Polícias condenados por crimes graves podem continuar na Polícia?

A existência de condenações por crimes graves é causa de inaptidão para ingressar nas polícias. Mas a prática demonstra que um polícia condenado por esses crimes, incluindo homicídio, pode continuar polícia. Deve a lei mudar para o impedir? MAI não quis responder. Juristas ouvidos pelo DN dividem-se.

grave e concreto o prejuízo para o interesse público da manutenção ao serviço de um agente da PSP que foi condenado em processo-crime, com sentença transitada em julgado, por crimes graves."

As palavras pertencem a um acórdão de 19 de fevereiro de 2016 do Tribunal Central Administrativo Norte, e dizem respeito a um agente da PSP condenado a quatro anos de prisão efetiva por crimes de ofensa à integridade física qualificada, coação grave e abuso de poder, que procurava suspender o efeito da pena disciplinar de demissão que lhe foi aplicada.

O tribunal negou a pretensão, concordando com o ministério da Administração Interna (MAI), o qual argumentara que manter o agente ao serviço da corporação "constituiria um grave prejuízo para o interesse público, porque poderia inculcar no espírito dos cidadãos a ideia de que a Administração Pública não censura o abuso de poder já punido criminalmente", acrescentando os magistrados: "Para além de que acarretaria a descredibilização da Polícia de Segurança Pública e o risco para a manutenção da disciplina na corporação".

E concluíram: "A um agente da PSP é exigível um comportamento exemplar no exercício das suas funções. Se para um qualquer cidadão a prática dos factos pelos quais foi condenado o requerente têm de ser considerar graves, muito mais o é para um agente da PSP, a quem compete prevenir a criminalidade e a prática de quaisquer atos contrários à lei. O poder vir a exercer o seu trabalho, nesta fase, quer para o público em geral, quer para dentro da corporação, era estar a dar uma imagem negativa do funcionamento dos serviços, aliada a uma eventual imagem de impunidade resultante de determinados comportamentos considerados graves."

O tribunal sustentou assim a manutenção da demissão de Rui Neto, o agente que interpusera o recurso, e do seu colega Osvaldo Magalhães, condenado na mesma pena e pelos mesmos factos - a detenção, agressão, e humilhação (obrigaram-no a despir-se por completo) de um estudante alemão de 23 anos em julho de 2008, na lisboeta esquadra das Mercês, depois de o terem apanhado a viajar "à pendura" num elétrico. Factos que, assinale-se, a PSP começou por negar totalmente.

Aquilo que neste acórdão e na posição do MAI expressa no processo surge como uma evidência - que manter ao serviço polícias condenados por crimes graves atenta ao interesse público, dando uma imagem negativa das corporações e uma mensagem errada ao efetivo - não tem sido porém regra na atuação disciplinar das forças policiais e da Inspeção Geral da Administração Interna (instituição cuja função é fiscalizar as polícias, e que pode, por determinação da tutela, avocar os inquéritos disciplinares), ou sequer na dos tribunais.

São variados os exemplos conhecidos publicamente de polícias que, após uma condenação por crimes idênticos ou mais graves que os praticados pelos dois agentes da esquadra das Mercês, e com penas igualmente pesadas, se mantêm ao serviço.

Caso de três dos oito membros da PSP condenados, no caso Cova da Moura - incluindo o à data dos factos, fevereiro de 2015, chefe da esquadra (Luís da Anunciação) - por crimes como sequestro, ofensas à integridade físicas qualificadas, falsificação de documentos, denúncia caluniosa e injúrias, com condenações entre cinco e três anos e nove meses.

Caso, igualmente, de Filipe Silva, o subcomissário filmado em direto por um canal de TV, em maio de 2015, a agredir à bastonada e ao soco dois adeptos dois adeptos do Benfica após um jogo de futebol em Guimarães, e que foi condenado a três anos e meio de prisão, com pena suspensa.

