A primeira coisa que salta à vista na descrição da cena da morte de Odair Moniz, tal como está vertida no despacho do Ministério Público que acusa dois agentes da PSP de falsidade de testemunho (por dizerem que viram uma faca num local onde, conclui a investigação, baseada em vários testemunhos oculares e nos vídeos existentes, ela não podia estar), é a enorme confusão. Havia, naquela madrugada de 21 de outubro de 2024 na Cova da Moura, polícias por todo o lado — o DN contou pelo menos 12, incluindo graduados — mas nenhum terá sido capaz de impor aos colegas a reserva dos indícios, e que não andassem a mexer nos pertences do ferido.A segunda coisa que se nota no despacho que o Público noticiou, em primeira mão, esta quarta-feira, e ao qul o DN teve acesso, é que, apesar de haver um homem baleado no chão, não houve de imediato o cuidado de o socorrer, nomeadamente pedindo instruções ao 112, até à chegada da ambulância. Há até um agente que, tendo chegado ao local pelo menos dez minutos antes do socorro médico, relata no inquérito ter questionado “para o ar” porque é que ninguém estava a fazer manobras de reanimação, e que ninguém lhe respondeu (diz ele que não fez as referidas manobras porque não sabia como).Não terá porém havido por parte do Ministério Público (MP) qualquer investigação pelo crime de omissão de auxílio; o que estava em causa neste segundo inquérito, extraído do inquérito principal (do qual decorreu a acusação de “homicídio simples com dolo eventual” ao agente da PSP Bruno Pinto, que disparou duas vezes sobre Odair Moniz e cujo julgamento deveria ter-se iniciado precisamente esta quarta-feira), eram os crimes de favorecimento pessoal — pela suspeita de que fora colocada uma faca no local, de modo a justificar como legítima defesa os disparos efetuados — e de falsificação. Este último relacionado com o auto de notícia assinado por Bruno Pinto e o qual relata precisamente uma situação de legítima defesa, com os disparos a serem fundamentados na existência de uma faca na mão da vítima. .Odair Moniz. PSP investigada por "incongruências" no relato sobre o homicídio.De “suspeito de furto” de faca na mão a vítima desarmada de homicídio policial: a fábula de Odair.Mas ambas as investigações acabaram arquivadas. No caso do favorecimento pessoal (crime tipificado nos artigos 367º e 368º do Código Penal, com pena de prisão até três ou cinco anos), porque a magistrada autora do despacho considera que, resultando dos meios de prova recolhidos a suspeita de que ou a faca encontrada não pertencia a Odair Moniz e foi “plantada” no local ou pertencia ao malogrado cozinheiro e foi “colocada à vista” para fazer crer que este a empunhava, não está em condições de concluir pela existência de indícios de que qualquer das duas coisas sucedeu e, talvez mais relevante, quem o teria feito.Diz o despacho: “Mesmo que se fizesse um raciocínio positivo de indicação suficiente da comissão de um crime de favorecimento pessoal, a verdade é que não se logrou apurar que, a ter ocorrido, qual das pessoas presentes no local, que foram inúmeras, de que modo e em que momento poderia ter colocado no local ou colocado à vista o punhal”. Sete polícias na sala onde se elaborou o auto de notíciaQuanto ao crime de falsificação, cuja investigação adveio da impossibilidade de que Bruno Pinto estivesse simultaneamente em dois locais — a ser ouvido pela Polícia Judiciária às 14H55 de 21 de outubro e a dar entrada do auto de notícia no sistema da PSP, através do seu login e password pessoais —, o MP tem elementos suficientes para saber que de facto várias pessoas colaboraram na elaboração do auto e que este foi “carregado” no sistema da PSP (Sistema Estratégico de Informação, Gestão e Controlo Operacional — SEI) por outra pessoa que não Bruno Pinto, mas não conclui que tenha existido falsificação.Lê-se no despacho: “Conforme se apurou em sede de inquérito quem redigiu [em Word] o texto que foi transposto para o auto de notícia foi o agente principal X e o Subintendente Y, que após o agente principal X ter terminado de escrever o relato, sentou-se em frente ao computador a rever o texto.” Na sala onde o texto foi escrito estiveram, além dos dois polícias referidos e de Bruno Pinto, também o agente que estava com ele aquando dos disparos (e que é agora um dos arguidos por falsidade de testemunho) e ainda dois chefes e um intendente. Ao todo sete elementos da PSP. Um dos quais acabaria por inserir o texto final no sistema usando o login e password de Bruno Pinto (supostamente pessoais e intransmissíveis, mas que o próprio Bruno Pinto admitiu ter transmitido por telefone quando alguém, que diz não saber identificar, lhos pediu).O MP considera que não está perante o crime de falsificação, porque este, previsto no artigo 256º do Código Penal e com pena de prisão até três anos, pressupõe que haja intenção de encobrimento e que se faça constar falsamente em documento um facto jurídico relevante. E não terá, conclui o despacho, sido esse o caso: “Não se apurou que tivesse existido qualquer desconformidade entre o que foi relatado pelos dois agentes intervenientes no sucedido e aquilo que foi escrito pelo agente principal X e depois revisto pelo Subintendente Y, não se preenchendo assim o crime de falsificação”..Caso Odair: as perguntas, as respostas e as (várias) dúvidas