“Um suspeito de furto de viatura morreu na madrugada desta segunda-feira, na Cova da Moura, na Amadora, após ser baleado pela PSP.” Foi assim que na manhã de 21 de outubro de 2024, às 10H17, o DN deu, baseando-se na CNN-Portugal (que tinha revelado o caso às 9H40, citando por sua vez a TVI), a notícia da morte de Odair Moniz, então apenas referido como um “homem de 43 anos” que fora levado para o Hospital São Francisco Xavier, onde “acabou por morrer”. Morte que está a ser investigada pela Polícia Judiciária (PJ) e Ministério Público (MP) como homicídio. O agente que disparou dois tiros contra Odair (atingindo-o na axila e abdómen), e cuja identidade não foi até agora revelada publicamente, só se sabendo que tem 27 anos, está indiciado por esse crime. Sendo igualmente alvo de um inquérito na Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI), o órgão de fiscalização das polícias que funciona na dependência do ministério da Administração Interna (MAI), tendo sido ali ouvido a 10 de janeiro. Malgrado ter a 18 de dezembro sido noticiado que a investigação criminal estaria “concluída”, a 2 de janeiro a PJ esclareceu, através do DN, que haveria ainda diligências em curso. Pelo que o processo permanece em segredo de justiça e muitas perguntas por responder. Desde logo, o que levou à perseguição policial a Odair Moniz - o que até agora não foi esclarecido - e se o uso da arma de fogo, ou seja, de força letal, contra o homem de 43 anos tem justificação legal. Como é sabido, a PSP informou, no seu primeiro comunicado sobre o ocorrido, que Odair tinha consigo uma faca e a empunhou face aos agentes, mas esse facto - o de ter usado a faca para os ameaçar - não parece, de acordo com o entretanto noticiado, ter sido corroborado pela investigação criminal. Confirmando-se essa notícia, coloca-se outra questão: quem foi o responsável por essa versão? As respostas a estas perguntas fazem a diferença entre um incidente trágico e um caso de homicídio. Que poderá, consoante as circunstâncias, ser doloso - ou seja intencional - ou com “dolo eventual”. Se o homicídio doloso é o que ocorre quando alguém mata porque quis matar, o dolo eventual aplica-se às situações em que o causador da morte colocou a hipótese de que a vítima perecesse em consequência da sua ação, conformando-se com isso, sem que no entanto desejasse esse desfecho. Há ainda a possibilidade de se estar perante um caso de encobrimento, que é em si um crime.Porquê a perseguição?Retornemos então a 21 de outubro e à forma como o país soube do caso. Nunca foi esclarecido pela TVI/CNN de onde veio a informação de que o morto seria suspeito de furtar o veículo (segundo o noticiado, seria um BMW) que conduzia, mas nesse mesmo dia, poucas horas depois, a CNN corrigia a imputação: “Inicialmente foi avançado que a viatura era furtada, mas testemunhas no bairro dizem que o carro pertencia ao suspeito”.Esta correção surge na mesma altura que o comunicado da PSP sobre o ocorrido, enviado às 11H58 para as redações, e no qual não há referência a qualquer suspeita de furto. Na verdade, não se refere qualquer suspeita concreta: o homem que, após perseguição, acabaria por ser baleado e que agora sabemos ser cozinheiro, morar no bairro do Zambujal, também na Amadora, e ter três filhos, o mais novo dos quais com dois anos, é descrito simplesmente como “tendo-se posto em fuga”, sem que se dê qualquer indicação sobre o como dessa ação - que fez exatamente para que seja lícita tal interpretação - nem o porquê.Recordemos o comunicado: “Pelas 05h43, no Bairro Alto da Cova da Moura [a PSP] procedeu à interceção de um indivíduo que momentos antes se havia colocado em fuga à polícia. Minutos antes [da interceção], na Avenida da República, na Amadora, o suspeito ao visualizar uma viatura policial encetou fuga para o interior do Bairro Alto da Cova da Moura, também, na Amadora. No interior do Bairro, o condutor entrou em despiste, abalroando viaturas estacionadas, tendo o veículo em fuga ficado imobilizado.”E prosseguia a descrição da PSP, alterando o tempo verbal do passado (que dá como certo que as coisas se passaram assim) para o condicional (assumindo assim que se trata de um relato, a ser confirmado ou informado pela investigação): “Na Rua Principal do referido bairro, quando os polícias procediam à abordagem do suspeito, o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca, tendo um dos polícias, esgotados outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito, em circunstâncias a apurar em sede de inquérito criminal e disciplinar.” Note-se que a PSP não atribui a “fuga” a qualquer ação dos agentes no local mas sim à “visualização”, pelo morto, do veículo policial. Essa será então a primeira questão por responder, e que se espera que o inquérito criminal esclareça: por que é que a patrulha da PSP, composta por dois agentes num carro, considerou - como se depreende do comunicado daquela força policial - que Odair Moniz se tinha posto em fuga ao vê-la? Em que se baseiam, em que se basearam para encetar uma perseguição que terminou com uma morte?Segundo algumas notícias, teria sido o facto de Odair ter pisado um traço contínuo quando - de acordo com o relatado pelo Público, a partir de informação da família - regressava