Na verdade, existem até polícias que continuam a ser polícias depois de sofrerem mais do que uma condenação em processos distintos.

Um exemplo disso é Joel Machado, o único dos agentes da PSP condenados no processo Cova da Moura a cumprir prisão efetiva, e que tinha já uma pena criminal suspensa por crimes da mesma natureza (tendo na altura cumprido 182 dias de suspensão disciplinar).

Outro é o militar da GNR Hugo Ernano, responsável pela morte de uma criança em 2009 e por ela condenado a quatro anos de prisão (pena suspensa); anteriormente, em 2006, fora condenado a dois anos e meio, também com pena suspensa, por vários crimes cometidos em funções - ofensa à integridade física na forma tentada, coação grave na forma tentada, e falsificação de documento.

Não se sabe quantos polícias têm cadastro

Qual a dimensão do problema, ou seja, quantos polícias cadastrados estão ao serviço das polícias, não se sabe.

Do mesmo modo, não se sabe qual a percentagem de polícias condenados que foram expulsos ou quantos dos polícias expulsos o foram por terem sofrido condenações criminais - e muito menos que tipo de crimes levaram à expulsão.

Nos relatórios anuais de Segurança Interna - ao contrário da proposta da Iniciativa Liberal noticiada pelo DN esta segunda-feira -, não se encontra qualquer dado relacionado com estas matérias; tão-pouco a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), criada em 1996 para fiscalizar as polícias tuteladas pelo ministério da Administração Interna, publica informação sistematizada sobre o número de membros dessas forças de segurança sujeitos a medida de demissão, aposentação compulsiva ou "separação de serviço" e respetivo motivo.

Na verdade, até hoje em Portugal tudo o que diz respeito à justiça disciplinar ou criminal sobre polícias é tirado a ferros - e invariavelmente incipiente.

Mesmo o acesso a processos disciplinares individuais, que a lei determina serem públicos a partir da acusação ou arquivamento, é obstaculizado pelas polícias e pela própria IGAI, que coloca apenas alguns online, sem que se perceba qual o critério, não facilitando a consulta dos restantes.

Há exceções periódicas nessa opacidade. Exemplo do anúncio, pelo ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, no parlamento, a 6 de dezembro, de que desde 2019 foram 107 os elementos da PSP e GNR demitidos, aposentados compulsivamente ou "separados de serviço", por "violações de valores fundamentais do Estado de direito".

A que corresponderão tais violações não foi possível perceber; do total, no qual o governante diz contabilizarem-se 36 saídas desde maio, só foi dada informação sobre o motivo da expulsão de um militar da GNR do comando territorial de Beja, associada, nas palavras de José Luís Carneiro, "à temática do racismo" e devido a "agressões a civis de origem indostânica".

Trata-se de André Ribeiro, condenado em 2020, pelo tribunal de Beja, a seis anos de prisão efetiva por cinco crimes, cometidos a 30 de setembro de 2018, de sequestro, violação de domicílio e ofensas à integridade física qualificadas nas pessoas de dois imigrantes, assim como à pena acessória de três anos e seis meses de proibição de exercício de funções naquela força de segurança.

No mesmo processo foram igualmente condenados, por terem participado nos mesmos crimes, mas com penas suspensas, quatro outros militares da corporação.

A saber, João Lopes (comandante da patrulha da GNR que estava de serviço, também condenado por falsificação de documento), a cinco anos, com pena suspensa, e dois anos e seis meses de proibição de exercício de funções; Ruben Candeias, a quatro anos, também com pena suspensa, e dois anos e proibição de exercício de funções; Luís Delgado e Nelson Lima, a três anos e seis meses, igualmente suspensos, e dois anos de proibição do exercício de funções.

Nenhum destes quatro foi sujeito à medida de separação de serviço.

