"Não há dois pesos e duas medidas" na ação disciplinar da PSP
A decisão da PSP de suspender por 10 dias o agente do Corpo de Intervenção Manuel Morais, ativista antirracismo, por ter denominado de "aberração" o deputado André Ventura, na sua página de Facebook, levou o PCP a chamar ao parlamento a inspetora-geral da Administração Interna para a questionar sobre os critérios da ação disciplinar na PSP.
Esta mesma força de segurança nada fez em relação, por exemplo, aos oito agentes condenados no processo da Cova da Moura, cuja sentença está confirmada desde 25 de novembro passado pelo Tribunal de Relação de Lisboa (TRL), nem quanto a um desses polícias que publicou nas redes sociais um texto ofensivo para as vítimas e para o sistema judicial, lembrou o deputado António Filipe. "Houve dois pesos e duas medidas", concluiu.
Só a esquerda se aliou ao PCP nesta preocupação - Emília Cerqueira, do PSD chegou a dizer que aquele não era um tema para ali ser discutido -, com a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira a reforçar a dualidade de critérios, referindo os "milhares" de "ofensas e ameaças" de que é alvo nas redes sociais, por parte de polícias, "sem que nada lhes aconteça".
Anabela Cabral Ferreira, juíza desembargadora escolhida pelo governo para liderar a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) desde julho de 2019, refutou. "Não há dois pesos e duas medidas" nos critérios disciplinares da PSP, afirmou.
Sem nunca se referir a Manuel Morais, que o PCP lembrou ser conhecido "pelas suas posições públicas de condenação do racismo", a magistrada justificou a falta de ação disciplinar da PSP pelo facto de a sentença não ter ainda "transitado em julgado", devido a "terem sido suscitadas nulidades no acórdão".
Na verdade, segundo a defesa de sete dos oito agentes, só um dos arguidos interpôs uma reclamação. "Para mim transitou em julgado porque não apresentei qualquer recurso", explica Gonçalo Gaspar, salvaguardando que o TRL possa ainda não ter emitido a declaração formal por causa da reclamação do outro polícia, ainda a decorrer.
Os oito polícias foram condenados em maio de 2019 por mentirem, agredirem, sequestrarem e injuriarem seis jovens do bairro da Cova da Moura, depois de uma acusação histórica contra 18 agentes pelo crime de tortura motivada pelo racismo, relativa a factos ocorridos em fevereiro de 2015 na esquadra de Alfragide.
A ação da própria IGAI neste processo não deixou de suscitar interrogações, até hoje nunca esclarecidas: seis dos oito polícias condenados viram arquivado, ainda antes do julgamento, o respetivo processo disciplinar por este organismo de fiscalização da ação policial.
Em janeiro passado, Anabela Cabral Ferreira afirmou ao DN que iria avaliar se havia novos factos nos acórdãos judiciais que impliquem a reabertura dos processos disciplinares: "Vai ser necessário examinar caso a caso. Se houver factos completamente novos os processos podem ser reabertos", avançou a magistrada, referindo que aguardava que o TRL lhe envie, "com nota de trânsito em julgado".
Em relação ao agente condenado que publicou um texto (apagado depois do DN ter questionado a PSP), a seguir a conhecer a decisão do TRL, em que considera o sistema judicial português "madeira podre nojenta" e chamava às vítimas "vagabundos, que nada fazem além de vender droga e brincar com armas", e "bandidos com cadastro" (os seis da Cova da Moura apelaram, entretanto à Provedora de Justiça para que intervenha junto da PSP), Anabela Cabral Ferreira disse que a PSP tinha instaurado um inquérito disciplinar - facto que a PSP nunca referiu ao DN, apesar das várias insistências nos últimos meses junto ao gabinete de comunicação desta força de segurança.
Para demonstrar a "preocupação" da IGAI com a discriminação, incluindo o racismo, Anabela Cabral Ferreira invocou o seu projeto de instituir nas polícias um "plano de prevenção de manifestações de discriminação nas forças e serviços de segurança" e referiu um "despacho do ministro da Administração Interna" que eleva de 14% para 20% o recrutamento de candidatos femininos, determinando "privilegiar o recrutamento de candidatos oriundos de áreas de jurisdição territorial da PSP e que sejam adequadamente representativos da diversidade de contextos sociais e culturais em que atua a PSP".
Porém, nenhuma destas medidas teve ainda consequências práticas. O plano contra a discriminação, lançado em julho do ano passado, está só agora "em avaliação política", segundo disse Eduardo Cabrita no parlamento na semana passada, prometendo em abril apresentá-lo aos deputados.
Quanto ao despacho de Cabrita, sucedendo a uma posição assumida pela própria PSP, pela voz do seu inspetor-geral Pedro Clemente (em declarações ao DN, a 3 de outubro passado afirmou que "o recrutamento na polícia ainda não é suficientemente representativo da diversidade étnica da sociedade", defendendo que "uma polícia etnicamente diversificada é mais tolerante."), ainda não foi executado.
Desde que foi assinado, a 26 de novembro de 2020, que o DN tenta saber junto do gabinete do ministro e da PSP, designadamente como vai ser feita a seleção das "minorias" para os próximos cursos de agentes (803 + uma reserva de 12 00 para 2021). De Eduardo Cabrita nenhuma resposta.
A PSP, por seu turno, remete esclarecimentos para o gabinete do ministro, reiterando que o recrutamento está a ser feito "de acordo com o regulamento em vigor" -o que está no site da PSP é de 2010.