do Zambujal com uma cachupa para os amigos da Cova da Moura, com quem estaria a conviver naquela madrugada de domingo, a desencadear a perseguição da PSP. Certo é que a dada altura o carro de Odair parou e que tanto ele como o agente que o matou terão saído dos respetivos automóveis.Tinha ou não uma faca? Estava ou não na mão?Ouvidas pelo Público, numa reportagem publicada a 25 de outubro, duas testemunhas, que moram na rua onde Odair foi baleado e que garantem ter assistido ao confronto e aos tiros, dizem que o cozinheiro não teria nada nas mãos no momento em que foi atingido. “Quando saiu do carro, queriam pegar nele para o algemar. Disseram para ele se deitar no chão”, conta uma dessas testemunhas, cuja identidade o jornal protegeu. “Ele começa a andar. Eles queriam pegar nele e ele disse: ‘Não me toquem’, ‘tira a mão.’ Mas em nenhum momento tentou agredir os policiais. Quando ele disse para tirarem a mão, para não tocar, à frente do café, deram dois tiros para cima.”A outra testemunha, que garante que o morto nunca foi violento com os agentes, diz que foi um pouco mais à frente que, continuando Odair a afastar-se dos agentes, um deles disparou. No dia anterior ao da publicação desta reportagem do Público, o DN adiantava existir videovigilância naquela rua da Cova da Moura, e que a análise das imagens não teria permitido confirmar o teor do comunicado da PSP - ou seja, que Odair teria ameaçado os agentes com uma arma branca. Lia-se no DN, cuja manchete referente à notícia era “Nas imagens de videovigilância, Odair não tem uma faca nas mãos”, que “nos momentos filmados pelas câmaras, que terão captado o confronto físico entre Odair e o polícia, a empunhar a sua pistola com o cano para cima, é possível ver no ar as mãos vazias do morador do Bairro do Zambujal".Mas na notícia lia-se também: “Ainda assim, segundo fonte judicial que teve conhecimento desta diligência, haverá um momento, imediatamente antes do primeiro disparo, em que um dos braços de Odair desce, deixando de ser possível verificar o que teria nessa mão.”No dia anterior, 23 de outubro, a CNN relatara que ao serem ouvidos pela PJ os dois agentes teriam negado que Odair empunhasse uma faca - mas que trazia consigo uma, a qual estaria dentro de uma bolsa que transportava à cintura. Ricardo Serrano Vieira, o advogado do polícia que disparou, confirmou que as autoridades terão de facto na respetiva posse uma faca. Se essa faca estava com Odair, se estava numa bolsa ou fora dela ou foi alguma vez empunhada pelo cozinheiro face aos agentes é, como já referido, uma das questões fundamentais a esclarecer: faz a diferença entre a possibilidade e a impossibilidade de invocação de legítima defesa como motivo dos disparos. É que a lei que rege o uso da arma de fogo contra pessoas (ou seja, correndo o risco de matar) por parte de polícias é clara: tal só pode suceder em caso de legítima defesa do agente ou de outrem. E se não houver possibilidade de invocar legítima defesa, o agente poderá até ser acusado de homicídio qualificado, o tipo de homicídio mais grave, com pena de 12 a 25 anos. Isto porque, nos termos do artigo 132º do Código Penal, uma das circunstâncias que qualificam (ou seja, agravam) o homicídio é o facto de o autor “ser funcionário e o facto ser praticado com grave abuso de autoridade”. Para aferir sobre se houve ou não “grave abuso de autoridade” é fulcral perceber o que se passou antes dos disparos.Odair entre os temas da audição de BlascoNesta quarta-feira de manhã, a ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, será sujeita a uma audição no parlamento na qual o caso Odair é um dos temas previstos. Deverá invocar a investigação em curso e o segredo de justiça para se escusar a comentários sobre este assunto.Restam muitos outros, num momento em que a discussão sobre segurança e insegurança e atuação das polícias está na ordem do dia - vide a manifestação ocorrida este sábado na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, em protesto contra a ação ocorrida a 19 de dezembro na Rua do Benformoso. Uma ação na qual a PSP imobilizou dezenas de cidadãos de origem estrangeira, de braços contra a parede e pernas afastadas, sem que, aparentemente, fossem objeto de fundadas suspeitas de crime, e que, justamente, é um dos temas da audição da ministra. Outro é o dos poderes das polícias municipais - recorde-se que em setembro Carlos Moedas, presidente da Câmara de Lisboa, proclamou que a Polícia Municipal, que funciona na sua dependência, deve poder proceder a detenções. Sem se pronunciar sobre a pretensão do edil, Margarida Blasco, que é juíza desembargadora, pediu ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República um parecer sobre o assunto (o segundo que aquele órgão irá elaborar, já que existe um de 2008), sobre o qual deverá agora ser questionada. Também em questionamento na audição estará o processo de compra de bodycams - “câmaras de corpo” - para as polícias, assim como um ponto de situação sobre os meios - veículos, etc - que o primeiro-ministro anunciou, na sua primeira "comunicação ao país", a 27 de outubro, estarem em vias de ser adquiridos. Da lista das questões faz igualmente parte um balanço dos distúrbios ocorridos após a morte de Odair Moniz.