De acordo com a informação dada pelo ministro ao parlamento, dos 17 processos disciplinares instaurados a militares do comando de Beja por agressões a imigrantes e instruídos pela IGAI, só cinco chegaram ao fim: o de André Ribeiro e quatro outros (que se presume serem os dos condenados no mesmo processo criminal), aos quais a IGAI decidiu atribuir entre 90 e 210 dias de suspensão.

Três desses militares condenados em 2020 - Rúben Candeias, João Lopes e Nelson Lima -, e que terão sido submetidos pela IGAI às citadas medidas disciplinares de suspensão, estão de novo em julgamento, com quatro outros colegas, por crimes do mesmo tipo (abuso de poder, sequestro e agressões) tendo como objeto, mais uma vez, imigrantes asiáticos.

É problema haver condenados nas polícias? MAI não responde

Chamado ao parlamento para responder a perguntas dos deputados a propósito do discurso de ódio nas forças de segurança (na sequência da publicação das reportagens do Consórcio de Jornalismo de Investigação sobre comentários e posts de polícias em grupos fechados nas redes sociais), o ministro enumerou alguns outros - poucos - processos disciplinares ocorridos na PSP e GNR e "relativos à temática do racismo".

As penas referidas variaram entre "repreensão escrita", multas e suspensões; não foi esclarecido se em algum desses casos houve participação às autoridades judiciárias ou condenações criminais.

José Luís Carneiro garantiu no entanto o "rigor na atuação do comando da GNR e da direção da PSP para monitorizar atitudes e comportamentos lesivos dos valores fundamentais do Estado de direito", certificando que "só uma atitude de permanente exigência, de rigor e de exemplo das lideranças (...) impedirá que as atitudes, refletidas ou irrefletidas, de alguns coloquem em causa a entrega ao serviço público, o brio, a abnegação e o profissionalismo de tantos que juraram dar a própria vida para garantir a nossa segurança coletiva. (...) As condutas daqueles que atentam contra os valores que juraram servir serão sancionadas."

Já sobre o facto, com o qual o DN confrontou o ministério semanas antes da audiência em causa, de serem mantidos ao serviço polícias com condenações por crimes violentos, o ministro nada disse.

Na resposta às perguntas do jornal, enviada após a ida de José Luís Carneiro ao parlamento, o MAI não esclarece se essas situações lhe são ou não desconfortáveis, limitando-se a recordar que os tribunais podem eles próprios, ao condenar, determinar a expulsão.

E que, devido a um dos casos mais notórios de contradição entre a justiça disciplinar e a criminal - o da Cova da Moura -, no qual a IGAI arquivou os inquéritos disciplinares de vários agentes que vieram a sofrer condenações nos tribunais, esta "alterou os seus procedimentos de forma a garantir que a conclusão dos processos disciplinares acompanhe a dos processos crime quando ocorrem no âmbito do Ministério Público".

Isto, explica o ministério, porque quando existe uma decisão judicial posterior ao processo disciplinar, e que ao contrário deste condena - como sucedeu no caso Cova da Moura - "não pode, legalmente, o comportamento dos agentes em causa ser reapreciado pelos mesmos factos em sede disciplinar".

A solução, terá considerado a IGAI, sob a direção da atual inspetora-geral, a juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira, é fazer os inquéritos disciplinares aguardar pelo fim dos processos judiciais.

Sucede que este procedimento pode implicar, pela morosidade típica da justiça criminal, manter ao serviço, durante anos e sem qualquer pena disciplinar, polícias indiciados, e até já condenados em uma ou várias instâncias, por crimes graves - até que haja decisão transitada em julgado. O que dificilmente contribuirá para combater o sentimento de impunidade e credibilizar as polícias.

Além de que, como se constata no caso da GNR de Odemira, é possível, mesmo após condenações criminais acima de três anos de prisão, e num contexto de "temática de racismo", concluírem-se processos disciplinares permitindo manter os condenados ao serviço.

Inaptos para entrar, aptos a permanecer?

