de os encontrar por si próprios"..Essa ideia de que a investigadora exigiria ou esperaria do CES e de BSS coisas que não fazem sentido estava já explícita em "Diário de uma difamação": aí, Boaventura admitia que Viaene poderia ter algum motivo de queixa contra si por ter sido algo "absentista" como orientador - "Reconheço que devido ao facto de partilhar o meu tempo entre Portugal e os EUA terei desiludido a autora principal quanto à orientação do seu estágio" -, para a seguir concluir que essas queixas demonstravam afinal uma falha da orientanda: "Os bolseiros Marie Curie são em geral muito autónomos e não exigem apertada supervisão.".Esta crítica à falta de autonomia de Viaene parece entrar em contradição com a informação, dada por BSS no mesmo local, de que a belga, como as duas outras autoras do capítulo, teve "a nota máxima"..Não fica claro a que se terá aplicado tal nota e quem a aplicou, mas esse facto também não convive bem com a instauração de um processo disciplinar "com vista ao despedimento" e com "uma nota de culpa de 59 páginas"..Precisamente para tentar perceber que imputações estavam em causa no processo, o DN procurou aceder-lhe, assim como à queixa, ou relatório, apresentada por Viaene à instância financiadora..No segundo caso, o acesso foi negado liminarmente: "Os documentos que menciona não estão publicamente disponíveis. Em geral, queixas e documentos a elas relativas não são públicas e estão frequentemente sob obrigação de confidencialidade a pedido dos queixosos. Em face disso, não podemos adiantar nada sobre o assunto", foi a resposta do serviço de imprensa da Comissão Europeia..Também o acesso ao processo disciplinar instaurado à investigadora belga foi recusado pelo CES ao jornal, malgrado a invocação da LADA - Lei de Acesso aos Documentos Administrativos - e o facto de Boaventura Sousa Santos ter repetidamente aludido ao processo disciplinar instaurado a Viaene (inclusive reproduzindo parte da respetiva "nota de culpa") e à sua alegada "expulsão" como "motivo" das acusações que são feitas ao ex diretor do CES - BSS desempenhou essas funções desde a fundação até 2019 - no capítulo em causa..Apesar de considerar que a LADA é aplicável no caso, a direção do CES recusou a consulta solicitada, especificando no entanto que se trata "apenas um diferimento de acesso". A justificação para esse "diferimento" é de que a Comissão Independente nomeada pelo centro para "analisar as denúncias de práticas de assédio moral e/ou sexual" e que iniciou trabalhos a 1 de agosto "poderá considerar a matéria apresentada no âmbito do referido processo disciplinar na análise a desenvolver", pelo que o CES considera que "a sua partilha e discussão pública poderá afetar o decorrer dos respetivos trabalhos"..Por outro lado, argumenta o CES, "a informação solicitada contém imputações de factos à Doutora Lieselotte Viaene que não chegaram a ser efetivamente apurados por não ter sido concluído o processo disciplinar, constituindo assim mera suspeita, pelo que não se considera justificada a sua divulgação.".O DN tentou ouvir Lieselotte Viaene - que está agora baseada na Universidade Carlos III, em Madrid, e dirige um projeto financiado pelo European Research Council em um milhão e meio de euros (projeto esse que foi aprovado em julho de 2018, quando ainda estava sob contrato no CES, e do qual, segundo BSS, o CES terá recusado ser instituição de acolhimento devido à "má conduta" da investigadora) - a respeito das imputações de BSS, do processo disciplinar que lhe foi movido e da queixa que terá apresentado contra o centro. A investigadora não respondeu..O relatório da Comissão Independente nomeada pelo CES para analisar as denúncias contra o centro e contra vários dos seus funcionários, incluindo BSS, constantes no capítulo do livro Má Conduta Sexual na Academia, deverá estar pronto até ao final do ano..BSS e o antropólogo Bruno Sena Martins, investigador do CES crismado de "O Aprendiz"no capítulo 12º do livro da Routledge, estão desde abril suspensos de todas as suas funções na instituição..Após a publicação do livro e as notícias que o relacionaram com o CES e BSS, este foi publicamente acusado de assédio sexual por duas mulheres - a ativista argentina Moira Millán e pela política brasileira Isabella Gonçalves (que se identificou como a "estudante estrangeira de doutoramento" assediada pelo "Professor Estrela"..Na entrevista citada neste texto, Boaventura de Sousa Santos, que já tornou públicos emails amistosos que Moira Millán alegadamente lhe terá enviado após o ataque de que se diz vítima, afiança que tem também emails relativos a Isabella Gonçalves que refutarão as acusações da deputada federal de Minas Gerais, e que os vai apresentar à Comissão Independente.