E, no entanto, a lei parece clara quanto à indesejabilidade de admitir, ou manter ao serviço, polícias condenados por crimes graves.

Desde logo o Código Penal prevê, no seu artigo 66.º ("Proibição do exercício de função"), para o funcionário "que, no exercício da atividade para que foi eleito ou nomeado ou por causa dessa atividade, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos" a proibição "do exercício daquelas funções por um período de 2 a 8 anos quando o facto for praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes" e/ou "implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função."

E quer o Regulamento Disciplinar da PSP (cuja última versão é de 2019) quer o da GNR estabelecem como "infração muito grave", suscetível de "inviabilizar a relação funcional" - ou seja, podendo implicar expulsão ou demissão - "praticar, no exercício de funções ou fora delas, crime doloso, punível com pena de prisão superior a três anos".

Acresce que uma das "condições gerais de admissão" elencadas no Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana é a de "não ter sido condenado por qualquer crime praticado com dolo" (dolo é intencionalidade, ou consciência da consequência do comportamento lesivo).

Na PSP, a inaptidão correspondente é "não ter sofrido sanção penal inibidora do exercício da função". O que, explica um manual do candidato à PSP de 2010, significa que "no caso de o candidato ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de qualquer crime, poderá ser excluído do concurso, se o júri considerar que essa sanção é incompatível com o exercício da função de agente da autoridade." Para que essa avaliação seja feita, o candidato tem de apresentar o registo criminal e, em caso de condenação existente, cópia da sentença.

Mas outra norma de acesso à PSP, a que exige aos candidatos "bom comportamento moral e civil", parece implicar que a condenação por crimes significa inaptidão direta, já que "falta de bom comportamento moral e civil", segundo o citado manual, deve ser entendida como "a prática de crimes", "a participação em rixas, abuso repetido de álcool ou drogas, prática reiterada de infrações às leis de circulação rodoviária, em especial aquelas classificadas como graves ou muito graves, entre outros comportamentos."

Dir-se-ia aliás pacífico: para o serviço das instituições cuja função é assegurar o respeito pela lei e pelos direitos humanos, tendo para tal o monopólio do uso da força, inclusive letal, não devem recrutar-se pessoas cujo comportamento anterior coloque em dúvida a sua aptidão para respeitar a legalidade e para resistir a impulsos violentos.

Um manual de 2011 das Nações Unidas sobre integridade e responsabilização policial diz isso mesmo: "O critério de seleção dos candidatos deve incluir verificação de antecedentes criminais, com os condenados por crimes a serem considerados inaptos, sobretudo quando os crimes envolvem violência".

O manual da ONU vai até mais longe, recomendando que sejam igualmente verificados "antecedentes de violações dos direitos humanos (candidatos que tenham cometido tais violações nunca devem ser aceites)", "violência de género (candidatos que a tenham cometido não devem ser aceites)" e "comportamento discriminatório ativo (quem demonstre ter tal comportamento não deve ser aceite)."

Como compreender então que atos impeditivos da entrada nas polícias não impliquem, se cometidos em serviço, a saída? E que a justiça disciplinar fique variadas vezes muito aquém, em termos de severidade, da justiça criminal? Trata-se de um problema da lei ou da sua interpretação?

Cova da Moura: um exemplo nada exemplar

Questionado pelo DN sobre se considera que a existência das normas citadas é compaginável com a manutenção ao serviço de polícias condenados por crimes violentos, dolosos e com penas superiores a três anos, o MAI optou por não responder.

Também não quis esclarecer se considera que os estatutos disciplinares devem ser clarificados para evitar essas situações.

Juristas ouvidos pelo DN dividem-se sobre essa necessidade. E sobre se haver resultados muito distintos de processos disciplinares e criminais, com condenados penalmente a serem ilibados em sede disciplinar, como aconteceu no caso Cova da Moura, é algo que deve ser evitado.

Recorde-se que neste caso - que resultou no mais portentoso, até hoje, de todos os processos criminais contra polícias em Portugal -, a justiça disciplinar dividiu-se pela IGAI e pela PSP.

A primeira, que instaurou processos disciplinares a nove polícias, em julho de 2015 (cinco meses depois dos factos), veio em julho de 2017, aintes antes de a acusação do MP contra 18 agentes da esquadra de Alfragide ser deduzida, a arquivar sete deles, por considerar não existir motivo para punição.

O instrutor, José Manuel Vilalonga, que viria a ser sub-inspetor-geral da IGAI, tomou como bons os relatos de quase todos os polícias implicados, valorizando os testemunhos de superiores hierárquicos que negaram a existência de violações disciplinares. Apenas aplicou sanção a dois agentes, João Nunes e André Silva.

As penas em causa foram de 90 e 60 dias de suspensão, contrastando com as que o tribunal entendeu merecerem: para João Nunes, quatro anos de prisão, suspensos por igual período, por três crimes de ofensa à integridade física qualificada (disparou com shotgun atingindo várias pessoas, uma delas à queima-roupa); para André Silva, três anos e nove meses de prisão (também suspensos) por um crime de denúncia caluniosa, um crime de falsificação de documento agravado e um crime de sequestro agravado.

Nos sete inquéritos arquivados pela IGAI estão três relativos a condenados, incluindo aquele que mereceu do tribunal a pena mais pesada - o chefe da esquadra Luís da Anunciação -, de cinco anos de prisão, suspensa, assim como os agentes Fábio Moura e André Quesado, que sofreram penas de dois anos e meio de prisão (suspensas) por sequestro agravado.

Os outros três polícias condenados criminalmente - Joel Machado, a um ano e seis meses de prisão efetiva, Arlindo Silva, a um ano e um mês, e Hugo Gaspar, a dois meses, ambos com penas suspensas - não mereceram à IGAI sequer um inquérito disciplinar, o que implicou manter na PSP a competência disciplinar nesses casos.

Tendo decidido fazer aguardar os inquéritos disciplinares até findar o processo criminal, esta força policial informou em agosto de 2021 (mais de seis anos após os factos) que tinha reiniciado os processos disciplinares a estes três agentes.

Poucos meses depois, em dezembro, estes três processos já estavam arquivados. A justificação dada pela PSP ao DN foi de que "as ações daqueles polícias já tinham sido anteriormente analisadas e escrutinadas, em sede disciplinar, pela IGAI" - o que, como demonstrado, não corresponde à verdade.

Em causa nesta decisão terá estado, de acordo com esta força policial, o princípio legal de que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos. Diz a corporação que, tendo a IGAI analisado os mesmos factos que foram dados como provados em sede criminal e decidido não punir os três agentes, a PSP não poderia voltar a analisá-los.

Quanto à IGAI, se a sua dirigente, Anabela Cabral Ferreira, garantiu ao DN, em janeiro de 2021, que a decisão judicial iria ser analisada para averiguar se nela constavam factos novos que permitissem reabrir os processos disciplinares dos agentes não punidos, nunca mais respondeu às perguntas do jornal sobre se os processos foram ou não reabertos.

Justiça disciplinar pode ignorar condenações criminais?

Parece pois pacífico que não vai haver responsabilização disciplinar para seis dos condenados da Cova da Moura, o que é o mesmo que dizer que continuarão a sua carreira policial como se nada se tivesse passado.

Um facto que a própria inspetora geral da Administração Interna, ao ser ouvida no parlamento na mesma ocasião que o ministro, admitiu ser "dificilmente entendível pela comunidade". E em relação ao qual alguns dos juristas consultados pelo DN manifestam o seu espanto.

Caso do procurador-geral adjunto (jubilado) e ex-diretor da Polícia Judiciária Alípio Ribeiro. Este magistrado crê que "a IGAI podia ter reaberto os processos arquivados, pois há factos novos, com novas pessoas que não tinham sido alvo de processo disciplinar".

Para a penalista Inês Ferreira Leite, a própria condenação criminal é um facto novo.

Porque, explica esta professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), "na altura em que houve o arquivamento por parte da IGAI, havia uma queixa, uma série de imputações por parte de cidadãos. Mas entretanto houve uma acusação criminal, com julgamento, e condenação. Quem na IGAI arquivou fê-lo num juízo muito preliminar, e essa decisão foi negada pela investigação, o que quer dizer que o fundamento do julgamento disciplinar foi baseado em assunções falsas. Nos procedimentos disciplinares aplica-se subsidiariamente o Código de Processo Penal, e este permite a reabertura do inquérito se houver "factos novos". Num duplo sentido: da sentença de condenação resultam novos factos que não foram conhecidos nem ponderados no processo disciplinar, ou a sentença de condenação considera falsos meios de prova que foram essenciais para a decisão de arquivamento. Logo, os inquéritos poderiam ter sido reabertos."

A não ser que, adverte Ferreira Leite, o procedimento disciplinar tivesse entretanto prescrito. É que, lembra, "o prazo de prescrição e caducidade dos processos disciplinares é baixíssimo - creio que nestes casos já terá caducado, apesar de se aplicar, quando estão em causa atos que podem constituir crime, os prazos de prescrição dos crimes em causa."

Uma magistrada do Ministério Público ouvida pelo jornal, e que pede para não ser identificada, vai mais longe. Considera que mesmo tendo determinados factos sido apreciados em processo disciplinar, se existir uma condenação judicial posterior, a eles atinente, "por crime doloso com pena superior a três anos", isso em si constitui "uma infração disciplinar muito grave, que implica a instauração de um novo processo disciplinar."

Ou então, argumenta, esvazia-se o sentido dessa norma do Estatuto Disciplinar: "Não creio que haja várias interpretações possíveis. A condenação é um facto independente - ignorá-la é ignorar o poder vinculativo da decisão judicial."

Uma conclusão com a qual o especialista em Direito do Trabalho e Emprego Público Pedro Madeira de Brito está em frontal desacordo: "A condenação não pode ser vista como um facto novo. E o processo disciplinar laboral, público, que se aplica nas polícias é independente do penal. Não é por ter havido uma condenação penal que tem de haver uma condenação disciplinar."

O que pode acontecer, opina este também professor da FDUL, é que "o processo penal tenha revelado factos novos que não tenham sido apreciados no disciplinar, e nesse caso poderia reabrir-se este último."

Concedendo que a relação entre a justiça disciplinar e a criminal é "um tema muito delicado, em relação ao qual efetivamente não há consenso", e que a situação criada no caso Cova da Moura não é confortável, recusa a ideia, que lhe parece estar subjacente à visão dos outros juristas citados, de que a prova de tribunal vale mais que a do processo disciplinar. Ainda assim, preconiza que se abra o processo disciplinar e se suspenda à espera do resultado do penal.

Pode a idoneidade presumida ser cláusula de exclusão?

"Uma prática perversa e uma opção absurda", opina outro magistrado que prefere não ser identificado. "Porque não haver culpa num processo criminal não implica não haver culpa em termos disciplinares; os requisitos da responsabilidade criminal são muito mais exigentes. É possível haver infração disciplinar e não haver crime."

Um exemplo será a falta de correção evidenciada pelos polícias no trato dos cidadãos - tratá-los por tu ou fazer uso de impropérios, como tantas vezes se verifica ter sucedido em casos analisados nos tribunais: não é crime, porém deve ser punido disciplinarmente.

Constatando-se a existência de tantas visões jurídicas distintas do que é um procedimento correto na relação entre a justiça disciplinar e a criminal, não será curial uma clarificação? Até porque, como diz o mesmo magistrado, "com as normas que existem é possível fazer tudo. É possível haver más práticas, boas práticas, lavar as mãos."

O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), considera que sim, que os estatutos disciplinares necessitam de clarificação no sentido de se "fixar um automatismo entre a expulsão e os crimes mais graves por serem dolosos e de penas mais altas."

E não é suficiente, sublinha, dizer que só interessam os crimes cometidos nas funções: "Qualquer crime atenta sempre contra direitos fundamentais que o polícia deve proteger, sejam direitos pessoais, sejam patrimoniais".

O procurador Alípio Ribeiro discorda: "Não me parece que seja preciso clarificar o Estatuto Disciplinar. Não é a lei que está em causa, mas quem tem o dever de agir. Uma pena disciplinar de expulsão não pode ser automática. Tem de ser instaurado um processo e fundamentada a decisão, e cada caso analisado em concreto."

Inês Ferreira Leite e Pedro Madeira Brito são mais veementes na discordância, certificando como inconstitucional qualquer solução que consagrasse o princípio de que uma condenação penal implicaria a expulsão automática.

Mas a penalista vê "uma forma muito simples de resolver: introduzir uma cláusula de idoneidade, que é constitucional e existe para outras profissões com muito menos impacto público e risco - os bancários, por exemplo -, aplicando-se durante o tempo do exercício das funções e não estando dependente das regras todas de um processo disciplinar. Porque geralmente os problemas das polícias vão a tribunal e levam imenso tempo a resolver e é muito provável que quando venha uma condenação transitada em julgado já haja caducidade do processo disciplinar."

Pedro Madeira Brito reflete: "Mas a cláusula da idoneidade já lá está. Existe a partir do momento em que não se admitem nas polícias candidatos com condenações por crimes graves."

Aliás, prossegue, é essa pressuposta idoneidade que leva a que a "presunção de verdade" que antes da democracia era legalmente atribuída à palavra dos polícias ainda suceda na prática: "O polícia acusa-nos de passar o sinal vermelho e isso faz fé."

Uma idoneidade presumida que a própria Anabela Cabral Ferreira, inspetora-geral da Administração Interna e juíza desembargadora, admitiu na audição parlamentar de 6 de dezembro, referindo o facto de a palavra dos polícias tender a fazer fé em juízo.

Uma fé que, ironicamente, se manifesta nos próprios processos disciplinares e julgamentos criminais de polícias, como aponta Inês Ferreira Leite: "Existe uma lei não escrita que diz que os polícias não mentem, e quando há só um cidadão contra um polícia é muito difícil que o cidadão consiga ter a sua palavra a par da polícia. Num Estado de direito democrático não pode haver esse pressuposto, mas é assim que funciona. E o caso de Alfragide/Cova da Moura é absolutamente paradigmático disso, no que respeita aos inquéritos disciplinares. O instrutor da IGAI achou que os polícias não podiam estar a mentir."

A proposta da jurista é então transformar esse pressuposto oficioso de idoneidade numa exigência legal, codificada e permanente, que permitisse expulsar, através de um "mero processo administrativo", os elementos policiais em relação aos quais essa presunção ficasse prejudicada por via de uma condenação criminal.

Pode ser a saída para o problema - partindo do princípio de que a tutela, a IGAI e as polícias consideram, nas palavras do acórdão citado no início deste texto, "grave e concreto o prejuízo para o interesse público da manutenção ao serviço de um agente (...) que foi condenado em processo-crime, com sentença transitada em julgado, por crimes graves."

Afinal, como disse o ministro José Luís Carneiro na citada audição parlamentar, é preciso zelar "pela aplicação, monitorização e sancionamento das atitudes [que dentro das polícias] atentem contra os valores fundamentais", porque "estamos a falar daquilo que é um dos princípios fundamentais do Estado de direito - a função da segurança, que é um dos primeiros objetivos do contrato político entre os cidadãos e o Estado."

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG